quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Capítulo 21 - De volta às origens


A sexta-feira passou num ápice. Tinha dois bons motivos para isso: a noite anterior maravilhosa com o David e a ânsia de regressar à cidade que me viu crescer. Saí ligeiramente mais cedo do trabalho, com autorização do patrão, e liguei ao Sr. José para me levar à estação. A viagem foi longa e atribulada, já que a hora de ponta a uma sexta-feira provoca o caos na capital. Já na estação, despedi-me do Sr. José, comprei o bilhete e corri para apanhar o comboio para Coimbra. Aproveitei a viagem sobre carris para ligar à Si e contar-lhe as novidades dos dias em que ela esteve ausente. Quase duas horas depois estava em Coimbra. Na estação Coimbra-B, a minha mana e o meu pai aguardavam-me.

- Olá família bonita. – Dei dois beijos a cada um – Então miúda, como é ter quase dezanove aninhos?
- Eh – respondeu-me, encolhendo os ombros – é a mesma coisa que ter dezoito.
- Pois, mas aproveita bem que a partir de agora é sempre a vê-los passar. E de amores como estamos?
- Oh mana…
- Que foi, estás com vergonha de falar em frente ao velhote. – Soltei uma gargalhada.
- Ei! Velhote o tanas. – Resmungou o meu pai enquanto, de cigarro na boca, colocava as malas na bagageira.

Entrámos no carro e seguimos para a santa terrinha, onde a minha Maria nos aguardava sentada à porta do café. Assim que viu o carro, um sorriso iluminou-lhe o rosto. Pedi à minha irmã que encostasse e fiquei logo ali, onde, para além da minha mãe estavam também algumas amigas. Por entre abraços, beijinhos e muitos sorrisos pedi uma tosta mista e um sumo para acalmar o estômago que roncava desde a partida de Lisboa. Mandei uma mensagem à Si a dizer que tinha chegado. Assim que deu a meia-noite cantámos os parabéns à minha irmã, com direito a bolo de aniversário e tudo. O café continuava cheio e a diversão presente. Pouco faltava para a uma da manhã quando fomos para casa.

Adorava voltar à minha terra e à casa dos meus pais. Uma das coisas boas de crescer numa terra pequena, onde todos se conhecem, é o carinho com que sou recebida cada vez que lá volto. E claro, os amigos de infância, aqueles que me conhecem tão bem quanto eu própria. E as marcas do passado, que continuam sempre lá, entranhadas por todo o lado: no som das brincadeiras nos baloiços; no cheiro das bifanas e do caldo verde das festas; no tacto das quedas que dávamos no campo de futebol pelado; no paladar da broa cozida pela minha avó e dos doces da minha madrinha; nas imagens dos que já partiram, dos que já cresceram e dos que continuam iguais. Claro que viver numa terra pequena tem os seus inconvenientes, como as cusquices das vizinhas e as intromissões na vida alheia, mas as coisas boas fazem esquecer das más. Indubitavelmente!

Entrámos em casa, tomei um banho e deitei-me na cama com a minha irmã.

- Que saudades de dormir contigo, miúda. Nunca me vou habituar a dormir sozinha. – Disse à minha irmã enquanto me enroscava no seu corpo quente.
- Olha, eu então já estou mais que habituada. E não te mexas muito que fazes frio.

Soltámos uma gargalhada conjunta. Era sempre assim. Desde miúdas que dividíamos não só o quarto mas também a cama. E das duas vezes que saí de casa, dormir sozinha foi sempre o meu maior tormento. Estivemos a conversar, eu e a Cris, até muito tarde. Falámos de coisas sérias, mas também dissemos muitos disparates enquanto tentávamos evitar as gargalhadas sonoras e o consequente raspanete do meu pai ou da minha mãe. Mas quanto mais tentávamos mais nos ríamos. Foi sempre assim, desde pequenas, e suspeito que continuará a sê-lo até ao fim das nossas vidas. Adormecemos pouco depois.

*****************

A manhã estava fria em Coimbra. Mas o sol brilhava, o que aumentava ainda mais o encanto da cidade dos estudantes. Percorri as ruas da baixa com uma satisfação imensa. Apesar dos centros comerciais já existentes na cidade, nada me fazia mais feliz do que fazer compras no comércio tradicional. Sobretudo porque me recordava das horas que eu e as minhas amigas passávamos a cirandar por aquelas ruas, becos e vielas quando tudo o que era novidade em Coimbra só se encontrava ali. Comprei alguma roupa, umas botas lindas às quais não consegui resistir, e apesar de já ter a prenda para a Cris não resisti a comprar-lhe mais um vestidinho para ela brilhar nessa noite. Ao meio-dia estava estafada mas muito satisfeita com as compras feitas. Estava a guardar os sacos no carro, quando recebi uma mensagem da Si a convidar-me para almoçar. Marcámos no habitual sítio dos almoços: o restaurante Itália, à beira do rio Mondego. Se fosse jantar era sempre no restaurante chinês, em Celas. Meia hora depois a Si chegava ao pé de mim.

- Então miúda, tiveste saudades minhas? – Perguntei à Si a sorrir.
- Eu tive. Tu é que não deves ter tido minhas. Andaste por lá tão entretida. – Respondeu num tom de provocação.
- Opa, não me irrites.
- Hum… Estás a ficar apaixonada?
- Olha lá tu és maluquinha? Claro que não.
- Oh, pois, claro que não. Tu e a tua mania de negares a paixão. Está escrito na tua testa, Kika.
- Opa cala-te. Não posso, Si, não posso.
- Porquê? Vocês são os dois adultos e disponíveis.
- Sim, mas apaixonar-me por um jogador de futebol não faz propriamente parte dos meus planos.

Íamos conversando enquanto caminhávamos pelo Parque da Cidade, junto ao Rio, onde fui situado o restaurante.

- Isso não é preconceito, amiga?
- Não. Chama-se “ter dois palminhos de testa”. O David é uma pessoa espectacular, beija maravilhosamente bem, provoca em mim sensações indescritíveis e incontroláveis, mas… não, obrigada.
- Eu continuo a perguntar porquê?
- Oh Si, o Benfica conseguiu segurá-lo a época passada mas este ano não em parece que isso vá acontecer. E eu não posso alimentar uma paixão por uma pessoa que daqui a uns meses se vai embora.
- Alimentar uma paixão? Ah, afinal ela já existe.
- Porra, não te escapa nada.
- Sabes bem que não. E o que é que tem ele ir-se embora? Tu também não sabes onde vais estar daqui a uns meses. A vida dá muitas voltas.
- Oh, está bem, não me chateies.
- Ok, não se fala mais no assunto… (pausa) …mas eu se fosse a ti não desperdiçava um homem daqueles.
- Vai à merda. Olha lá, a que horas vais para baixo?
- Lá para as seis.
- Vais ver o jogo?
- Não. O Gustavo convidou-me, mas aquilo parece-me muita confusão para o meu gosto. E tu, onde vais ver?
- No café, claro. E estou cá com uma fezada que o Sporting vai ganhar.
- Hum, hum. E se o David cumpre a promessa?
- Mato-o, sem dó nem piedade.
- Hum, hum. E como? Com beijos ou com uma valente noite de sexo?

A Sílvia ria descontroladamente. Eu coloquei-lhe o braço direito por cima dos ombros, apertei-a contra mim e com a mão esquerda comecei a abanar-lhe a cabeça com toda a força. A Si gritava mas não se conseguia soltar. Eu tinha a vantagem de ser mais alta. Estávamos a aproximar-nos da esplanada do Itália, que por sinal estava cheia, e conseguimos colocar toda a gente a olhar para nós. Parecíamos duas miúdas no recreio da escola. Tentamos acalmar-nos, sentámo-nos mas nem um segundo depois voltámos a rir perdidamente. Éramos felizes assim. Parvinhas, mas felizes.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Capítulo 20 - Sorriso de Julieta


O meu quarto está decorado em tons de branco e preto. A única cor existente é a do quadro gigante, com a imagem de um pôr-do-sol pintado pela minha irmã, que se encontra na parede do lado esquerdo onde está encostada a cama. Ao fundo da cama está a secretária com o computador e logo a seguir uma estante com dossiers e papeladas. A parede do lado direito do quarto está completa com o guarda-fatos de quatro portas de correr. No canto, um enorme espelho e uma mesa com a maquilhagem, perfumes e cremes. A janela fica na parede em frente à porta. Foi lá que o David se foi encostar.

- Tem uma linda vista daqui! – Senti-lhe um tom sensualmente provocador na voz.
- Pois tem. Alguma coisa que te seja familiar? – Perguntei-lhe no mesmo tom, mantendo-me no entanto de costas para ele.
- Sim… (sorriu) … aquela janela lá no fundo.
- Hum. No sétimo andar, a terceira a contar da direita?
- Isso mesmo. Sabe que lá também tem uma bela vista. Se vê algo que eu acho que também te é familiar.
- A sério? O quê? – O tom mantinha-se provocador e eu continuava de costas.
- No sétimo piso, a segundo janela a contar do lado esquerdo. A janela onde você se encosta todas as noites. Esta onde eu estou.

Sorri disfarçadamente. Abri a pasta das fotos, levantei-me, encostei a cadeira à parede por baixo da janela e puxei a secretária, virando-a no sentido do ponteiro dos relógios de forma a que ficasse de frente para a cama.

- O que é que tá fazendo?
- Então, não queres ver as fotos de pé, pois não? Assim sentamo-nos na cama e vemos perfeitamente. Porque é que achas que comprei uma secretária com rodinhas?
- Bem pensado.

Eu subi para cima da cama e sentei-me encostada à parede. O David sentou-se ao meu lado. Estávamos os dois descalços e de pernas cruzadas.

Fui-lhe mostrando as fotos e explicando a ordem pela qual estavam. “Desde o dia em que chegámos até ao dia que viemos embora”. Fui decifrando cada rua, cada lugar, cada festa, cada sorriso. Falava entusiasmada, recordando a cada nova imagem os cinco maravilhosos meses passados em Roma. E o David ouvia atento, de sorriso rasgado. Falei-lhe do imponente coliseu, da mística Praça de São Pedro, das pontes, dos monumentos e da Fontana di Trevi. “O mais belo lugar em Roma. À noite é ainda mais bonita. Dizem que quem atira uma moeda, volta lá de certeza. Eu atirei”. Eu não conseguia controlar as emoções. Sorri e chorei. Acabei por falar-lhe da minha avó e de como a morte dela, no dia de anos de Sílvia, quase me tinha feito desistir daquela aventura. Vi as lágrimas humedecerem-lhe os olhos, enquanto ele limpava as que me corriam pelas maçãs do rosto. Mudei de assunto. Falei-lhe nas viagens fantásticas que fizemos, eu e a Si: Florença, Nápoles, Veneza e Verona.

- Veneza deve ser linda! – Afirmou ainda com a voz embargada.
- Sim. Linda, romântica, diferente, especial. Vamos ver as fotos.

Abri a pasta de Veneza e mostrei-lhe o local que me tinha deixado completamente encantada. Os canais, as gôndolas, as máscaras. As ambulâncias, táxis e autocarros que, ali, afinal são barcos. As ruas estreitas e o cheiro nauseabundo das águas paradas que não tiram, no entanto, a beleza à cidade. A magnífica Praça de São Marcos. A chegada de comboio e a partida para Verona.

- A cidade de Romeu e Julieta? – Perguntou-me com um brilho nos olhos.
- Sim. Que vale só por isso. É uma cidade pequena, simples, mas que respira amor por todos os poros.
- Mostra.

Abri a pasta de Verona. E lá estávamos, eu e a Si, no túmulo da Julieta; na casa da Julieta; ao lado da estátua da Julieta; com a mão pousada na sua mama direita “que foi o que vimos os outros turistas fazerem por causa de um ditote qualquer”, explicava-lhe; na varanda da Julieta; a escrever uma mensagem de amor na parede da casa da Julieta.

- Volta atrás. – Pediu-me o David.

Olhei para ele intrigada mas respondi ao seu pedido. Voltei à foto em que eu estava debruçada na varanda da Julieta, de sorriso rasgado.

- Que foi David, há algum problema com a foto?
- Não, nenhum.
- Então?
- Está linda, simplesmente linda. – Dizia, fixando o seu olhar no meu.
- A foto? Mérito da Sílvia. – Respondi-lhe, sentindo as mãos já a tremerem.
- Você… está linda. Com um sorriso de Julieta. Uma pessoa se apaixona por esse seu sorriso apaixonado.

Eu tentei desviar o olhar mas não consegui evitar um sorriso. Procurei uma resposta que me permitisse a fuga àquele elogio sedutor.

- É impossível não nos sentirmos assim em Verona. O romantismo pairava no ar.
- Eu estava falando desse sorriso…

Enquanto acabava a frase, tocou-me levemente com o dedo indicador nos lábios. Um arrepio percorreu-me o corpo. Continuei a sorrir e com o olhar desviado. Procurava em qualquer ponto do meu quarto um abrigo para o medo. Para o medo que sentia do desejo, das sensações, dos sentimentos. Mas aquela procura foi interrompida pela mão quente do David a percorrer-me a cara. Prendeu-me o queixo, quase a suplicar-me que lhe olhasse nos olhos e eu não ofereci resistência. Olhámo-nos profundamente e deixámo-nos levar pelo desejo. Beijámo-nos… primeiro docemente, depois com uma intensidade que quase fazia estremecer o prédio. Era um beijo que de tão apaixonado exigia um maior contacto físico. Sucumbimos ao apelo dos nossos corpos. O David puxou-me contra ele e eu deixei-me ir. Tinha perdido completamente o controlo do meu corpo. Abracei-o com força e instintivamente deixámo-nos cair na cama. Entrelaçamos braços e pernas e alternámos pequenos beijos doces com um bailado de lábios e línguas que nos deixava ofegantes. Por breves momentos permitimos que as nossas mãos percorressem o corpo um do outro, mas no mesmo instante soubemos que não podíamos ir mais além. Era como se a consciência que tínhamos da nossa amizade nos colocasse uma barreira ao prazer.

Deixámo-nos ficar simplesmente abraçados na minha cama, contemplando as maravilhosas sombras provocadas pela luz do luar e das estrelas no tecto branco. Ficámos assim uns bons minutos, sem trocar uma única palavra. Até que o David se virou para mim e me deu um beijo na testa depois de me fazer uma festinha no nariz, que me souberam deliciosamente bem.

- Tenho de ir, deve ser tarde.

Esforcei o olhar e vi as horas no computador.

- Sim, é quase meia-noite.
- Então é melhor eu ir.

Levantámo-nos e saímos do quarto. O David foi à sala buscar as suas coisas e eu fiquei encostada à porta à sua espera. Ele voltou com um sorriso que me deixou completamente derretida. Abri-lhe a porta.

- Vai com cuidado.
- Eu moro pertinho, lagartixa, esqueceu?
- Mas mesmo assim.
- Não se preocupa. Faz boa viagem para Coimbra. Me liga quando chegar.
- Obrigada. Fica prometido.
- Então vou indo.
- Vai. Boa noite.
- Para você também.

Sorrimos de forma cúmplice e o David voltou a beijar-me e eu voltei a não oferecer resistência. Ele saiu e eu estava quase a fechar a porta, quando um impulso tomou conta de mim.

- David! – Chamei quase em sussurro.
- Oi.
- Promete-me que não marcas um golo no sábado.

O David soltou uma gargalhada genuína.

- Shiu, olha os vizinhos. – Disse-lhe, tentanto também eu controlar as minhas risadas.

O David levou os dedos à boca em forma de cruz.

- Lagartixa, eu prometo que não marco um golo…
- Obrigada.
- … Marco dois! – Voltou a soltar uma gargalhada.
- Shiiiuuu. És mesmo parvo, pá!

O David voltou a entrar, agarrou-me pela cintura e beijou-me intensamente. Antes de sair, ainda me sussurrou ao ouvido: “Olha que eu cumpro o que prometo”. Rimo-nos os dois baixinho. Eu empurrei-o para fora e ele começou a descer as escadas. Eu fechei a porta e deixei-me deslizar. Fiquei ali sentada por breves momentos. Depois, como que se um clique me tivesse despertado para a realidade levantei-me, fui à cozinha fumar um cigarro. Podia ver o carro do David a afastar-se.

“No que é que tu te estás a meter Kika? A brincadeira ainda vai acabar mal, ai vai vai. Acorda, Kika, acorda! A tua realidade não é esta”. Fumei o cigarro todo com a minha consciência a atormentar-me, o que me estava a deixar ligeiramente irritada. “Oh fodasse, isto só pode ser sono”. Apaguei o cigarro, bebi um copo de leite, fui à casa de banho escovar os dentes e voltei ao quarto… desta vez sozinha.

domingo, 26 de setembro de 2010

Capítulo 19 - O mundo é mesmo pequeno!

 

Entrámos em casa no preciso momento em que recebíamos a resposta dos rapazes sobre o jantar. O David e o Ruben prometiam que estariam lá dentro de meia hora; o Gustavo dizia que não podia por já ter outras coisas combinadas.
Eu e a Raquel fomos directas à sala para pousarmos as tralhas que trazíamos connosco. Assim que entrámos a Raquel parou durante uns segundos. Olhava em seu redor tentando deslindar cada cantinho da minha sala. A primeira área onde fixou o olhar foi o canto esquerdo, onde estavam o sofá, o móvel da televisão, uma estante enorme de livros e, claro, as fotografias gigantes colocadas na parede. Eu já estava habituada àquela reacção das pessoas que conheciam a minha casa pela primeira vez.

- Brutal, Kika, brutalíssima esta tua parede. As fotos estão lindas!
- Obrigada.

As três fotos de que a Raquel falava eram minhas e da Si e estavam a preto e branco. A maior, ao centro, era uma imagem em que aparecíamos abraçadas. Estava cortada pelo peito e tinha sido tirada por um amiga numa saída nocturna em Roma. As outras duas, uma de cada lado da maior, tinham sido tiradas por uma fotógrafa profissional de Almada, amiga da Si, para exposição na loja que ela tinha aberto depois de termos vindo de Itália. Eram exactamente iguais. Numa estava eu, na outra a Si, ambas despidas com um enorme coração de peluche à frente. Eram fotos artísticas, sem qualquer exposição da intimidade, realmente bonitas.

- Bem… estou sem palavras. – sorriu – Adoro estas fotografias.
- Podes pousar as tuas coisas. Eu vou só ao quarto.
- Ok, vai lá, que eu vou continuar a apreciar a tua sala.
- Fica à vontade.

Fui ao quarto tirar sapatos e voltei num instante. A Raquel estava agora a passar da estante dos livros até ao expositor de fotos, onde passou o olhar levemente. Um quadro com um metro de altura com divisórias envidraçadas onde estavam fotos dos momentos mais marcantes da nossa amizade. Depois olhou para a parede do lado direito, coberta por um pano acetinado de cor branca onde estavam algumas fotos presas por alfinetes, por baixo da frase, escrita a vermelho, WE LOVE YOU.

- Vê-se mesmo que mora aqui uma fotógrafa. – Aproximou-se do pano – e cheira-me que estas pessoas…
- São as mesmas que nos preenchem o coração! – Terminei-lhe a frase com um sorriso – Ainda há muito espaço nesse pano. É uma espécie de mural sempre em actualização.

- Isto é a vossa cara. Mesmo. Espero que um dia haja espaço para uma foto minha aqui. – Apontou para o pano, piscando-me um olho.
- Haverá, com certeza.

Sorrimos. Eu encaminhei-me para a cozinha e a Raquel seguiu-me. Iniciámos juntas a preparação do jantar.
Estávamos atarefadas na cozinha quando a campainha tocou. Eram os rapazes. Entraram sorridentes e cumprimentaram-nos. Fiz-lhes sinal para me seguirem até à sala.

- Estejam à vontade. E, sim, podem ligar a Wii.

Por entre gargalhadas entrámos na sala. A Raquel veio atrás para apreciar a reacção dos rapazes.

- WOW – Proclamaram em simultâneo.
- Eu reagi da mesma forma. Estão lindas, não estão? – Perguntava a Raquel.

David e Ruben nem lhe responderam, limitaram-se a abanar afirmativamente com a cabeça. Deixámo-los a observarem a sala e voltámos para a cozinha. Pouco depois já os ouvíamos discutir.

O jantar estava a correr muito bem. A Raquel e eu estávamos de um lado da mesa, os rapazes do outro… o que ficava virado para as fotos gigantes. Por diversas vezes encontrei o David a fixar o olhar naquela parede, sem nunca lho ter dado a perceber. Já era suficientemente embaraçoso para mim ele não tirar os olhos das fotos. Tentei que ele desviasse o olhar de lá.

- David, há quanto tempo não vês os teus pais?
- Desde o natal. Mas eles estão vindo já em Fevereiro.
- Que bom. Posso imaginar as saudades que tens. Os meus estão mais perto e eu mal posso esperar para abraçá-los novamente.
- Já só falta um dia, Kika! – Dizia a Raquel sorridente.
- Então, vais para Coimbra amanhã?
- Sim, Ruben, tenho o aniversário da minha irmã.
- E voltas depois com a Sílvia?
- Não Raquel. A Si vem no sábado porque tem trabalho no dia seguir. Eu venho só domingo.
- Ué, não vai assistir ao derby? – Perguntou-me o David, com ar surpreendido.
- Vou, claro… no café, sentada ao lado da minha mãezinha. Sempre no meio da confusão – soltei uma gargalhada.
- E estás preparada para sofrer?
- Sim Ruben. E para ganhar também.
- Oh lagartixa, não se enche de confiança que depois dói mais.
- Que engraçadinho, caracolinhos. O que me vai doer a sério é voltar a ver-te marcar um golo ao meu Sporting, isso sim espero que não aconteça.
- Então se prepara, que vai doer a dobrar.
- Ui, temos promessa – interrompia o Ruben, em tom de provocação – e olha que ele costuma cumprir com o que promete, Kika.
- Pois a mim soa-me mais a ameaça. E eu não me deixo intimidar facilmente. – Soltei uma gargalhada. – Agora vamos lá a arrumar isto enquanto eu vou tirar os cafés.

Estávamos já todos sentados no sofá a beber café. A Raquel percorria com o olhar todos os livros colocados nas estantes. Ia dizendo quais os tinha lido, os que amava e os que odiava.

- Andas a ler algum agora, Kika?

Apontei-lhe para a estante do fundo onde, por cima de um monte de revistas e jornais, estava o “Música de Praia”. A reacção da Raquel foi inesperada.

- AAAAAAHHHHHHHHH… eu não acredito!
- Que foi rapariga?
- Eu simplesmente amo este livro. Li-o apenas uma vez, ando a tentar comprá-lo há imenso tempo e não consigo.
- Ah, eu sei o que isso é. Demorei seis anos para o encontrar. É a segunda vez que leio. A primeira foi quando estava em Roma.
- A sério? Uma parte da história passa-se lá.
- Sim, essa é a parte gira de o ler estando lá a morar. Conseguia identificar facilmente alguns dos locais de que o autor fala.
- Viveste em Roma?
- Sim, cinco meses e tal. Fiz lá Erasmus, precisamente com a Si. E foi lá que conheci uma amiga que me emprestou o livro.
- Oh, eu adorava conhecer Itália. As cidades de Roma, Milão, Veneza… ai só de imaginar, fico nem sei como! Olha, a mim também foi a minha amiga Sara que mo emprestou. Ai que saudades da Sara, ela agora está lá longe, nos seus aviões. – Ia dizendo a Raquel de olhos fechados.

Eu olhava deliciada mas também intrigada. Havia tantas coincidências naquelas nossas amigas Saras.

- A mim também foi a minha amiga Sara, que curiosamente é lisboeta, mas que neste momento também está longe, a trabalhar como assistente de bordo.
- A sério? – Perguntava a Raquel franzindo o nariz – Qual é o apelido da tua amiga?
- Faria.
- NNNNÃÃÃÃOOOO! Opa, só pode ser a mesma. Tu queres ver Ruben que ela está a falar da minha Sarinha que, agora que me lembro, também estudou em Roma. Tens alguma foto da tua amiga, Kika?

Não lhe respondi. Limitei-me a apontar-lhe para o expositor das fotos, enquanto sorria com a certeza de que estávamos a falar da mesma pessoa. O que, pensando bem no assunto, me parecia demasiado óbvio, pois a Raquel tinha tantas atitudes e comportamentos que me faziam lembrar da minha bella Sarita. A Raquel percorreu as fotos do expositor com uma velocidade estonteante e rapidamente encontrou a Sara. Soltou uma gargalhada que acabou por confirmar as nossas suspeitas.

- Olha a minha Sarinha! A ruiva com os olhos verdes mais lindos à face da terra.

Olhámo-nos cúmplices e sorrimos docemente. Se já gostávamos tanto uma da outra, a amizade que nutríamos pela Sara só veio reforçar a nossa ligação.

- Quando eu acabar de o ler, empresto-to. – Disse-lhe tranquila, mas já magicando na minha cabeça um novo desafio para as poucas horas que ia passar em Coimbra. “Arranjar o livro à Raquel, não esquecer”.
- Obrigada Kika.

Os rapazes continuavam sentados no sofá a apreciar a nossa conversa. Nunca interromperam. Perceberam que aquele era um momento só nosso. A Raquel continuava encantada com aquela coincidência.

- O mundo é mesmo pequeno, não é? – Perguntou e ficou à espera que todos afirmássemos que sim com a cabeça para continuar – Olha e agora estava a lembrar-me de outra coisa. Podíamos ir os seis a Itália, que me dizem?

Desta vez não houve resposta. A Raquel fez beicinho e todos sorrimos.

- Amor, pensamos na ida a Itália noutra altura. Eu agora estava mais numa de viajar… até casa, que dizes?
- Oh, és mesmo desmancha-prazeres. Mas sim, vamos, está tarde.

Levantámo-nos e dirigimo-nos os quatro à porta. Pensei que eles se fossem todos embora mas depressa percebi que essa não era a intenção do David. Fiquei um pouco incomodada por saber que ia ficar a sós com ele, em minha casa, mas temendo ser mal compreendida voltei naturalmente à sala e atirei-me para o sofá. O David seguiu-me e fez o mesmo.

- Então, você viveu em Roma? Você é uma caixinha de surpresas!
- Não sou nada. Só que nunca tinha calhado em conversa.
- Eu amava conhecer Roma. Acho que a Raquel tem razão, devíamos ir os seis!
- Opa, não sejas tolinho. Achas que alguma vez teremos compatibilidade de férias?
- Poxa, você ‘tá sempre complicando. A gente se arranja. E fotos você tem?
- Oh caracolinhos, claro… eu estive em Itália com a Si, achas que não tenho fotos?
- Claro. Você mostra para mim?
- Sim. Anda! – Ordenei-lhe, sem pensar muito bem no que estava a fazer.

Levantei-me e caminhei para o meu quarto. Entrei e liguei o computador portátil. Senti o David entrar e percebi que ele estava a examiná-lo ao centímetro. Olhei para ele e deixei-me encantar pelo seu rosto iluminado pela luz do luar que invadia o quarto. Esbocei-lhe um sorriso e voltei-me para o computador, tentando disfarçar o nervosismo.

sábado, 25 de setembro de 2010

Capítulo 18 - Elas são iguaizinhas!

 

Quando saí do prédio do David encontrei a Si encostada ao seu carro, de sorriso rasgado, a abanar as chaves que tinha na mão direita. Fitou-me com o seu olhar curioso e eu não evitei um sorriso denunciador. Ela atirou-me as chaves num movimento veloz.

- Levas tu o carro – ordenou-me – porque eu estou farta de conduzir hoje e para além disso quero ir sentada descontraidamente a ouvir-te.
- A ouvir-me? – Perguntei-lhe com uma curiosidade fingida.
- Sim, Kika, e escusas de tentar enganar-me que eu sei que alguma coisa se passou naquela cozinha.
- Ok, ok, vamos lá embora que está um frio do caraças.

Entrámos no carro e arrancámos. Mal tínhamos saído do estacionamento do prédio e já a Si estava sentada de lado, a olhar para mim atentamente.

- Então, houve beijo?

Eu olhei para ela e sorri. Por muito que me esforçasse nunca iria conseguir mentir-lhe. Nem a ela nem a ninguém. Estava com aquela sensação de que tinha escrito na testa “Beijei o David Luiz”.

- Oh, claro que houve beijo. – Disparava a Sílvia - Esse sorriso diz tudo. Como foi?
- Bom.
- Só bom?
- Não, tens razão, foi muito bom. Mesmo.
- Foi tipo para fazerem as pazes depois daquela cena esquisita na sala?
- Não. Foi um prémio.
- Um prémio?
- Sim. Para o vencedor do jogo de bowling. – Sorri envergonhadamente.
- O quê? Não posso crer. Então tinham tudo combinado? Foi tudo encenação?
- Não, não. Nada disso.
- Então explica-te se faz favor.
- Sim mãezinha.

Soltámos uma gargalhada conjunta e eu comecei a contar à minha melhor amiga aquela história maluca.
Chegámos a casa e o tema da conversa mantinha-se. Enquanto eu falava, entrei no meu quarto e a Sílvia seguiu-me.

- Bem… por isso tu não consegues tirar esse sorriso enorme da cara.
- Oh, não sejas assim.
- Assim como, Kika? Tu estás completamente derretida. O que é perfeitamente compreensível, afinal de contas o David é um homem com H grande, com O grande, com M grande… enfim, esperemos que com tudo muito grande.
- Sílvia sua porca depravada. – Gritei-lhe. – Sai já do meu quarto.
- O que foi? Vais-me dizer que não pensas o mesmo?
- Sai, sai, sai – disse-lhe por entre sorrisos e empurrões – vai lá dormir, que estás a precisar.

A minha amiga não conseguia parar de rir. Mas, resignada, lá se encaminhou para a porta. Saiu e quando estava mesmo a fechar a porta atrás de si, voltou-se para mim. Pela cara, consegui adivinhar-lhe uma provocação.

- Esse rapaz faz-te bem. Esse brilho nos teus olhos está quase a cegar-me.
- Xô. Vai para a cama. – Disse-lhe imitando uma voz zangada.
- Ai, David Luizzzzzz – Ela tentava um sotaque brasileiro e fingia uma voz orgásmica. Tentei mandar-lhe uma almofada, mas a Si fechou a porta num ápice. Ainda a ouvi gritar no corredor. – E tem um amigo giríssimo. Aquele Gugu. Oh My God.

Soltei uma gargalhada descomunal. De facto, aquele dia tinha sido realmente encantador. Não só pelo magnífico beijo do David, mas pelos amigos que tinha acabado de fazer e por ter conseguido passar uns momentos agradavelmente descontraídos com a minha melhor amiga. Coisa que há muito não acontecia.

Instintivamente, fui encostar-me na janela. Olhei lá bem para o fundo e conseguia adivinhar o vulto do David na outra janela. Naquela tarde tinha ficado ainda com mais certezas de que era ele. Sorri e fiquei à espera da prometida mensagem, que não tardou em chegar.

“Vou dormir com o gosto do seu beijo :) Amei o dia. Obrigada, lagartixa campeã de bowling... na Wii. Beijo”

Deixei-me levar pela sedução daquela mensagem e respondi-lhe quase sem pensar.

“E eu vou dormir com o toque doce dos teus lábios :) Também gostei muito. Obrigada eu, caracolhinhos derrotado. Beijo”.

E foi de novo com um bailado de borboletas a invadirem-se o corpo que me deitei e adormeci.

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A semana começou de forma muito cansativa. As horas de espera na Câmara do Seixal por um papel desaparecido e a reunião desgastante com o Dr. Gonçalves e o João tornaram a minha segunda-feira num verdadeiro tormento. Daquele encontro tinha saído a decisão de apostarmos apenas numa inserção pontual de publicidade nos jornais e rádios que tinham divulgado a iniciativa dos miúdos e a informação de que em Abril, quando a empresa comemorasse mais um aniversário, faríamos uma grande campanha publicitária. Já no meu gabinete tratei de marcar por telefone as várias reuniões que teria ao longo da semana com os técnicos comerciais dos vários órgãos de comunicação para acertar todos os pormenores. Nessa noite, voltámos a encontrar-nos os seis para um jantar num restaurante em Odivelas, depois do treino do Gustavo.
Na terça e na quarta-feira fiz uma maratona de reuniões. Horas e horas de trânsito, discussões e mais discussões e um sem número de contas feitas para ajustar os preços que me eram apresentados ao orçamento global que me tinha sido disponibilizado na empresa. Na noite de terça-feira voltámos a jantar os seis, desta feita em casa do Ruben e da Raquel. Aqueles jantares a seis começavam a tornar-se um pseudo-ritual. Eram divertidos encontros, marcados por discussões de todas as espécies, jogos de consola e sessões fotográficas feitas pela Si. Embora nos conhecêssemos todos há poucos dias, nem por um minuto as “estrelas da companhia”, o David e o Ruben, se mostraram incomodados com as fotos tiradas pela Si. Ela obviamente começou por pedir-lhes autorização e garantiu-lhes que jamais utilizaria aquelas fotos com fins menos próprios. Eles sabiam que ela também fazia serviços de paparazzi mas acreditaram piamente nela e a máquina fotográfica da Si começava já a fazer parte “do grupo”. Na quarta-feira, almocei com o Paulo e a Sílvia, que durante a tarde viajou para Coimbra. Tinha finalmente os seus merecidos dias de descanso. Nessa noite jantei com o Paulo no Seixal. Aproveitar para colocá-lo a par de tudo o que passava.

A quinta-feira prometia mais do mesmo. Reuniões, contas, papeladas. Uma verdadeira correria. Tinha reservado o dia apenas para os jornais desportivos e de manhã fui logo para Lisboa. Confesso que ao fim de quase sete meses, conduzir naquela cidade ainda me atormentava. Às quatro e meia da tarde tinha o trabalho concluído. Apesar de não conhecer muito bem Lisboa sabia que a faculdade onde a Raquel estudava não ficava longe e por isso resolvi desafiá-la para um cafézinho. Por sorte a Raquel estava a sair das aulas e em menos de quinze minutos já estávamos sentadas numa bela esplanada à conversa.

- Então já falaste com a Si hoje? – Perguntava-me a Raquel por entre duas goladas do café.
- Já. Está óptima. Está de férias e ainda por cima ao pé dos miminhos da mamã…
- Pois, imagino. Aliás não sei como vocês conseguem viver tão longe da família. Posso? – Perguntava-me apontando para o meu maço dos cigarros.

Acenei-lhe positivamente com a cabeça e devo ter feito uma cara surpreendida, porque tratou logo de me esclarecer que de vez em quando um cigarro lhe sabia bem.

- Não é fácil, Raquel, mas é suportável. E depois o stress do dia-a-dia não deixa muita margem para pensar nisso.
- Eu acho que não conseguia.
- Conseguias claro. O ser humano tem capacidades recônditas que só descobre quando a necessidade aperta. Se algum dia precisares de o fazer vais conseguir, de certeza.
- Sabes, eu penso muito nisso Kika. O Ruben a qualquer momento pode sair do Benfica e do país e eu faço tenções de acompanhá-lo. Ai, mas vai custar-me tanto estar longe da minha mãezinha.
- Pois mas se calhar é melhores começares a preparar-te.
- Sim, já comecei. Acho de que desta época não passa. – Sorriu tentando evitar a tristeza – Mas será para o bem dele. É a profissão dele, certo? E mudando de assunto. Já falaste com o David hoje?
- Hum, porque noto uma certa provocação nessa pergunta, Raquel?
- Oh… (sorriu), eu acho que há qualquer coisa em vocês, não sei, o sorriso com que sairam da cozinha no domingo, a forma como se olham mas também como se evitam, sobretudo fisicamente. Sei lá, estarão a fugir de algo mais forte que vocês?

Olhei-a durante uns bons segundos em silêncio e percebi que ela ansiava por uma informação importante.

- Pareces a Si. Vocês fazem cada filme… minha nossa!
- Ah, mas afinal não sou a única a notar qualquer coisa. E ela conhece-te tão bem como eu conheço o David. E eu sei o que se passou na cozinha. – Dizia, enquanto me fitava tentando desarmar-me.
- Sim, houve um beijo. Mas não passou de uma brincadeira.
- Ahhh, andaram a brincar aos papás e às mamãs? – Soltou uma gargalhada que pôs toda a gente na esplanada a olhar para nós.
- Fala baixo. – Repreendi-a por entre um sorriso envergonhado – É o que eu digo: tu e a Sílvia são iguaizinhas. Ambas completamente maluquinhas da cabeça. Eu e o David somos só amigos, capisce? Tal como eu e tu somos amigas.
- Credo – a Raquel voltava a levantar, sem perceber, o tom de voz – Nós não andamos para aí aos beijos.

Fez uma cara tão engraçada que eu soltei uma gargalhada. As atenções estavam de novo centradas em nós. Baixámos as cabeças tentando disfarçar a vergonha mas não conseguíamos parar de rir descontroladamente. Ao fim de alguns minutos e muitos exercícios de respiração, estávamos recompostas.

- Mudando de assunto novamente, Raquel. Hoje podíamos jantar lá em casa. Não me apetece nada estar sozinha.
- Parece-me muito bem. Ligamos aos rapazes. Oh… mas não vão estar os seis magníficos reunidos. – Dizia enquanto fazia uma espécie de beicinho.
- Pois não. – Sorri – Mas vai ser divertido na mesma. E como amanhã também vou para Coimbra e só volto domingo, era giro.
- Vais para Coimbra?
- Sim, tenho o aniversário da minha irmã.
- E vais perder o derby? Pensei que tinha companhia para ir ao estádio…
- Vejo na televisão. Mas não quero faltar à festa da caçula.
- Fazes bem. Eu também não faltava. Bem vamos ligar aos rapazes?
- Sim.
- Então liga ao David que eu ligo ao Ruben e ao Gustavo.
- Não estarão no treino?
- Hum talvez. Mandamos mensagem, então, eles depois lêem.
- Ok. Olha vamos pagar que eu tenho de ir andando.
- Está bem. Dás-me boleia? Hoje vim de transportes.
- Sim, então vamos lá até à margem sul.

Saímos do café e metemo-nos à estrada. A viagem até minha casa foi longa mas divertida. Descobri que havia alguém que cantava pior que eu e que esse alguém se chamava Raquel. A minha mais recente amiga. Começava a acreditar sinceramente que havia um qualquer propósito para o David me ter batido no carro naquele maldito dia. “Maktub” pensei, por entre um sorriso rasgado.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Capítulo 17 - Furiosamente extasiada

 

Estava demasiadamente confusa com aquela reacção do David, que me tinha apanhado de surpresa. Ia jurar que tinha sentido algum encantamento e desejo na conversa sobre o prémio para o vencedor. E por isso, para além de constrangida sentia-me também enganada. O que provocava em mim uma certa exasperação. Respirei fundo três vezes antes de entrar na cozinha.
O David estava de pé em frente ao frigorífico aberto. A mão esquerda apoiada na parede, a direita pousada sobre a porta. Voltei a respirar fundo, fechei os olhos por uns segundos e acalmei-me.

- David.

Chamei-o delicadamente. Fiquei atrás dele à espera de uma resposta. Mas o David não disse uma única palavra, nem fez um movimento sequer. Passei, então por trás dele, e fui encostar-me ao balcão de granito preto. Estava mesmo atrás da porta do frigorífico. Apesar do meu metro e sessenta e cinco, tinha a altura suficiente para conseguir ver o David por cima da porta e tinha a certeza de que também ele me podia ver.

- David. – Voltei a chamar.

Mas o David voltou a agir como se eu não estivesse ali. Comecei a sentir o meu coração a bater mais forte. Tinha a noção de que estava a ficar deveras irritada com aquela atitude que me começava a parecer infantil. Olhei-o e não consegui resistir a um momento de contemplação dos seus traços faciais perfeitos. Os caracóis caíam-lhe sobre a cara sisuda. Atrevi-me a ler-lhe o olhar e percebi claramente que o David estava há um bom par de minutos a olhar para o interior do frigorífico à procura de… nada. Não resisti a testá-lo.

- Estás à procura do quê?
- Das mangas – respondeu-me secamente.
- Hum, hum. Das mangas… ok.
- Sim. – Balbuciou.

“Estupor”, pensei enquanto me apercebia que exactamente à minha frente, em cima da mesa da cozinha, por entre as mais variadas peças de fruta colocadas no interior da fruteira amarela se encontravam duas mangas. Senti o sangue a fervilhar-me nas veias e não consegui evitar uma erupção de palavras que me saíam da boca quase em atropelo, enquanto o meu cérebro latejava a um ritmo alucinante.

- David eu não sei que raio de bicho te mordeu, mas eu não acho nada normal esta tua atitude. Por favor, era só um jogo. Um maldito de um jogo… que era suposto ser divertido e terminar bem. Eu até percebo que tu não gostes de perder, eu entendo, ai se eu entendo, porque eu também odeio perder nem que seja a feijões, mas por amor de Deus nada justifica esta tua reacção. Aliás se eu soubesse que tu ias reagir assim eu juro que eu nunca te tinha proposto jogar, eu juro que eu nem sequer tinha agarrado naquele comando, quero dizer tinha porque senão ele estatelava-se no meio do chão, mas eu tinha-o agarrado e pousado na mesa…

Os nervos começavam a fazer-me falhar a voz e a inércia do David alterava-me ainda mais e impedia-me de colocar um fim àquele monólogo.

- … eu juro que eu não tinha jogado, muito menos festejado aquela vitória. E tu nem imaginas como eu gosto de vencer, e nem sequer estou a falar no prémio, porque não era essa a minha intenção, mas ….

David olhou-me de soslaio quando pronunciei a palavra “prémio” mas continuou mudo, estático e de imediato voltou a fixar o olhar no interior do frigorífico. Eu tinha dito a palavra “prémio” com a intenção de provocar nele qualquer reacção, mas a minha tentativa tinha-me saído falhada. O que me deixou completamente exaltada.

- … mas, porra David, podes tirar os olhos de dentro da porcaria do frigorífico e olhar para mim um segundo? Será que te estou a pedir muito? Opá, não gostaste de perder, di-lo simplesmente. Agora não faças de mim parva, que é o que estás a fazer, porque eu estou aqui há cinco minutos a tentar conversar contigo e tu não ligas merda nenhuma àquilo que eu estou para aqui a dizer e isso está a tirar-me completamente do sério. Percebes, David? Estás a ouvir? Epá diz qualq….

Não consegui acabar a frase. Num ápice o David fechou a porta do frigorífico, colocou-se à minha frente, agarrou-me na nuca com a mão direita e beijou-me os lábios. Senti o meu corpo estremecer. Um arrepio percorreu-me a pele milímetro a milímetro, o meu estômago transformou-se num bailado de borboletas esvoaçantes, o meu coração encolheu-se com tamanha timidez. Fechei os olhos e deixe-me levar por aqueles segundos de prazer ao sentir os seus lábios húmidos pressionarem os meus delicadamente.

As nossas bocas separaram-se, eu abri os olhos e vislumbrei o mais encantador dos sorrisos à face da terra. Olhei-o fixamente, procurando na sua expressão uma explicação para aquele momento mágico. A resposta saiu da boca da perfeita do David.
- Você fica linda quando está zangada…

O David soltou uma gargalhada contagiante e eu limitei-me a esboçar um sorriso envergonhado.

- aliás, você é linda de qualquer jeito!

Nem um “obrigada” consegui proferir. Por muito que tentasse as palavras não me sairiam. Coloquei a minha mão esquerda por cima da sua mão direita, que continuava a segurar-me na cabeça, e entrelacei a minha mão direita nos seus caracóis. Contemplei profundamente cada traço do seu rosto e beijei-o… com todo o desejo que me percorria o corpo e me libertava a alma. Ele correspondeu à minha ânsia. Envolveu-me com o seu braço esquerdo e apertou-me contra o seu corpo. Sentia-me plenamente extasiada. Sentia o meu coração palpitar de forma atabalhoada e a minha excitação aumentava ao ritmo das batidas aceleradas do coração do David contra o meu peito. As nossas línguas envolviam-se numa sintonia perfeita e os nossos lábios pareciam não querer pôr fim àquele beijo. A cada movimento das nossas bocas, os nossos corpos contorciam-se um bocadinho mais. Conseguia sentir o prazer daquele beijo em todas as partes de mim… e dele. Até que leves toques de lábios findaram aquele beijo ardente. Olhámo-nos profunda e intimamente e sorrimos.

Não conseguia afastar o meu corpo do dele, mas por breves segundos a realidade tomou conta de mim e eu temi que alguém entrasse na cozinha. O David percebeu e afastou-se.

- Então, foi um prémio justo para a sua brilhante vitória?
- Justíssimo – respondi-lhe a sorrir – mas agora podes explicar-me que atitude foi aquela?

O David soltou uma gargalhada sonora.

- Foi um escape.
- E querias escapar do quê?
- Do desejo louco de te beijar assim que percebi que você tinha ganho.
- Hum… e fingires-te de irritado e consequentemente irritares-me foi a única saída que encontraste?
- Sim. Eu sabia que assim você viria atrás de mim.
- Ai sim? E se eu não viesse?
- Nan. Você não iria ficar parada. Você é mulher de ir nem que tenha de quebrar a cara. – Sorriu
- Ui, andaste a traçar-me o perfil?
- Mais ou menos – Deu-me mais um pequeno beijo.
- Olha, e as mangas? Encontraste-as no frigorífico?
Soltámos uma gargalhada conjunta. Não conseguíamos desviar o olhar um do outro.

- “Então o sumo?” – gritou o Ruben da sala.
- Já vai manz – respondeu-lhe o David também aos gritos – e então, você me ajuda? - Perguntou-me.
- Claro.

Preparámos o sumo de manga em dez minutos, pegámos no jarro de vidro e regressámos à sala. O David foi à frente descontraído, eu segui-o a medo. Tinha a certeza de que aquele sorriso estúpido que não conseguia tirar da cara iria denunciar o que se tinha passado na cozinha.
Na sala, já estava tudo às avessas. O Ruben estava agora sentado à mesa junto à Raquel a conversar. O Gustavo e a Sílvia estavam sentados no sofá a rir de uma qualquer piada que mais ninguém entendia.

- Sai um suco saboroso – afirmou o David enquanto pousava o jarro em cima da mesa.
- Chiça, tanto tempo! Afinal, o que é que estiveram a fazer na cozinha? – Perguntou o Ruben com cara de gozo.
- Pshiu, ‘tá caladinho – dizia a Raquel enquanto lhe dava uma palmada na cabeça – Não tens nada a ver com isso.

Todos nos rimos e eu senti-me a corar. Depois de enchermos todos os copos com o sumo de manga do David, fomos para o sofá que, apesar de grande, não era suficiente para todos. O David foi buscar um “puff” gigante vermelho onde nos sentámos os dois. Aquela proximidade constrangia-me ligeiramente mas também me impedia de desmanchar aquele sorriso teimoso com que havia saído da cozinha. Os rapazes já se mostravam prontinhos para voltar ao jogos de consola, o que eu, a Raquel e a Si conseguimos impedir a muito custo. Da discussão sobre a obsessão dos homens pelos jogos passámos quase sem nos apercebemos para o tema futebol, daí para os treinos, daí para a questão trabalho e a partir daí foi um instante até eu voltar ao constrangimento.

- E tu kika, muito trabalho amanhã? – Perguntou-me a Si
- Oh sim e do duro. Reunião com o Dr. Gonçalves e o director financeiro para estudarmos estratégias de marketing e formas de publicidade em jornais e rádios. Discussão, papelada e mais papelada. – Acabei de falar e fiz uma expressão de preocupação.
- Que foi? – Perguntou-me a Raquel.
- Epá, esqueci-me de ir à Câmara do Seixal na sexta-feira. Amanhã cedo tenho de lá passar. Esqueci-me de ir buscar a porcaria das cartas de agradecimento para o Dr. Gonçalves assinar. Amanhã sem falta tenho de as enviar para o Vieira e para o Bettencourt.
Um burburinho de risos invadiu a sala. Mas eu não conseguia perceber onde estava a piada.

- Do que é que se estão a rir?

Olhava intrigada para cada um deles. Foi o David quem me fez entender a bronca em que me acabara de meter.

- Então, você já não entregou a carta para o Benfica ao Paulão na quinta-feira passada?

“Merda, não acredito que disse isto. E ainda por cima todos sabem daquela cena idiota”. Enquanto tentava organizar os pensamentos baralhados que me atormentavam a cabeça e me enchiam de vergonha, esbocei um sorriso amarelo. Mas as caras sarcásticas deles obrigaram-me a soltar uma gargalhada. Tapei a cara com a mão, enquanto procurava as palavras certas para dizer naquela situação.

- Ok, ok, eu assumo. Eu fui ver o treino do Benfica. Ai que vergonha – olhei para o David e transformei aquela conversa que sempre imaginei privada numa conversa de amigos. Recentes mas amigos.  - Desculpa ter-te mentido David, mas eu fiquei tão embaraçada quando vos vi que não me saiu outra coisa.

As gargalhadas deles aumentaram de intensidade. E foi por entre sorrisos que nos despedimos. A Raquel e o Ruben saíram primeiro, não sem que antes ela nos deixasse o seu número de telefone. Eu e a Si saímos logo a seguir. Despedimo-nos do Gustavo na sala e o David levou-nos à porta. A Si deu-lhe dois beijos e anunciou que ia andando, depois de inventar uma qualquer chamada urgente que se tinha esquecido de fazer. E nós ficámos ali a olhar-nos enternecidos, enquanto recordávamos, quase por telepatia, aqueles beijos trocados na cozinha.

- Xau David.
- Xau. Vão com cuidado a dirigir.
- Sim, claro. Não te preocupes.
- Daqui a pouco te mando mensagem.
- Eu fico à espera… no sítio de sempre.
- E eu vou mandar… lá, no sítio de sempre.

Aquela referência quase enigmática às janelas dos nossos quartos aguçou ainda mais o desejo de nos beijarmos. Nem eu nem o David oferecemos qualquer resistência à súplica intensa dos nossos lábios. Beijámo-nos de novo com excitação, enquanto apertávamos os nossos corpos mútua e entusiasticamente. Afastámo-nos, o David fechou a porta e eu encostei-me à parede para me segurar. Trinquei o lábio, soltei um sorriso e desci as escadas ainda perfumadas pelo cheiro do David.


terça-feira, 21 de setembro de 2010

Capítulo 16 - Resultado inesperado

 

A Sílvia saiu do carro com o seu sorriso mais fantástico. Parecia um pouco cansada mas nada que afectasse a sua boa disposição. Chegou junto de nós e deu-me logo dois beijos. Estava eu prontinha para começar as apresentações, quando a Sílvia se dirigiu ao David.

- Olá David, tudo bem? Eu sou a Sílvia. Obrigada pelo convite.
- De nada. Vamos subindo?

A Si era assim. Desenrascada. E não gostava nada de formalismos. Entrámos no prédio e o David pôs o pé no primeiro degrau das escadas. Eu fazia tenções de o seguir, mas bastou olhar para a cara da minha amiga para perceber que ela não. A Si até gostava de ir ao ginásio, fazer umas corridas e umas caminhadas… mas subir escadas não era definitivamente o seu forte. “Caminhar sim, mas a direito”, respondia-me quando eu a convidava a subir uns degraus.

- Desculpem lá mas eu vou no elevador, ok?
- Você prefere. Então vamos todos. – Respondeu-lhe o David.
- Não, vocês podem ir pelas escadas. Diz-me só em que andar saio?
- Sétimo.
- Obrigada. – Respondeu a Si, fazendo um sorriso provocador que eu conhecia tão bem e que não costumava ser bom presságio. – Estás a ver Kika, eu não te disse que descobria?! E como sou jornalista, vou directamente à fonte.
- Sim, claro. Entra no elevador e cala-te.

“Porra, ela estava a falar da janela. Vou matar esta gaja”, foram os primeiros pensamentos que me ocorreram depois de a ouvir. A Si entrou no elevador, mas o David não iniciava a subida. Olhou para mim intrigado.

- Ela estava falando do quê?
- Nada, não ligues, ela é meia maluquinha. Vamos subir. - E, sem olhar para trás, comecei a subir os degraus um a um.

Não estava a ser uma subida agradável, principalmente para uma pessoa como eu que não faz qualquer tipo de desporto, a não ser limpar a casa. “Sá falta um andar”, dizia-me o David tentando animar-me mas eu já estava quase morta.

- Espera, tenho de parar um bocadinho.
- Ok, inspira e expira lentamente que ajuda.
- Obrigada. – Disse-lhe enquanto fazia o que ele me aconselhava.

Recuperei um bocadinho o fôlego e continuei.

- Fazes isto todos os dias, David? – Perguntei-lhe enquanto subíamos.
- Sim. Não gosto muito de elevadores.
- Eu também não aprecio, mas não me vejo capaz de fazer isto todos os dias. Embora me fizesse bem. – Disse-lhe enquanto subia os últimos degraus – Mas sete andares é muita fruta.

Olhei em frente e vi a Si, sorridente, à nossa espera.

- Sete? – Perguntou o David.
- Sim, nós também moramos no sétimo andar.
- Eu sabia. – Disse muito baixinho, mas ainda assim de forma audível, enquanto fazia um sorriso infantil.
- Sabias o quê?
- Nada, não ligue não, eu sou meio maluquinho.

Fiquei demasiadamente intrigada com aquela resposta. Passava-me pela cabeça a possibilidade de ele estar a referir-se à janela, de aquele “eu sabia” ser a confirmação das dúvidas dele, que seriam iguais às minhas. Obviamente também me passou pela cabeça que eu estaria a fazer um grande filme com aquela situação, o que ultimamente era habitual. Estava a ficar completamente pateta e a culpa era daquele rapaz que estava à minha frente a falar comigo.

- Lagartixa, você ‘tá ouvindo o que eu ‘tou falando?
- Não, desculpa.
- Falei para você entrar – a porta estava aberta, e o David e a Si esperavam que eu entrasse – e pedi para você não fazer piadinha lá dentro.

Olhei para ele ainda mais confusa. Continuava atónita. Entrámos directamente para a sala, onde já estavam o Ruben, o Gustavo e a Raquel. Olhei em volta e não pude evitar um largo sorriso. “Já percebi”, murmurei enquanto admirava não só a decoração normal da sala mas também as várias fotografias, posters e até a camisola de campeão do Benfica com o número 23 que estava numa moldura na parede.
Enquanto o David nos apresentou o Gustavo, a Si apresentou-se sozinha, claro. A “playsation” já estava preparadíssima para mais um jogo e os rapazes nem hesitaram sentar-se no sofá e começar a jogar. Uma atitude que deixou a Raquel com os nervos em franja. Percebendo que não havia nada a fazer, dirigiu-se para a cozinha. Eu e a Si seguimo-la. Tal como eu, também a Sílvia parecia gostar da Raquel apesar de ter acabado de a conhecer. Abrimos frigorífico, portas de armários, gavetas, invadimos a despensa e meia hora depois tínhamos um belo lanche em cima da mesa da sala. Foi difícil tirar os rapazes de frente da consola, uma situação apenas resolvida pela paciente mas determinada Raquel. O lanche serviu não só para matarmos a fome mas também para conversarmos animadamente. No caso da Raquel serviu ainda para receber um convite, feito pela minha amiga Si, para pousar para um trabalho que ela estava a pensar fazer. Eu não percebo de fotografia para além do básico, mas de facto tenha de admitir que a Raquel era de uma beleza estonteante. Não foi fácil para a Si convencê-la, já que a Raquel defendia não ter nada de especial que proporcionasse umas boas fotos e assumia-se como uma crítica nata em relação àquele hobbie. “Recuso-me a chamar-lhe profissão”, dizia ela perante o nosso olhar atento. A conversa girava em torno daquela proposta que todos, à excepção da principal visada, defendíamos que devia ser aceite. Estávamos numa discussão animada quando o David se levantou, se dirigiu para o sofá e depois de alguns minutos resolveu interromper.

- E aí, lagartixa, vamo jogar?

“Fodasse” foi a minha primeira reacção àquela pergunta. Comecei a sentir o corpo todo a tremer quando o David me lança de longe o comando da Wii. Fiz um movimento brusco que quase me atirava da cadeira a baixo e segurei-o. Compus-me e estava pronta para me levantar quando o Ruben se intrometeu, a rir.

- Mano, tu és um bocado parvo. Já não viste hoje que ela não sabe jogar? Queres rir-te mais um bocadinho, é isso?

O David nem lhe respondeu. Ficou só a olhar para mim à espera da minha resposta. Eu nem abri a boca. Levantei-me e caminhei para junto dele. Entretanto, a Sílvia, que tão bem conhecia os meus dotes, caracterizados sobretudo por uma tremenda sorte com alguma agilidade à mistura e não propriamente pelo “know-how”, sorriu e gritou para o David.

- Se eu fosse a ti não fazia isso.

Mas ele manteve-se ali, sem qualquer movimento, à minha espera. Eu aproximei-me, pisquei-lhe o olho e perguntei-lhe serenamente.

- Quem joga primeiro?
- Primeiro as senhoras – Respondeu-me com um sorriso rasgado.

Eu sentia-me a tremer cada vez mais. A minha mão humedecida pelos nervos segurava com alguma dificuldade no comando, mas por momento algum deixei transparecer falta de confiança. Preparei o meu corpo e a minha mente e pensei para com os meus botões, antes de fazer o lançamento: “ok Kika, agora fazes aquilo que melhor sabes quando jogas – INVENTAS”.
O lançamento saiu perfeito. O David olhou-me de forma surpreendida e os quatro que continuavam sentados à mesa bateram palmas. Senti a vergonha a apoderar-se de mim. O David jogou, eu joguei, ele jogou, eu joguei… e o jogo manteve-se sempre renhido. A cada nova jogada o meu sorriso aumentava e o meu coração batia um pouco mais acelerado. Não sei se pela adrenalina de estar em “competição” se pelo facto de não conseguir tirar o prémio do pensamento. Eu fiz a minha última jogada, que apesar de atabalhoada saiu magistral, e faltava apenas uma jogada ao David. Olhei para ele e tentei intimidá-lo. Ele parecia não se deixar importunar. “Está habituado à pressão”, pensei. O David pegou no comando, preparou-se e… não conseguiu um lançamento tão magistral quanto o meu.

- Ganhei – disse-lhe com um sorriso rasgado – Eu disse-te que sou a campeã da Wii.
- Parabéns – respondeu-me friamente e apenas algum tempo depois.

Os aplausos dos nossos amigos fizeram dilatar ainda mais o meu sorriso. O Ruben e o Gustavo não paravam de fazer troça do David, a Raquel repetia vezes sem conta que “as mulheres são invencíveis” e a Sílvia limitou-se a balbuciar um “eu avisei-te”.
O David continuava sentado no sofá, com cara de poucos amigos, fingindo não ouvir nada do que lhe diziam. A Raquel e a Sílvia voltaram ao tema da sessão fotográfica, o Ruben e o Gustavo agarraram-se à Wii, eu olhava para o David e ele… bem, ele levantou-se disparado.

- Vou preparar o suco de manga.
- Obrigada, David. – Respondeu-lhe a Raquel, nunca deixando de prestar atenção à Sílvia.

O David olhou para mim de uma forma arrogante e começou a caminhar em direcção à cozinha. Eu fiquei ali, a olhá-lo, num misto de constrangimento e irritação.

- Este gajo passou-se! – resmunguei baixinho, mas de forma a que todos os outros pudessem ouvir.

A Sílvia, o Ruben, a Raquel e o Gustavo não deram a mínima importância ao que acontecera. A Si porque tinha acabado de conhecer o David, os outros três talvez por que o conhecessem bem demais. Mas eu… eu não consegui disfarçar o incómodo que estava a sentir naquele momento. Levantei-me determinada e caminhei em direcção à cozinha.