segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Capítulo 4 - (quase) Tudo o que tenho cá dentro…

Acordei com os raios de sol a encherem o meu quarto de luz. Olhei para o relógio e nem sequer me importei por serem já onze da manhã. Estava mesmo a precisar de descansar depois da semana louca que tinha tido. Era sábado e por isso não queria pensar em trabalho. Ouvi a Si a cirandar pela casa e isso deixou-me feliz. Tinha a minha amiga comigo. Fui até à cozinha, onde o cheirinho a café me parecia delicioso.
- Bom dia. Há cafezinho para mim?
- Bongiorno bella. Claro que sim. Mas não queres comer nada antes?
- Não, vou só beber um iogurte.
- Olha, está um dia frio mas radiante lá fora, e que tal um cafezinho na varanda?
- Óptima ideia. Vou buscar os cigarros e um casaco.
A Si não fuma. Eu, apesar de ter reduzido, continuo a fumar mas não o faço dentro de casa. Era uma manhã calma no bairro. Não havia o corrupio de carros de um lado para o outro e o céu limpo tinha trazido para o jardim os miúdos e miúdas. Lá em baixo jogava-se à bola, cantava-se e dançava-se. Os pais liam os jornais, as mães conversavam e riam. Era por isso que eu gostava daquele bairro. Quando decidi dividir casa com a Si, a única exigência que fiz foi a de morar num sítio onde, apesar da vida agitada que todos levam, pudesse haver amizade, cumplicidade e espírito de comunidade entre os vizinhos. E acertámos em cheio. Vivemos num paraíso tão perto da loucura da metrópole.
- Não trabalhas hoje, bi? – Perguntei-lhe enquanto acendia o cigarro.
- Sim, mas só logo à noite. Tenho uma festa da revista Lux.
- Hum, que interessante.
Sorri. A maior parte das pessoas deve achar o máximo o trabalho da Si, sempre no meio dos famosos. Se soubessem o quanto ela os detesta. Felizmente, apesar de trabalhar num meio inundado de pessoas fúteis, a minha amiga nunca se deixou contagiar. Prezava a inteligência, os valores humanos e o trabalho árduo. E no fundo aquele era apenas um meio para atingir um fim: o de tornar-se a melhor fotógrafa profissional do país.
- Sabes o que me apetecia? – Perguntei-lhe.
- O quê?
- Ir passear.
- Ok. Parece-me bem. E podemos ir comer a pizza que era suposto teres trazido ontem. – Riu-se.
- Opa, tu não me fales nessa porcaria. Por falar em ontem, tenho de levar o meu “bolinhas” ao mecânico. Conheces algum?
- Não, mas o meu tio deve conhecer. Vou-lhe ligar.

**** (depois de sair do mecânico) ****

- Quinhentos euros? Este gajo passou-se da pinha. Isso foi o que paguei pelo carro quando o comprei. E agora?
- Não sei. Já pensaste em mandá-lo para a sucata?
- Sim, esperteza, e depois? Compro um burro para me levar para o trabalho?
- Não, compras outro carro.
- Oh, que brilhante ideia. Até posso usar o dinheiro que me saiu ontem no euromilhões, não é?
- Opa, não me digas que não podes comprar um carro? Fazes um empréstimo como toda a gente e pagas por mês.
- Sim, ok, tens razão. Mas isso não se trata de um dia para o outro. E segunda-feira como vou trabalhar?
- Vais de táxi até conseguires comprar o carro novo e depois mandas as facturas para o teu amigo.
- Qual amigo?
- O que te bateu no carro.
- Opa, não me irrites.
- Olha, já sei. Vais ao Estádio da Luz logo à noite e em vez de levares um cartaz como as outras pessoas a pedir a camisola, levas um a dizer “David Luiz dá-me um carro novo”. Que achas??? – A Si soltou uma gargalhada que pôs toda a gente a olhar para nós.
- Olha, vai à merda. Com cartaz ou sem cartaz. Tu decides. Para além disso, eles hoje jogam em Leiria.
- Muito bem informada que estamos, sim senhora.
- Claro, eu não tenho o calendário dos jogos na sala só para enfeitar.
Acelerei o passo em direcção ao carro da Si, fiquei amuada à espera que ela abrisse a porta e não disse nem mais uma palavra. A Si entrou, sentou-se, e ficou ali sem dizer nada. Passaram dez minutos e ela ainda não tinha ligado o carro. Estranhei.
- Então, vamos ficar aqui a tarde toda? Estou cheia de fome. – Resmunguei.
- Não. Só até tu me olhares nos olhos e me dizeres o que se passa contigo.
- Como assim, o que passa comigo?
- Kika, tu andas estranha. Andas sempre furiosa, triste, irritada. Opa, onde está a Kika maluca que eu conheci na faculdade? Aquela que sozinha conseguia por toda a escola a rir, mesmo que o momento fosse para chorar? O que é que se passou em Coimbra? Desde que vieste estás insuportável.
Aquelas palavras magoaram-me. Olhei nos olhos da minha amiga e nem precisei de lhe dizer uma única palavra para ela perceber que eu precisava mesmo de ajuda. Ela quebrou o gelo.
- Ok. Eu tenho uma ideia. Vamos lá sair daqui.
Arrancámos. Não sabia muito bem para onde íamos mas também não perguntei. Passámos em frente a uma pizzaria perto do bairro. A Si estacionou o carro, saiu e entrou na pizzaria sem dizer fosse o que fosse. Eu também saí do carro mas só para fumar um cigarro. Ela voltou com a caixa de uma pizza e arrancámos novamente. Eu continuava sem saber para onde.

****
Estávamos junto ao mar. Como eu gostava da Cova do Vapor. E como ela sabia que eu gostava. Estacionamos o carro viradas para o mar. Abrimos a caixa de pizza e comemos apenas uma fatia cada. Não percebi se era falta de apetite ou se era necessidade de ter a boca vazia para podermos falar. Pousamos a caixa no banco de trás.
- Vamos até ao areal? – Perguntou-me a Si.
- Vamos. – Saí do carro e acendi um cigarro.
- Andas a fumar muito outra vez.
- Sim, eu sei.
Sentámo-nos na areia gelada e o peso da consciência fez-me apagar o cigarro que tinha acabado de acender.
- Kika, desculpa ter falado para ti daquela maneira.
- Não faz mal. Eu é que peço desculpa pelo meu feitio nos últimos dias.
- Não quero que peças desculpa, quero que me digas tudo o que tens aí dentro – disse, enquanto me apontava um dedo ao coração.
Respirei fundo. Estava pronta para falar. Porque precisava e porque a minha amiga merecia que o fizesse. Afinal, desde que nos conhecemos, ela tem estado comigo nos bons e nos maus momentos.
- É o passado Si, é o maldito passado. Em Coimbra voltei a ver o Tiago. Já passaram sete meses. Foi a primeira vez, mas não pensei que ia custar tanto.
- O que sentiste?
- Raiva, rancor… um ódio que me consumiu até ao ossos.
- E que continua a consumir?
- Sim, sobretudo porque ele não tem parado de mandar mensagens. Quer dizer, agora não sei. Deitei o telemóvel fora.
- E o que sentes? Agora.
- Oh, sinto dor. Foram seis anos, Si. E não foram uns seis anos quaisquer, tu sabes. Foi a entrega, foram os sonhos que construí, a casa que imaginávamos juntos, os filhos que queríamos ter. Foi o chegar tão perto de quase realizar esses sonhos e ele ter destruído tudo daquela maneira. E sinto nojo, porque fui traída… duas vezes. Como é que fui capaz sequer de perdoar a primeira?
- Era o amor.
- Sim, o amor incondicional.
- Devias ter pensado sempre em ti primeiro, eu disse-te.
- Sim, eu sei.
- Mas ainda vais a tempo. Abre o teu coração ao amor, Kika. Deixa que as pessoas se aproximem de ti. Tens de começar a dissolver lentamente essa muralha de protecção que construíste em teu redor.
- Tenho medo.
- De quê? De voltar a sofrer?
- Não. De voltar a amar.
- Oh minha babe…
Ficámos ali assim, durante mais de meia hora, abraçadas a contemplar o mar. Estava um frio terrível, daqueles de cortar a respiração. Mas estar ali fazia-me sentir tão bem. Só não me perdoava porque mais uma vez não tinha conseguido dizer toda a verdade à Si. Na verdade, eu já não amava o Tiago, e até começava já a tornar-se mais fácil lidar com as traições e a separação. Tinha-me resignado e estava a tornar-me uma mulher cada vez mais confiante. Claro que não tinha sido fácil. Foram seis anos. Praticamente vivíamos na casa um do outro. Os nossos pais costumavam dizer que já fazíamos vida de casados. Enquanto crescia o nosso amor, nós íamos crescendo também enquanto seres humanos. Mas o Tiago estragou tudo. Duas vezes. À segunda já não fui capaz de perdoá-lo. Nem serei, porque nunca vou esquecer tudo o que se passou naquele dia. O dia em que eu tinha a melhor notícia do mundo para lhe e ele deu-me a pior. O dia em que por culpa dele eu perdi o que de mais importante, e enquanto mulher, podia ter na vida. Não só não lhe perdoo como vou odiá-lo até ao meu último suspiro.
Abracei a Si com mais força ainda. Queria tanto contar-lhe tudo o que tinha cá dentro, mas não passei do “quase tudo”. Talvez um dia tivesse coragem. Eu sabia que ela ia entender. Era tão bom ter a Si como amiga. Uma mulher independente, madura mas tão carinhosa. Também um bocadinho chatinha e desbocada.
- Olha, mudando de assunto, como vais resolver as coisas com o teu amigo do Benfica?
- Opa, tu és chata.
- Não sou nada. Então vocês não assinaram um papel qualquer para o “giraço” te pagar o estrago?! Então, tens de o avisar que vais mandar o “bolinhas” para a sucata.
- Sim. E vou avisar, quando puder. Mas pára de dizer “o teu amigo”. E não me voltes a lembrar que vou matar o meu “bolinhas”.
- Oh bi, mas ele é teu amigo. Vocês trocaram moradas e número de telefone e de BI’s, e essas coisas importantes. – Riu-se.
- Oh Si por favor. Tu és tão parva.
- Mas diz lá que não gostavas que ele fosse teu amigo?
- Oh, claro, temos tanto em comum. Sobretudo as nossas cores clubísticas e a nossa conta bancária.
- Mas são essas diferenças que podem tornar um amor ainda mais fantástico.
Não consegui evitar uma gargalhada.
- Amor, mas que amor pá, tu estás louca? O rapaz só me bateu no carro e tu falas em amor? Ainda por cima fantástico. Eu prefiro viver na realidade.
- Oh, preferia quando tu eras do tempo daquela frase “Não quero realismo, quero magia…”.
- Sim, e nesse tempo espetaram-me uma faca em cheio no coração.
- Mas isso sara. O que me preocupa é terem-te tirado a capacidade de sonhar, de veres o mundo às cores.
- Não tiraram, diminuíram só.
- Então recupera isso, porque a Kika que eu conheço teria deixado ontem a preocupação com o carro posta de lado e teria chegado a casa a fantasiar com o David Luiz e os seus caracóis.
- E quem te disse que não o fiz?
- A sério? Quando te foste deitar? – Perguntou-me, entusiasmada.
- Sim, não ouviste sinos e tudo? Era eu, já a imaginar o casamento…- soltei uma gargalhada.
- Oh, vai à merda. Vamos é embora que ainda tenho de ir preparar as coisas para o trabalho de logo.
- Ok. E eu vou pesquisar na Internet telemóveis e carros novos. Tenho também de ligar aos meus pais.
- E o jantar?
- Janto em casa, sentada no sofá a ver o Leiria X Benfica na Sporttv.
- Hum, para veres o teu amigo?
- Sim, e sonhar com as minhas mãos a percorrerem os abdominais dele.
Voltei a rir às gargalhas. Dei uma corrida até ao carro. O caminho de volta a casa foi feito ao som de música brasileira, segundo a minha amiga para “aumentar o astral e sonhar”. Rádio em altos berros e eu a cantar que nem uma perdida. A Si a implorar para eu parar de cantar e eu a rir à gargalhada cada vez que ela pedia. Chegámos a casa. Pouco depois já a Si estava pronta para ir trabalhar. Ainda antes de abrir a porta de casa, foi ter comigo à sala. Pendurou-se nas costas do sofá, onde eu já estava de prato à frente, pronta para ver futebol, agarrou-se ao meu pescoço, deu-me um beijinho e sussurrou-me ao ouvido.
- “É tão bom começar a ter a velha Kika de volta”.
Voltei-me e retribui com um beijo e um sorriso. Desejei-lhe bom trabalho e lembrei-a que teria o telemóvel da empresa ligado e com som a noite toda, para o caso de ela precisar de mim. Ela saiu e eu fiquei com a minha salada no prato e aquele “macarrão lindo de morrer” no ecrã da televisão.

1 comentário: