quarta-feira, 16 de março de 2011

Capítulo 33 - Conversas inadiáveis


Aqueles segundos pareciam-me horas… a minha mãe não dizia absolutamente nada e as lágrimas, que a tanto custo eu evitei, rolavam velozmente pelo meu rosto. Era um choro, ainda assim, calmo e silencioso, a contrastar com o barulho ensurdecedor do meu coração a bater-me contra o peito. Já tinha desistido de chamar pela minha mãe. Dei-lhe o tempo que julguei necessário para que ela assimilasse o que tinha acabado de ouvir, mas aquela espera começava a já não fazer sentido. Ela própria me tinha ensinado que “é a conversar que as pessoas se entendem”.

- Tu já sabias. – As minhas palavras eram ditas com uma aparente tranquilidade – O brilho no meu olhar… lembras-te? Tu disseste que o viste…
- Mas tu negaste… lembras-te? – Era bom ouvir de novo a voz da minha mãe, mesmo que o seu timbre fizesse sobressair o desgosto que ela outrora manifestara.
- Mas tu és minha mãe, tu conheces-me como ninguém. Se os meus olhos te mostraram os sentimentos que, é verdade, eu tentei esconder, então tu devias saber que eles eram já fortes demais.
- E sei, sempre soube…
- Então? – Não a deixei terminar a frase. Levantei o meu corpo ainda deitado na cama do David e fui caminhando até à janela à espera da resposta.
- Os teus sentimentos eu conheço-os, os dele não. – A minha mãe falava com uma frieza que eu tentava a todo o custo enfraquecer.
- Acredita que são tão puros quanto os meus.
- Eu só quero que tu sejas feliz, que não voltes a sofrer da…
- Então fica feliz por mim, caramba! – Perdi o controlo sobre mim própria e deixei que o tom da minha voz me saísse um pouco mais elevado.
- … da mesma maneira. Não quero que voltes a sofrer, que voltes a chorar, que voltes a cometer os mesmos erros, percebes? - Também a minha mãe começava a exaltar-se novamente.
- E tu percebes que eu não posso viver para o resto da minha vida numa redoma de vidro duplo? Estou apaixonada, o que queres que faça, que me tranque em casa e tente reprimir os meus próprios sentimentos?
- Não! Quero que penses bem nas consequências dos teus actos.
- Neste momento, todos os meus actos relacionados com o David fazem-me sentir feliz. Posso ser feliz?
- Ei… – aquele “ei” soou-me a grito de mágoa – mas tu achas o quê? Que eu estou a esforçar-me prazerosamente para que a minha filha não seja feliz? – A ironia nas palavras da minha mãe confirmavam as minhas suspeitas de que ela estava realmente magoada com a minha pergunta – Não há ninguém no mundo que te queira ver tão feliz quanto eu, entendes? Eu estou simplesmente preocupada com essa tua paixão por um jogador de futebol, como é perfeitamente normal.

Começava a ficar desgastada emocionalmente com aquela conversa. Deixei deslizar o meu corpo pela parede, sob a janela, e sentei-me no chão do quarto do David. Fechei os olhos, respirei fundo e ouvi, pela primeira vez, o burburinho que vinha da sala, onde todos me esperavam para jantar.

- Não mãe, não é normal. Porque eu não estou apaixonada por um jogador de futebol. Estou apaixonada pelo David, um rapaz maravilhoso, com um coração do tamanho do mundo e um carácter de fazer corar muita gente. Eu estou feliz, mãe. Eu voltei a sentir-me amada, desejada… voltei a sentir-me mulher. Consegues compreender isso, mãe?
- Muito bem… se estás feliz, então eu fico feliz por ti. – Foi uma resposta sem qualquer convicção.
- Quero muito acreditar nisso, mãezinha. Porque tu sabes o quanto o teu apoio é importante para mim.

Estava decidida a colocar um ponto final naquela conversa. Dois dias depois iria para Coimbra e esperava poder conversar mais calmamente com a minha mãe. Sabia que, apesar de tudo, ela queria realmente ver-me feliz e, por isso, tinha esperanças de que um dia ela aceitasse conhecer o David. Sorri ao imaginar esse momento. Tinha a certeza de que eles se iriam adorar. Foi ela quem quebrou o silêncio imposto pela minha divagação.

- Eu sei. Mas por favor, não me voltes a esconder nada. Sobretudo se saíres do país. Minha nossa, Kika, eu estava preocupadíssima.
- Desculpa mãe, desculpa. Tu tens toda a razão. Mas eu não quero que penses que te estava a esconder alguma coisa. Eu apenas me esqueci, desculpa, tu sabes como eu sou despistada.
- Esqueceres-te de me avisar que vais viajar? Por amor de Deus, isso não é descuido. Há quanto tempo tinhas a viagem marcada?
- Oh… – sorri – eu só marquei a viagem ontem de manhã. Foi assim uma coisa sem pensar, sabes?
- Tu e as tuas maluqueiras. Mas quando é que apanhas juízo nessa cabeça? E o trabalho… faltaste ao trabalho?
- Sim, mas eu tinha folgas para gozar, por isso está tudo bem.
- Olha, bem que as podias ter guardado para vires para Coimbra amanhã.
- Eh lá, dona Maria, estamos com ciúmes? Não me parece nada apropriado para uma senhora da sua idade.
- Deixa-te lá de merdas, Kika, mas que ciúmes?! Só gostava que viesses a Coimbra. – Não consegui evitar sorrir com aquelas palavras.
- Mas eu vou. Sexta-feira, assim que sair do trabalho, meto-me no carro para te ir dar um beijinho. Melhor assim?

Já não havia naquela altura qualquer azedume nas palavras que trocávamos. O que era já habitual entre nós. Cada vez que discutíamos, tendíamos a ser duras uma com a outra, por vezes até ligeiramente cruéis. Mas assim que libertávamos do interior tudo o que havia para ser dito, a conversa retomava a normalidade. Não era efusiva, nem tão pouco carinhosa… era simplesmente normal. Claro, com uma boa dose de cinismo à mistura.

- Depois falamos, mãe. Agora tenho de ir jantar, que está toda a gente à minha espera.
- Toda a gente quem? Vais dar um banquete aí em casa?
- Eu estou em casa do David. – Ouvi, do outro lado da linha um grande suspiro de resignação. – Vamos jantar aqui com a Si, o Gustavo, o Paulo…
- O Paulo, claro – ela interrompeu-me de forma abrupta – esse lampião tinha que estar metido nessa história. Enfim… eu só quero que tu me digas mais uma coisa.
- O quê? – Aguardei ainda alguns segundos até ouvir a sua pergunta.
- Foste ver o jogo? – Sorri ligeiramente.
- Sim, fui. Como é que eu sabia que me ias perguntar isso?! – Desabafei.
- Mas não festejaste o golo, pois não? – Perguntava-me ela com algum nervosismo.
- Isso já são duas coisas.
- Eu não acredito, tu… – Senti naquele momento a voz da minha mãe a entristecer.
- Claro que não, mãe. Bolas, até parece que não me conheces. Que estupidez estares a perguntar isso.
- Estupidez não. – Respondeu-me indignada – Era só o que me faltava, tu gostares do Benfica só porque o teu namorado joga lá.
- O meu namorado? – Perguntei com uma ingenuidade fingida.
- Então é o quê? Se gostas dele, se dormes com ele, se…
- Sim, tens razão. É meu namorado.

Estremeci ao pronunciar aquelas palavras. Não só pelo calorzinho delicioso que elas provocaram no meu coração, mas também porque o David tinha acabado de entrar pelo quarto com um sorriso encantador. Assim que se apercebeu que eu ainda estava ao telefone, fez-me sinal que ia sair. Também por gestos, dei-lhe indicação para que esperasse um pouco e sorri.

- Mãe, vou jantar. Amanhã ligo-te, está bem?
- Sim, vai lá. Eu também te ligo na sexta a saber a que horas vens, combinado?
- Combinadíssimo. Beijinho, até amanhã!
- Até amanhã, Kika. Beijinho.
- Mãe…
- Diz.
- Desculpa! A sério, desculpa mesmo. Não te queria magoar.
- Esquece isso. É o melhor. Até amanhã.
- Ok. Beijinho.

Não eram as palavras que eu queria ouvir mas sabia que, naquele momento, eram as possíveis. Um fio de tristeza passeou-se pelo meu rosto e David não lhe ficou indiferente. Veio agachar-se à minha frente.

- Está tudo bem com vocês? – Perguntou-me de forma carinhosa. Uma luz lunar invadia o quarto e realçava a expressão delicada de David, sempre preocupado comigo.
- Vai ficar tudo bem, não te preocupes. – Fiz-lhe uma festinha na cara e suspirei tranquilamente. – Adoro-te!
- Eu também te adoro… minha namorada.

Sorrimos os dois antes de nos beijarmos demoradamente. E só com aquele beijo doce, o meu coração voltou ao seu ritmo normal. Selamos o momento com tantos outros leves beijos e ficámos a contemplar-nos mutuamente. E eu voltava a sentir as borboletas a bailarem no meu estômago, porque na profundidade do olhar do David eu parecia encontrar o meu horizonte… de uma forma tão extraordinária quanto inquietante.

- Achas que faz sentido? – Perguntei-lhe, sem desviar o meu olhar do dele.
- O quê? – Questionou-me confuso.
- Eu ser a tua namorada, tu seres o meu namorado… sei lá, não estamos a apressar as coisas?
- Você acha? Eu acho que faz todo o sentido. Vou falar sobre você como? A amiga com quem eu ‘tou vivendo uma paixão? – Notei na voz do David um misto de tristeza e alegria.
- Vais falar sobre mim a quem? – Perguntei algo nervosa.
- Ah sei lá meu anjo. Era só uma expressão. E se falar que mal tem?
- Depende com quem falares. Mas isso agora não interessa nada. – Eu tinha entendido que o David não se estava a referir a alguém em concreto, mas não consegui evitar pensar na família dele. – Não sei se faz sentido, mas soa muito bem. – Sorri, envolvi os meus braços no seu pescoço e puxei-o para junto de mim, beijando-o apaixonadamente. Fomos interrompidos, no mesmo instante, pelo Gustavo que entrava descontraidamente no quarto.
- E aí pombinhos, vamo jantar? – Perguntou com um sorriso malandro, batendo com uma mão na porta entreaberta enquanto a outra permanecia apoiada na parede do lado contrário.
- Pô mano deixa de ser empata. Posso ‘tar em paz com a minha namorada? – O David fazia uma cara de zangado.
- Ué, desculpa aí tar incomodando, mas ‘tá todo o mundo morrendo de fome. – Desculpava-se o Gustavo enquanto se preparava para sair.
- David! – Repreendi-o ao perceber que o Gustavo tinha acreditado na sua aparente irritação. Levantei-me, atirei o telemóvel para cima da cama e puxei o David que entretanto se tinha sentado. – Gu, não lhe ligues. Não vês que foi só um pretexto para te dizer que tem namorada? – Continuei em tom de brincadeira.
- É mano, deixa eu te apresentar a minha namorada. – O David colocava orgulhosamente o seu braço por cima dos meus ombros e encaminhava-nos para a porta.
- Oh Kika… você não sabe no que ‘tá se metendo, não. Esse daí é um chato, amiga. – O Gustavo falava de uma forma vitoriosa, para se vingar da brincadeira do David. Mal acabou de falar, piscou-me o olho e saiu.
- Cala a boca oh babaca. Não fala besteira para a minha namorada, não.

Eu soltei uma gargalhada. O David parecia uma verdadeira criança que acaba de receber um brinquedo novo e anda a mostrá-lo a toda a gente. Estava tão feliz que todos os pretextos eram válidos para me chamar de namorada. Mas isso não me incomodava absolutamente, porque estivesse certo ou errado, apressado ou não, a verdade é que me fazia feliz. Ter namorado assustava-me, sem dúvida, mas a certeza de que a minha felicidade naquele momento dependia daquele homem a quem eu passara a chamar de namorado era forte o suficiente para dissipar quaisquer medos.


*******************


A boa disposição reinou ao longo de todo o jantar com os nossos amigos. O bom humor, sobretudo do Ruben e do David, sempre os mais divertidos, contagiava todos os outros. Mesmo nos momentos mais sérios, em que trocávamos impressões sobre os nossos empregos ou sobre o país, um deles conseguia provocar a gargalhada geral com qualquer disparate. E tal como acontecia em todas as vezes que nos reuníamos, o tempo não passava… voava. O cansaço começava a manifestar-se em cada um de nós, de forma distinta. E já nos conhecíamos tão bem que nenhum precisou de o dizer para que todos, em simultâneo, nos levantássemos e começássemos a arrumar a sala. Em pouco tempo, a casa do David e do Gustavo voltava a estar impecavelmente arrumada e todos nos preparávamos para sair, quase num atropelo para, entre beijos e abraços, nos despedirmos.

- Bem pessoal, eu vou andando! – O Paulo foi o primeiro a sair da sala, de sorriso rasgado. Todos o seguimos até ao corredor. – Rapazes vemo-nos amanhã. Meninas portem-se bem.
- Nós descemos contigo, Paulão. – Informou o Ruben, abraçando a Raquel – Estás pronta, amor?
- Sim, querido. Deixa-me só pegar a minha mala. – A Raquel esticava a mão e puxava a carteira, pousada sobre um dos móveis do corredor da casa. - Levas a minha mala de viagem, amor?
- Eu? – Perguntava Ruben com um sorriso divertido – Aí a tua amiga é que a devia levar, não foi com ela que foste viajar?
- Oh espertinho – meti-me na conversa – tu devias era agradecer-me por ter levado a tua namorada. Diz lá que não jogaste melhor e tudo? – Enquanto falava ia caminhando pelo corredor em direcção ao quarto do David – Si, vou só pegar as minhas coisas e já saímos.
- Tranquila amiga. Eu não tenho assim tanta pressa – Respondeu-me a Sílvia, sorrindo para o Gustavo, que a abraçava carinhosamente.
- É babaca… se a minha namorada não tivesse levado a sua, a gente ainda acabava perdendo o jogo. – O David voltou a deixar sobressair um sorriso genuíno na sua face enquanto dava uma leve pancada na cabeça do Ruben.
- Ai, tanto mel… – ripostou o Ruben simulando um enjoo – … acho que vou vomitar. Olha lá Dêzinho – frisou bastante a palavra para irritar o David – mas tu agora não conheces outra palavra a não ser namorada? – continuou com um voz fininha, provocando nova gargalhada geral.
- EU ESTOU A OUVIR SR. AMORIM – gritei do quarto do David onde podia ouvir perfeitamente a conversa daqueles dois – E NÃO ESTOU A GOSTAR DA FORMA COMO ESTÁS A TRATAR O MEU NAMORADO.
Voltou a ouvir-se nova gargalhada, e o Ruben contra-atacou – Pronto, já cá faltava a advogada de defesa. TU TAMBÉM JÁ NÃO SABES DIZER MAIS NADA A NÃO SER NAMORADO? – Provocou-me, em gritos.
- Não precisas de gritar que eu não sou surda. – Apareci por trás dele e sussurrei-lhe ao ouvido, numa atitude que fez com que se assustasse. Sorri vitoriosa e abracei o David que estava ainda mais divertido com a conversa. – Raquelinha, acho que o teu amorzinho está a precisar de uma massagem relaxante – Pisquei-lhe o olho e ela retribui o gesto.
- Concordo. Anda amorzinho, que eu já trato de ti em casa. – A Raquel abraçava o Ruben de forma provocante e ele sorria infantilmente.

O Ruben, a Raquel e o Paulo saíram e eu preparava-me para fazer o mesmo. Fui impedida pelo David, que me apertou contra si.

- Não pode ficar mais um pouquinho? – Conseguia encontrar-lhe um traço de súplica no rosto.
- Oh meu caracolinhos… eu estou exausta! E tu também e, para além disso, tens treino amanhã cedo, não tens?
- Sim, é verdade. Mas só mais cinco minutos, vai.
- Não sei, a Si também deve querer ir embora.
- A Sílvinha está sem pressa – Interrompeu o Gustavo. Dei um passo em frente e espreitei para o interior da sala onde estava o casal sentado no sofá, numa troca intensiva de mimos e risadas.
- Viu? A Silvinha está sem pressa. – Repetiu o David, reforçando a súplica – Fica só mais um pouco.
- Ok… convenceste-me! – Admiti de forma ternurenta, perante a sua evidente felicidade. – Como é que me consegues dar sempre a volta?
Ele pegou na minha mão e levou-me para o seu quarto. Assim que entrámos, fechou a porta por trás de nós e envolveu-me num abraço quente.
- Porque eu sou muito teimoso. – Sorriu. – Agora vem cá. – Voltou a segurar-me a mão e arrastou-me para junto da janela, fazendo-me espreitar a noite brilhante, em que a lua e as estrelas pareciam sorrir perante a nossa felicidade. O David colocou o meu corpo de costas à frente do seu e deixou cair o seu queixo sobre o meu ombro direito. Senti a sua respiração serena junto ao meu ouvido e encolhi-me ligeiramente.
- Tá vendo aquela janelinha linda ali ao fundo? – Perguntou-me, apontando com o seu longo dedo indicador na direcção do meu quarto.
- Hum, hum.
- Então, sempre que você estiver lá… – O David falava convicta e pausadamente – …eu quero que você tenha a certeza de que eu vou estar aqui. Sempre, meu anjo.
Um arrepio percorreu cada centímetro do meu corpo e fez-me estremecer. Rodei o meu corpo de forma a ficar frente-a-frente com o David e abracei-o com força. Voltei a fixar-me naquela imensidão esverdeada dos seus olhos.
- Como é que te tornaste tão importante na minha vida, David?
- Da mesma maneira que você se tornou tão importante para mim. Há coisas que simplesmente não têm explicação… – sorriu-me carinhosamente, ao mesmo tempo que fazia deslizar a sua mão aberta desde o cimo do meu rosto até ao meu peito, fazendo-a parar do lado esquerdo – …e o amor é uma delas. O que está aqui – continuou o seu discurso, pegando na minha mão direita e colocando-a também sobre o seu coração. – não se explica… se sente!

Emocionei-me! Os meus olhos humedeceram, o meu coração começou a palpitar descontroladamente, a minha respiração tornou-se pesada e todo o meu corpo se moveu num espasmo. Sentia-me nervosa, muito mais do que na noite anterior. Porque entregar o meu corpo ao David era, indubitavelmente, menos importante e arriscado do que abrir-lhe as portas do meu coração.

- Tenho tanto medo, David! – Exclamei em surdina, numa voz trémula.
- Medo do quê meu anjo? – A voz do David continuava suave e tranquila.
- Medo de me envolver demais e depois descobrir que tudo não passa de um sonho.
- Shiu… – o David colocou um dedo nos meus lábios e sorriu-me – … isto é um sonho sim. – Eu olhava-o confusa. Como é que ele podia estar a dizer-me que aquilo era exactamente o que eu temia que fosse?! Ele desfez as minhas dúvidas, com as suas certezas. – Mas não precisa ter medo, não. É um sonho para você, mas também é um sonho para mim. Então… vamos viver esse sonho bem juntinhos… – os seus grandes braços envolveram o meu tronco, unindo os nossos corpos. - …vamos viver esse sonho lado a lado. – As suas palavras entraram pelos meus ouvidos como o mais belo cântico de pássaros e voaram direitinhos até ao meu coração.
- Adoro-te David!
- Eu também te adoro, Kika.

Selámos aquele diálogo intenso com um beijo longo e apaixonado, desfrutando do melhor que cada um de nós tinha para oferecer ao outro. A paixão arrebatadora da noite anterior deu lugar ao carinho e conforto que ambos parecíamos, inconscientemente, querer alcançar.


**************************


Assim que entrámos em casa, cada uma seguiu até ao seu quarto para trocar de roupa. Cruzámo-nos na porta da casa de banho, eu saí e a Sílvia entrou. A viagem tinha sido feita em silêncio, para que ambas pudéssemos colocar os nossos pensamentos em ordem. Não era um sinal de conflito, era simplesmente um acto de respeito mútuo. Tínhamos aprendido a conviver com os momentos solitários uma da outra sem qualquer problema.
Liguei a televisão da sala sem qualquer intuito de lhe prestar atenção e sentei-me no sofá. A Si apareceu pouco depois com uma tablete de chocolate na mão e sentou-se ao meu lado

- Queres um bocadinho? – Perguntou, estendendo-me a tablete.
- Sim, obrigada. – Retirei uma tira de chocolate com o qual me comecei a deliciar.
- Posso? – A Sílvia tinha afastado o corpo até ao lado oposto do sofá e esperava permissão para esticar as suas pernas para cima das minhas. Acenei afirmativamente com a cabeça. – Então, como correu a conversa com a tua mãe?
- Como deves imaginar… mal.
- Por teres viajado sem a avisar ou por namorares com o David?
- As duas. – Trinquei mais um pouco do chocolate antes de continuar. – Ela ficou mesmo lixada por não lhe ter dito que ia para Paris. E ficou danada contigo também.
- Pois, já sabia que ia sobrar para mim.
- O que lhe disseste?
- Nada de especial. Disse-lhe que tu estavas bem, que não era preciso ela estar preocupada, mas que tinhas de ser tu a contar-lhe o que se passava.
- Fizeste bem. Mas ela estava mesmo lixada. Fez-me chorar. – Sorrimos para tentar esconder o embaraço de termos, ambas, escondido algo importante à minha mãe.
- Mas ela tem razão. E tu tens culpa e eu também. – A Sílvia dava mais uma trinca na tablete. – E sobre o David?
- Difícil… muito difícil. Ela acha que estou a cometer um erro, que não estou a pensar nas consequências. Definitivamente, não vê com bons olhos esta relação.
- Tens de a compreender. Ela não conhece o David, não sabe quais são as suas intenções e tem medo que voltes a sofrer. Ela é tua mãe.
- Eu sei, bichinha. Mas eu só queria que ela ficasse feliz por eu estar feliz?
- E achas que não está, babe? Claro que está, só não to diz. Já devias saber que ela dificilmente dá a mão à palmatória. Tens bem a quem sair teimosa, tu…
- Olha que bem podes estar caladinha, tu. Não és filha dela mas também pareces…
- Estás a chamar-me teimosa, Ana Moreira?
- Não, Sílvia Salgado… estou a chamar-te muito teimosa. – Comecei a fazer cócegas nos pés da Sílvia enquanto ela se contorcia de riso e me implorava que parasse. Quando a senti no seu limite, parei.
- Olha e mudando de assunto – já com o riso controlado, a minha amiga fez uma cara mais séria e fitou-me – já contaste ao David?
- O quê? – Perguntei a medo.
- Sobre o que aconteceu no Verão passado. – Subitamente, o ambiente tornara-se pesado entre aquelas paredes.
- Ainda não. – Respondi já com as mãos a transpirarem.
- Mas tens de contar. Sabes que a confiança entre um casal é importante não sabes?
- Sei, bi, mas tenho medo… – confessei, com o olhar descaído. – E se ele reage mal, me condena, me critica? Sei lá…
- Kika, todos nós cometemos erros nas nossas vidas. Com certeza o David também já errou, como ser humano que é. E ele tem de gostar de ti com tudo o que tu tens… as tuas qualidades, os teus defeitos, as tuas vitórias, os teus fracassos e os teus vícios… mesmo que eles façam parte do passado. E se lhe contares tudo direitinho, sem tentar desculpar quem não merece desculpa, ele vai perceber que tu estavas a sofrer e apenas escolheste os caminhos errados para sair desse sofrimento. – A emoção da Sílvia era já evidente mas controlada, ao contrário da minha que já me fazia derramar grossas lágrimas.
- Eu não sei se consigo falar sobre o assunto… – o meu desespero era tão transparente que a minha amiga se levantou para me vir dar um abraço.
- Consegues, sim. Tu és forte e vais conseguir falar desse maldito passado. E depois disso vais saber lidar melhor com ele e vais viver muito mais tranquilamente. O David precisa de saber o que aconteceu e tem de sabê-lo por ti. Afinal ninguém gosta de ser apanhado de surpresa…
- Tens razão. Eu não posso adiar esta conversa por muito mais tempo. Está na hora de libertar, de uma vez por todas, tudo o que tenho cá dentro.

A Sílvia sorriu-me e beijou-me a face carinhosamente. E o meu coração ficou apertado como há muito não o sentia. E a minha consciência voltou a pesar-me como uma barra de chumbo. Realmente, tinha chegado a hora de falar sobre o meu passado ao David. Mas, muito mais importante que isso, tinha chegado a altura certa para contar à Sílvia algo que, tão dolorosamente, o meu medo de a desiludir me obrigara a esconder-lhe…