quarta-feira, 25 de maio de 2011

Capítulo 35 - O lado negro do amor

 

A chuva batia cada vez com mais força contra as portadas da sala e, ao longe, começavam de novo a ecoar alguns trovões. Sempre que o som era um pouco mais forte o David apertava-me ligeiramente contra ele, protegendo-me. Tínhamos consciência de que a tempestade estava a aproximar-se e com ela a mais que provável falha de electricidade mas, por ser ainda cedo, arriscámos iniciar uma sessão de cinema. A escolha, por unanimidade, recaiu sobre um filme cómico para tentar descontrair após um dia fatigante.
Envolvidos num abraço quente, assistimos com máxima atenção às primeiras seis cenas de filme. Mas as nossas gargalhadas foram, então, abafadas pelo estrondo de novo trovão e, tal como previsto, a casa ficou inteiramente às escuras. Ainda aguardámos, entre troca de beijos e carícias, pelo retorno da electricidade, mas acabámos por nos render à luz das velas, que eu tinha previamente guardado junto ao sofá. E foi naquele cenário intimista que se desenvolveu uma das mais difíceis conversas da minha vida.

- Kika, ontem nem falámos sobre o assunto… – Eu tinha a minha cabeça deitada sobre o peito do David e ele fazia-me um cafuné delicioso – como correu a conversa com a sua mãe?
- Queres que seja sincera?! – Perguntei-lhe sem o olhar nos olhos – Um bocadinho azeda.
- Mas você falou para ela o que foi fazer em Paris? – O receio era perceptível na pergunta do David.
- Não foi preciso dar-lhe pormenores. Bastou dizer-lhe que fui a Paris e ela percebeu tudo o resto. – O David parou aqueles movimentos circulares no meu cabelo.
- Então isso quer dizer que ela já sabe da gente? – O coração do David batia apressado. Podia senti-lo no seu peito.
- Sim, sabe.
- E aí?
- E aí o quê David? – Questionei-o, levantando a minha cabeça para o olhar de frente.
- O que é que ela pensa? – Sentei-me lentamente ao lado do David, que olhava para mim expectante.
- Pensa que eu estou completamente maluca, que me estou a precipitar, que posso estar a arriscar em demasia o meu bem-estar. –

Ele olhava para mim incrédulo. Talvez já estivesse à espera dessa opinião da minha mãe, o que certamente ele não esperaria era uma resposta tão frontal da minha parte. Senti-o incomodado e tentei colocar-me no lugar dele. Não tinha a certeza se ele já teria falado sobre mim aos pais, mas também a reacção deles me preocupava.
- Amor, não importa o que a minha mãe pensa, importa apenas o que eu sinto e o que eu quero. Ela está só a tentar proteger-me.
- De quem? De um jogador de futebol? É isso Kika, é porque eu sou o David Luiz? – A tristeza nos olhos do David começava a sufocar-me.
- Sim, talvez até seja isso. Tu sabes o preconceito que existe sobre jogadores da bola no que respeita a casos amorosos. E não é só a minha mãe que pensa assim, é o mundo inteiro. Assim como também há o preconceito em relação às namoradas dos jogadores. Porque são umas fúteis, porque só querem dinheiro e vida fácil, porque só querem férias de luxo e bons carros. É o que com certeza vão pensar de mim, talvez até a tua mãe! – O David levantou-se naquele momento, sentando-se no sofá. E eu percebi que estava a tocar num ponto fraco.
- Eu tenho a certeza que a minha mãe não pensa isso, Kika.
- Como é que sabes amor? Por acaso ela conhece-me, já lhe falaste de mim?
- Já falei um pouco, talvez não tenha dito tudo, mas eu tenho a certeza que assim que ela conhecer você ela vai perceber que você é uma mulher com carácter. – O timbre do David era, então mais fino, o que mostrava claramente o seu estado de nervos.
- Não podes ter tanta certeza. Mas isso também não interessa nada porque tão cedo eu não vou conhecer os teus pais.
- Porquê não? Eles estão vindo para Portugal. – O David fitava-me com provocação.
- Ainda é cedo David. Eu não quero conhecer os teus pais, não como tua namorada, e também não quero apresentar-te aos meus pais.
- Você ‘tá com medo do quê? Que os meus pais não gostem de você ou que os seus não gostem de mim?
- Não é nada disso, David. Pelo amor de Deus.
- É sim. Você mesma falou que a sua mãe não gosta de mim.
- Não. – Eu estava a ficar completamente irritada com aquela conversa, falava já de uma forma exaltada. – Não é nada disso. Ela nem te conhece. A minha mãe só quer proteger-me David.
- Já te perguntei… proteger de quem? De um jogador de futebol? – Também o David já se havia exaltado. Os seus grandes olhos estavam ainda maiores.
- Não, não, não. Pára, por fav….
- Pára você de me enrolar. Fala de uma vez por todas do quê sua mãe tanto te protege. – O meu coração parou naquele momento. E todas aquelas imagens iniciaram um rodopio frenético e imparável na minha mente. O meu sangue fervilhava nas minhas veias. Encostei-me no sofá e fechei os olhos.
- Da maldade, da dor, do sofrimento, de todos os erros que eu já cometi na minha vida… do passado, David, ela está a tentar proteger-me do passado!
- Então, abre o jogo comigo Kika. Deixa eu entrar na sua vida livremente, deixa eu entender esses seus medos, esse ódio que eu encontrei no seu olhar logo no primeiro momento em que a gente se cruzou.

O pedido do David era feito com a alma. Eu sabia-o. Assim como sabia que nunca estaria preparada para tocar naquele assunto, mas que ainda assim teria mesmo de o fazer. Levei as mãos à cara para os habituais movimentos circulares em torno dos olhos que tanto me caracterizavam e respirei fundo.

- Tenho primeiro que te pedir três coisas…
- Tudo o que você quiser! – O David nem me deixou terminar a frase.
- Não me interrompas, não me julgues e não tentes desculpar os meus actos. – Meio desconcertado com aqueles pedidos, o David assentiu com a cabeça. Encostou-se também ele no sofá-cama e arqueou as pernas. E foi entre as suas pernas, de costas para a porta da sala e olhos nos olhos com o David, que eu me sentei para lhe falar do meu passado.

- Bem… – a minha garganta estava seca, as palavras custavam a sair. Percebendo o meu desconforto, o David apertou-me as duas mãos. - … uma parte da história tu já conheces. Eu namorei com o Tiago durante sete anos e nos últimos dois ele conseguiu a proeza de me trair duas vezes. – Deixei escapar um sorriso tão cínico quanto doloroso. – A primeira, quando faltava cerca de um mês para fazermos cinco anos de namoro. Eu já trabalhava, ele andava ainda na faculdade, onde se envolveu com uma colega de curso mais nova que ele. O Tiago era um gajo bonito, atraente, ainda mais por ser comprometido. Foram para a cama umas poucas vezes. Pelos vistos ele precisava de algo que fugisse à rotina de um longo namoro, já ela estava mesmo apaixonada. E foi quando ela o confrontou com essa paixão e lhe pediu que fizesse uma escolha que ele percebeu que me amava e que não queria perder-me. Disse-me ele. Mas já era tarde, porque ela já tinha feito questão que eu descobrisse. Mandava-me mensagens e e-mails alertando-me para a traição e eu, que confiava cegamente nele, tentava a todo o custo evitar a verdade. Até que o confrontei com o assunto e ele assumiu o que tinha feito. Discutimos, eu chorei, gritei, saí de casa dele e jurei a mim mesma que nunca o iria perdoar. Pensei estar a viver o pior dia da minha vida. E nunca imaginei que aquele afinal era um dia tão agradável quando comparado com o que estava para vir. – O David continuava a ouvir-me atentamente. E as palpitações do seu coração pareciam acompanhar o meu sofrimento – Acabei por trair-me a mim própria, perdoando-o e dando uma segunda oportunidade a ele, a mim e, sobretudo, ao nosso amor. E aquele percalço na nossa história de amor parecia até ter lados positivos. A chama da paixão reacendeu-se, o Tiago desdobrava-se em manifestações de amor e em promessas de não voltar a fazer-me sofrer. E eu acreditava, comovida até com o seu auto flagelo. Durante os dois anos seguintes, redireccionámos os nossos objectivos para uma relação mais sólida. Ele acabou o curso e arranjou emprego em Coimbra, começámos a ver casas para arrendar e até já falávamos em casamento e filhos. Parecia tudo tão perfeito, que as mágoas do passado tinham sido fechadas a cadeado no baú das memórias. Até que o patrão do Tiago o inclui numa equipa que iria iniciar um projecto em Matosinhos. E ele mudou-se para lá, esperando regressar sete meses depois e adiando o início de uma vida em comum. Perante esta adversidade, nós comprometemo-nos a fazer sacrifícios, um pelo outro. Duas vezes por mês ele vinha passar o fim-de-semana a Coimbra, nas outras duas eu ia para Matosinhos. Ele fez lá amigos novos, que eu acabei por conhecer, e o nosso discurso sobre o futuro acabou por ter uns desvios. Começámos a falar em ficar em Matosinhos. Os novos amigos eram óptimas pessoas, organizávamos festas privadas, onde havia muita diversão mas onde também circulava muito álcool e, por vezes, muita droga. Nós, apesar de raramente consumirmos, esporadicamente cometíamos os nossos deslizes, fumando uns charros ou snifando linhas de cocaína, sem nunca nos vermos dependentes. Já com o álcool era diferente. Era normal apanharmos bebedeiras, socialmente. E era assim a nossa vida: quase perfeita! Por isso, aquela sexta-feira tinha tudo para ser normal. Eu iria trabalhar, à noite falaria ao telefone com o Tiago, que no sábado de manhã chegaria a Coimbra. Mas foi tudo menos o previsto. – Naquele momento as lágrimas rolavam pela minha cara desmesuradamente. Sem soluços, sem exaltações. Parecia estar num estado de transe. – Eu andava já com um atraso menstrual significativo e, por isso, na noite anterior resolvi comprar um teste de gravidez para fazer na manhã de sexta. Queria ter a certeza de estar grávida ou não, antes de ver o Tiago. Fiz o teste logo de manhã, como recomendado pelo farmacêutico, e em três longos minutos esperei pela resposta. Foi então que tive a melhor sensação da minha vida… quando olhei para o teste e vi que o resultado era positivo. Chorei de alegria, chorei tanto, David! Nunca fui tão feliz como naquele momento, é uma sensação inexplicável. Ter um filho era tudo o que eu mais queria, ser mãe era o meu maior sonho. Pensei em ligar ao Tiago, mas achei que a notícia era demasiado importante para ser dada pelo telefone. Então, resolvi esperar até ao final do dia para sair do trabalho e ir a Matosinhos fazer-lhe uma surpresa. Fui trabalhar de sorriso rasgado. Era tão evidente a minha felicidade que não passou despercebida aos olhos dos meus colegas do jornal. Mas eu guardei o segredo só para mim. Queria contar em primeiro lugar ao Tiago. No final de um dia que me pareceu demasiado longo, meti-me no carro e viajei rumo a Matosinhos, onde cheguei perto da hora do jantar. Não atendi os telefonemas do Tiago, mandei-lhe apenas uma mensagem a dizer que estava numa reunião importante. Queria fazer-lhe uma surpresa, mas foi ele quem acabou por me fazer uma a mim. – O meu choro tornou-se então incontrolável. Recordar aqueles dias estava a ser ainda mais doloroso do que eu previra. Mas o David continuava a mostrar-me o seu carácter. Não só não me interrompia, como ia aparando todas as minhas lágrimas, passando as suas mãos pelo meu rosto e pelo meu cabelo de cada vez que os soluços se tornavam mais angustiantes. – Vi o carro do Tiago estacionado em frente ao prédio e usei as chaves que ele me tinha dado para abrir a porta. Ao primeiro impacto, tive logo a certeza de que alguma coisa de errado se estava a passar. A sala, habitualmente arrumada, estava numa bagunça. Foi então que eu comecei a ouvir os gemidos vindos do quarto. Com o cérebro bloqueado e a visão já turvada pelas lágrimas, abri a porta e apanhei o Tiago com aquela puta na cama, a mesma gaja da faculdade. – Os soluços constantes e a respiração irregular, acentuada pelos meus problemas de asma, impediram-me de continuar a falar. Foi, então, que o David desrespeitou o meu primeiro pedido.

- Calma meu anjo, vai com calma. Relaxa um pouco meu amô. – Enquanto falava, o David envolvia-me num abraço apertado e beijava-me insistentemente o rosto. Deixei-me ficar assim, a afagar o meu choro no ombro do David, até conseguir acalmar-me um pouco.

- Aí sim David, comecei a viver o pior dia da minha vida! – Já refeita, voltei a olhar o David nos olhos e continuei. – A partir daquele momento esqueci-me do verdadeiro motivo que me tinha levado até àquela casa. Num rasgo de fúria, parti tudo o que havia para partir, atirei as roupas dela pela janela fora, agredi o Tiago fisicamente o mais que pude e deixei o apartamento deixando-lhe duas promessas: que nunca na minha vida o iria perdoar e que iria odiá-lo até ao fim dos meus dias. Depois disso, não me lembro de ter entrado no carro, não me lembro de ter guiado, não me lembro da praia onde fui parar… lembro-me apenas de ter perdido as forças e ter caído num choro incontrolável que era só o início do meu maior pesadelo. Saí do carro e corri até à beira-mar. Gritei, gritei, gritei… sempre na esperança de que o mar se revoltasse e me levasse com ele... para bem longe, para onde eu não pudesse sentir-me traída, suja, humilhada… para onde não pudesse sentir de todo. No limite das minhas forças, deixei-me cair na areia húmida e ali permaneci, num estado quase hipnótico. Quando pensei estar suficientemente calma, liguei ao Pedro, um dos nossos amigos, a pedir que fosse ter comigo e me levasse uma garrafa de vodka e um pacotinho de cocaína. Obriguei-o a prometer que não diria ao Tiago onde eu estava, ameaçando-o que se ele quebrasse o acordo, eu iria denuncia-lo à polícia por tráfico de droga. E ele cumpriu. Deixou-me ali sozinha naquela praia, onde eu cometi o maior erro da minha vida. Não sei bem em quanto tempo eu bebi toda a vodka que estava na garrafa e snifei toda a cocaína que estava no pacote… sem pensar uma única vez no bebé que já carregava no ventre. Egoísta, eu pensei unicamente em mim e no meu sofrimento e perdi o que de mais valioso a vida me tinha dado. Eu matei o meu bebé David!  Voltei a cair num choro descontrolado e ofegante. O meu coração parecia querer-me sair à força de dentro do peito. E só os gestos carinhosos do David me devolveram a falsa serenidade. Mas ele estava tão chocado com o que acabara de ouvir que, desta vez, não proferiu uma única palavra de conforto. Ainda assim, os seus olhos rasos de água mostravam-se piedade. – E esta culpa, David, vai ensombrar-me para sempre. A cada dia, a cada hora, a cada minuto... para sempre! – Só bastantes minutos depois, continuei. – Devo ter entrado numa espécie de coma alcoólico e acordei horas mais tarde, com umas dores insuportáveis no ventre e esvaída em sangue. Liguei para o 112 e pedi ajuda. Não me lembro do caminho até ao hospital, mas recordo estar deitada na cama e exigir sigilo da minha presença ali. Não queria que avisassem os meus pais. Prometi a mim mesma que não iria contar a ninguém sobre aquela maldade. Queria suportar o fardo sozinha, sem julgamentos mas também sem misericórdia. Saí do hospital no domingo, contrariando as indicações dos médicos, e regressei a Coimbra feita num caco. Os meus pais não estranharam a minha ausência porque pensavam que eu estava com o Tiago, e esse ordinário, como é óbvio, não ligou à minha procura porque julgou que os meus pais já soubessem e, claro, queria evitá-los. Eu, então, não precisei de dizer nada à minha mãe, ela viu nos meus olhos o meu sofrimento. Abraçou-me, confortou-me e chorou comigo. Respeitou o meu pedido para descansar e só horas mais tarde conversámos sobre o que se tinha passado no apartamento de Matosinhos. Só e apenas sobre isso. Embora ainda hoje ela me diga que tem a certeza que eu não lhe contei tudo o que aconteceu. Ela é mãe, ela conhece-me, ela sabe que só a traição – que para ela era a única, já que eu nunca lhe contei sobre a primeira – nunca seria suficientemente forte para me atirar para o poço onde eu caí bem fundo, no dias que sucederam aquele fim de semana. Na segunda-feira fui ao médico de família que me passou a “baixa” e fui ao jornal apresentar a minha carta de demissão, usando os dias que teria de trabalhar legalmente para a empresa para usufruir da baixa médica. Depois disso, tranquei-me no quarto, de onde só saía para ir à casa de banho e para ir comprar álcool e droga, que escondia nos mais diversos sítios. Bebia e snifava às escondidas dos meus pais mas eles sabiam, acabavam por descobrir as garrafas e os pacotes de cocaína e deitavam fora. Umas vezes vinham implorar-me que parasse de me destruir, outras ameaçavam que me iam internar. Mas isso não me demovia. Nem o choro da minha irmã, que deitada ao meu lado na cama me dava beijinhos, dizia que me amava e prometia que me ia ajudar, enquanto eu fingia estar a dormir, me impediam de a cada dia consumir mais e mais e mais. E só ao final de quase duas semanas de sofrimento a minha mãe resolveu pedir ajuda à Sílvia, que sabia já da traição mas desconhecia o que se passava dentro das paredes de minha casa, porque eu todos os dias lhe mentia descaradamente dizendo que estava tudo bem. Mas a Sílvia é a melhor de todas as amigas do mundo. No dia seguinte, às dez da manhã, estava no meu quarto, a colocar-me duas ou três mudas de roupa num saco e a dizer-me que eu tinha apenas quinze minutos para tomar um banho e meter-me dentro do seu carro. Discutimos, eu recusei-me a cumprir as suas ordens, ela deixou as falinhas mansas de lado e do alto do seu metro e meio fez-me acreditar que a partir de então a minha vida estava nas suas mãos. A Si trouxe-me para Lisboa, tirou férias e em duas semanas resgatou-me do lodo. Levou-me a uma psiquiatra, a Dra. Isilda Ramalho, que é uma grande profissional, e fez-me renascer. Conversámos muito, passeámos, divertimo-nos e a minha amiga, juntamente com a Dra. Isilda, ensinou-me a lidar com o passado sem ter de me refugiar no álcool e na droga. E ainda me levou à entrevista de emprego na empresa onde eu trabalho actualmente. Nos últimos dias do mês de Junho, voltámos juntas a Coimbra, onde os meus pais e a minha irmã me esperavam de braços e coração abertos. Mas a Sílvia voltou sem mim para Lisboa, fazendo-me iniciar uma nova caminhada na minha vida, sozinha. No domingo, dia 1 de Julho, os meus pais deixaram-me na estação de comboios em Coimbra e duas horas depois eu chegava a Lisboa lavada em lágrimas mas com uma enorme vontade de recomeçar a minha vida. E é o que tenho feito desde então. – Parei por alguns segundos, baixei o olhar pela primeira vez e deixei que o silêncio tomasse conta daquela sala. – Percebes agora porque é que a minha mãe, mesmo à distância, teima tanto em proteger-me? Percebes agora porque é que eu evitei com todas as minha forças apaixonar-me por ti? Porque é que eu sou tão medricas, como tu me chamaste em casa do Paulo?

Voltei a levantar a cabeça. O David olhava-me profundamente, ainda angustiado. Estava pálido, talvez mais do que eu. As suas olheiras arroxeadas denunciavam as lágrimas que o meu choro me impedira de ver. Esticou as pernas já dormentes, entre as quais eu estava sentada, e puxou levemente a minha cabeça, deitando-a sobre o seu peito. E eu sussurrei-lhe, por entre mais um soluço.

- Porque o que mais me fez feliz na vida foi também o que mais me fez sofrer e quase me matou: o amor, o maldito amor!
- Desculpa todas as vezes que eu fui injusto com você… – Com a sua mão direita, o David levantava-me o queixo de forma a poder olhar-me nos olhos. – Agora, deixa eu te fazer feliz, deixa!
- Só se me prometeres que me deixas fazer-te feliz! – Sorri-lhe, docemente. E o David olhou-me intensamente, antes de me surpreender.
- Eu te amo! – Proferiu, com um brilho nos olhos rasos de água e a voz trémula.
- Obrigada! – Respondi-lhe, antes de lhe oferecer o meu amor na forma de um beijo.

Permanecemos assim, abraçados, por um tempo indeterminado. O tempo suficiente para eu me recompor das emoções de ter recordado dias tão duros do meu passado e o necessário para o David assimilar tudo o que acabara de ouvir. Precisávamos daquele silêncio para entregarmos a nossa alma uma outro, depois de já termos entregue os nossos corpos.
A chuva tinha parado de fustigar as janelas da sala, mas a tempestade ainda não tinha terminado. O David interrompeu aquele momento, com a primeira das muitas perguntas que tinha para me fazer e das quais eu já estava à espera. Nem por um segundo desviámos o olhar um do outro, nem podíamos fazê-lo, pois só assim sentíamos aquela conversa como totalmente transparente.

- Kika, você nunca contou para o Tiago que você estava esperando um filho dele?
- Não e nunca irei contar-lhe. Aliás eu nunca mais falei com o Tiago sobre o que aconteceu. Já nos cruzámos algumas vezes, mas eu sempre recusei falar do assunto, apesar das tentativas dele.
- E se você não tivesse perdido esse bebé?
- Não iria contar, de qualquer das formas. Nunca pensei o que teria feito para esconder-lhe, mas te garanto que ele nunca iria saber que aquele filho era dele. Todos os laços que me uniam ao Tiago soltaram-se naquela noite de Junho, e nem um bebé fruto da nossa união iria voltar a juntá-los. – Eu e o David permanecíamos focados um no outro e eu não sentia por parte dele qualquer censura às minhas palavras.
- E para a Silvinha, porquê você nunca contou sobre esse bebé?
- Eu tentei, eu juro que tentei. Desde que ela me foi buscar a Coimbra que tenho tentado contar-lhe todos os dias, mas…
- MAS SETE MESES NÃO CHEGARAM PARA TU DIZERES A VERDADE À TUA MELHOR AMIGA, É ISSO?

Aquelas palavras gritadas com raiva e desilusão atingiram o meu coração que nem um raio, fazendo-o congelar. De olhos esbugalhados, o David ia alternando o olhar entre mim e a porta da sala. Uma nova tempestade tinha voltado a atingir aquela casa…


sexta-feira, 20 de maio de 2011

Capítulo 34 - Tempestades


Acordei sobressaltada com o forte trovão que acabara de cair e que havia feito estremecer todo o prédio. Transpirada e de olhos esbugalhados perante o susto, sentei-me na cama, enquanto procurava o interruptor do candeeiro. Consegui encontrá-lo com a ajuda da luz de mais um raio mas depressa me apercebi que de nada me serviria. O forte temporal que assolava a margem sul tinha provocado um corte de electricidade. “Merda, parece que está a desabar o mundo”, pensei enquanto continuava nova busca, desta feita pelo meu telemóvel, que usei para ver as horas e para iluminar o caminho até ao quarto da Sílvia, onde cheguei momentos depois ao som de mais um estrondoso trovão.

- Si, estás acordada? – Perguntei à minha amiga, entreabrindo a porta do seu quarto.
- Estou, babe. Estava a tentar acender a luz mas esta porcaria não funciona. – Com o meu telemóvel, iluminei-lhe o corpo. A Sílvia estava também sentada na cama.
- Fogo, está um temporal medonho lá fora. Deixámos os carros na garagem, não deixámos?
- Sim, deixámos.
- Menos mal, então. Vou voltar para a cama e ver se consigo dormir. Até amanhã.
- Dorme bem, babe.

Regressei ao meu quarto e deitei-me. Estava a esforçar-me para adormecer novamente, mas era impedida por aquele som da chuva a bater sem tréguas na persiana do meu quarto. Foi então que fui acometida por uma vontade súbita. Voltei a pegar no telemóvel que tinha pousado sobre a mesinha de cabeceira e procurei o número do David. Estava preocupada e precisava de falar com ele para me acalmar. O polegar esteve quase a ceder à tentação, mas um rasgo de racionalidade não me deixou cometer tal loucura. “Kika, por favor, são quatro da manhã!”, censurei-me em pensamentos. Mas esta luta intensiva entre o coração comandado pela preocupação e a cabeça dominada pela razão despertou-me ainda mais. Dei voltas e voltas na cama, procurando uma posição que me serenasse o espírito e esperando ansiosamente que o som constante da chuva me embalasse num sono profundo. Mas não foi isso que aconteceu. A última vez que olhei para o telemóvel, o relógio marcava as sete e um quarto da manhã. Meia hora depois, uma música estridente despertou-me daquela noite desgastante e o ruído da tempestade continuava a ecoar na minha cabeça latejante, mais do que uma lembrança… assemelhava-se, sobretudo, a um presságio.


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O cansaço provocado pela noite mal dormida e a dor de cabeça que se tinha acentuado com as buzinadelas ouvidas no caótico trânsito durante o percurso até ao Seixal tinham levado o meu mau humor até ao limite máximo. Soltei um quase inaudível “bom dia” ao entrar na empresa e subi as escadas até ao meu gabinete sem os habituais sorrisos. Facto estranhado sobretudo pelo senhor António, a quem ainda ouvi perguntar-me se estava tudo bem.
Assim que entrei no gabinete, fechei a porta e sentei-me com a cabeça caída sobre a secretária. Lembrei-me da minha mãe dizer-me que devia ter dado um uso diferente aos dias de folga que tinha para gozar e arrependi-me por não ter guardado um desses dias para uma situação como a que estava a viver. Apetecia-me tanto voltar para casa! Mas não havendo nada a fazer senão trabalhar, deixei-me estar naquela posição mais uns minutos a aproveitar o silêncio e a tentar arranjar forças para enfrentar aquilo que supunha vir a ser um duro dia de trabalho. Mas alguém resolveu incomodar o meu descanso e não podia ser pior pessoa.

- Posso? – Perguntaram, enquanto davam três leves pancadas na porta.
- Sim, entre! – Respondi, levantando de imediato a cabeça e aproveitando para ligar o computador.
- Doutora, sente-se bem?
- Sim Salomé, está tudo óptimo. Diga, por favor! – Pedi-lhe, cheia de vontade que ela se pusesse a andar dali para fora.
- Parece que não escolheu muito bem os dias para estar de folga. Com este tempo não deve ter conseguido aproveitar o seu passeio. – A Salomé tentava mostrar-me um ar de preocupação, mas eu conseguia descortinar-lhe um traço de cinismo no rosto. O que me deixou ainda mais irritada.
- Ah, não precisa de preocupar-se comigo. E aposto que não veio aqui para me dizer o que eu devo ou não fazer com as minhas folgas, já que a minha vida pessoal, com toda a certeza, não lhe diz respeito.
- Não, claro que não. – Respondeu-me ela, meia atrapalhada.
- Então diga de uma vez por todas o que me quer, que eu tenho mais do que fazer. – Era quase incontrolável aquela sensação de que quanto mais tempo ela estava à minha frente maior era o meu grau de impaciência.
- Eu vim só trazer-lhe uns papéis que o Dr. Gonçalves pediu que lhe entregasse e também dizer-lhe que várias empresas de catering já ligaram a pedir marcação de reuniões por causa do aniversário da empresa.
- Ok, muito obrigada. Envie-me só os nomes das empresas e das pessoas que ligaram que eu vou já entrar em contacto com eles.
- Já enviei Doutora, hadem estar aí no seu e-mail… – Retorquia aquela figurinha tentando a todo o custo mostrar serviço.
- HÃO-DE. – Soltei, quase num grito.
- Desculpe?
- Diz-se “hão-de”, Salomé. – Continuei de uma forma quase desesperada. – Eles hão-de estar aí. “Hadem” não existe sequer. Percebeu?
- Percebi – No mesmo momento em que vincava a palavra, a Salomé quase me “matava” com o seu olhar humilhado e enraivecido. – Estou a ver que hoje está para implicar comigo. – Continuou, enquanto me virava costas e se dirigia para a porta.
- Não, estava só a corrigi-la. Parece-me muito benéfico tanto para si como para a empresa evitar que dê essas facadas na língua portuguesa de cada vez que atende a porcaria do telefone. – A última parte da frase foi quase gritada e interrompida pelo bater da porta, que a Salomé tinha fechado com toda a força. – Idiota, pá! A chatear-me logo de manhã. Mas que raio queria ela dizer com “passeio”? Mas o que é que ela sabe da minha vida? Coscuvilheira esta gaja, pá! – Continuei a resmungar para com os meus botões, enquanto abria na internet as edições on-line dos jornais para me actualizar sobre as notícias do dia.

A má disposição foi-se esfumando com o passar das horas, por entre carradas de e-mail, telefonemas e papéis. E se é verdade que os intervalos para o café com a Matilde e o João, as mensagens trocadas com a Sílvia e a surpresa que preparei para a minha mãe – cantando-lhe os parabéns pelo telefone enquanto todos os seus alunos faziam coro e lhe ofereciam um ramo de flores que a minha irmã lhe tinha ido levar em nosso nome – me ajudaram a recuperar o sorriso, certo é que foi o jeito meigo do David que me devolveu o brilho aos olhos naquele dia tão cinzento. Combinamos aproveitar que a Sílvia ia ter com o Gu a Odivelas para fazer um jantarzinho lá em casa. E foi a pensar no que iria ser a ementa, no que iria vestir, nas compras que ainda teria de fazer que eu recuperei toda a minha habitual adrenalina. A minha saída da empresa foi, por isso, uma verdadeira antítese da entrada. Despedi-me do senhor António com um sorriso rasgado e, a fervilhar de paixão, rumei a casa para preparar o encontro com o David.


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Andava atarefada de um lado para o outro a preparar a sala para o nosso jantar. Antes, tinha já tomado um duche e colocado um pouco de base e blush na cara para tentar disfarçar as consequências de uma noite mal dormida. Tentava pôr-me bonita não só para o David mas também para mim, já que olhar-me ao espelho naquela noite baixara em muito o meu índice de auto estima.

O David tinha acabado de chegar ao prédio e ligou-me a pedir para colocar o carro no lugar vago que tínhamos na garagem. Minutos depois subiu, calmamente, pelas escadas. Vinha com um ar sereno, mas também ele exausto.

- Boa noite, meu amor! – Cumprimentou-me de sorriso rasgado.
- Boa noite gostosão! – Brinquei, puxando-o para o interior da casa para o beijar, depois de ter fechado a porta. – Como correu o teu dia?
- Bem e o seu? – O David ia tirando o casaco que pendurou no cabide do corredor, enquanto me fitava seriamente. – Aconteceu alguma coisa? Nossa, cê tá com uma cara!
- Aconteceu… – Entrei na cozinha e abri a porta do forno, perante o olhar preocupado do David – … aconteceu uma noite de insónia por causa da maldita tempestade.
- Verdade, cê acredita que acordei assustado e não conseguia mais dormir?
- Acredito! Eram sete da manhã e eu acordada. – Enquanto conversávamos, o David ajudava-me a colocar a comida numa travessa pronta a ir para a mesa. – Ainda por cima sem luz… fiquei três horas a contar carneirinhos.
- Ué, porquê não ligou para mim?
- Olha, ainda pensei nisso, mas não sabia se estavas acordado.
- Claro que estava. Não dava para dormir com aquele barulho. Parecia até que o prédio ia cair.
- Que parvos! Estivemos os dois a contar carneirinhos, quando podíamos ter estado a contar, sei lá, histórias de embalar um ao outro.

Partilhámos, naquele momento, uma gargalhada, enquanto seguíamos para a sala.

- Coloquei os dois pratos deste lado da mesa para vermos televisão. – Apontei para o lado direito, ao mesmo tempo que tentava colocar os utensílios de cozinha em cima da mesa sem os deixar cair.
- Não sei se foi boa ideia, não!
- Porquê, amor?
- Porque eu vou ficar olhando o tempo todo para aquela foto lá no fundo e não vou conseguir me concentrar no jantar. – O David falava num tom provocador, enquanto ocupava o seu lugar na mesa.
- Vais te concentrar, vais. Sabes porquê? – Perguntei-lhe com um sorriso maroto. Ele acenava negativamente com a cabeça. – Porque aquilo é só uma foto e isto – frisei, apontando para o meu corpo – é tudo muito real.
- Pô, agora é que eu não vou jantar de jeito nenhum. – O David apressou-se a puxar-me contra si, beijando-me o pescoço, e eu contorci-me por entre arrepios e gargalhadas.


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Aproveitámos o jantar para conversar sobre o nosso dia e o nosso trabalho. O David mostrava confiança em mim ao falar-me abertamente sobre assuntos relativos ao plantel benfiquista e eu, por momento algum, permiti a mim própria envolver-me naquela conversa como adepta de um clube de futebol. Naquele momento eu era tão e somente a namorada do David e era apenas isso que queria ser de cada vez que falássemos francamente sobre as nossas vidas profissionais.
Depois de arrumarmos a cozinha, abrimos o sofá para o transformarmos em cama e preparámo-nos para ver um filme, aconchegados no corpo um do outro. A noite estava fria e a chuva tinha regressado com força, ameaçando uma nova noite de temporal. Para prevenir, guardei algumas velas junto ao sofá e fui buscar uma chávena de café, antes de me sentar junto ao David que estava já deitado.

- Kika, vai fumar aqui dentro? – A pergunta mostrava o quanto aquele homem já conhecia os meus hábitos. Nos nossos já frequentes jantares de amigos, o simples gesto de pegar numa chávena de café implicava automaticamente ir à varanda ou ao terraço fumar um cigarro.
- Claro que não. A Sílvia matava-me. – O David olhava para mim com ar confuso e eu bebia a primeira golada de café. – Eu já não fumo.
- ‘Tá falando sério? – A alegria era por demais evidente na voz e na expressão facial de David. – Nossa, cê não falou nada para mim.
- Desculpa, esqueci-me. Fumei o último cigarro antes de viajar para Paris.
- Mas porquê, ‘tá com problemas de saúde?
- Nada disso, amor. Simplesmente achei que ter um namorado saudável era um bom mote para me tornar também um bocadinho mais saudável. – Tranquilizei-o com um beijinho na testa. – Portanto, a culpa é tua! – Sorri-lhe docemente, bebi o resto do café e pousei a chávena em cima do móvel ao lado do sofá.
- Sua boba! Vem cá, vem. – O David puxava-me para baixo dos cobertores, juntando os nossos corpos. – Cê é maior valentona, viu?! – O seu beijo doce fez-me sentir orgulho na minha decisão. - E pode contar sempre com o meu apoio.

Envolvemo-nos num beijo tão apaixonado que os movimentos dos nossos corpos de intensos passaram, num ápice, para descontrolados. A respiração ofegante era um dos sinais mais evidentes do desejo que envolvia aquele entrelaçar de corpos, abafado pelo calor vindo do cobertor. Em menos de nada, estávamos seminus e consumidos por uma vontade louca de nos amarmos ali mesmo, na sala da casa que eu dividia com a minha melhor amiga.
- E se a Silvinha chega? – A pergunta sussurrada ao meu ouvido aumentou ainda mais o meu estado de êxtase.
- Ela não vem dormir a casa. – As minhas palavras sortiram o mesmo efeito no David, que de imediato tirou as últimas peças que cobriam os nossos corpos e procurou na sua carteira, espalhada pelo chão, um preservativo. E sem mais preocupações, entregámo-nos ao prazer.


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O duche quente que partilhámos depois daquele maravilhoso acto de amor relaxou-nos o corpo e a mente. De novo deitados no sofá da sala, então recomposto, abraçámo-nos e, quase instintivamente, preparámo-nos para mais uma noite de tempestade de chuva, relâmpagos e trovões… mas não só.