quarta-feira, 13 de março de 2013

I'm alive (mil desculpas)

Amigas (e amigos, eventualmente)

Não, não vos trago um novo capítulo, infelizmente, mas trago-vos duas palavras: mil desculpas!!

Hoje, passado mais de um ano, voltei a visitar o meu próprio blog e a caixa de email a ele associado. e tive uma surpresa muito boa, mas que também me deixou muito triste. Uma leitora muito querida desta fanfic (beijinho grande para ela) escreveu-me um email há 4 meses (sorry!!!), que só hoje tive oportunidade de ler, em que me pedia que continuasse esta hitória e me perguntava o porquê de ter parado de escrever. Por um lado foi muito bom saber que existe pelo menos uma pessoa que ainda se lembra da minha fic e que aguarda o próximo capitulo; por outro lado, fez-me ver que, apesar de todos os motivos válidos que eu tive para deixar a história em stand-by, há pessoas que usavam o seu precioso tempo a acompanhar este blogue e que mereciam pelo menos uma explicação da minha parte. A todas essas pessoas, as minhas desculpas.

De facto, no último ano e meio aconteceram demasiados contratempos na minha vida pessoal que não deixaram espaço nem tempo para me dedicar à escrita. Situações de todo incontornáveis. Mas juro-vos que nunca me esqueci deste projecto pelo qual tenho um carinho enorme, nem de vocês que sempre me leram e me brindaram com palavras tão simpáticas e carinhosas.

Não sei quando retomarei a escrita nem quando vou postar o próximo capítulo, visto que neste momento a minha vida pessoal ainda está em fase de mudança (daquelas à séria) mas prometo-vos que esta história não vai ficar sem um final (feliz, de preferência - que inclusivamente já está escrito desde início, acreditam?) ahahahah

Portanto, mais uma vez mil desculpas e muito, muito obrigada a quem sempre leu esta minha (vossa) história e que, eventualmente, continua a visitar este cantinho de vez em quando!!

Beijinhos,
Ana M.

PS - E o David Luiz que continua um gostosão, heim???? AHAHAHAHAH

sábado, 3 de setembro de 2011

Um ano...


Um ano... e tantos milhares de palavras escritas!
Um ano... e tantos sentimentos partilhados!
Um ano... e tantos comentários simpáticos!
Um ano... e tantas visitas (quase 70 mil)!
Um ano... e tantas amizades construidas!
Um ano... e tantas alegrias obtidas!

Um ano... uma escritora... uma história... um sonho...

OBRIGADA!!

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Capítulo 38 – “Virar a página”


Aos primeiros raios de sol, os meus olhos começaram a preparar-se lentamente para se abrirem a um novo dia. Apesar de ter passado a noite no sofá, o que habitualmente me provocava uma valente dor de costas, acordei relaxada. Tinha finalmente conseguido descansar o corpo mas sobretudo a cabeça daquele turbilhão de emoções a que tinha sido sujeita nos últimos dias. Com a mesma lentidão com que tentava a custo encarar aquela luz que invadia a sala, espreguiçava-me proveitosamente.
Ao fim de alguns minutos gastos com a já rotineira preguiça matinal, levantei-me e segui para a casa de banho, onde um duche escaldado e revigorante me despertou. Passei ainda pelo quarto da Sílvia para confirmar se ela estava na cama. Não me tinha apercebido da sua chegada e, de cada vez que isso acontecia, tinha de me certificar de que estava tudo bem. Ela dormia profundamente, com aquele jeito angelical que tão bem a definia.
Caminhei então para a cozinha, onde tomei o pequeno-almoço e bebi o mais que obrigatório café. Tinha vivido os últimos anos com a certeza de que o tabaco era o meu maior vício, mas bastaram três dias sem fumar para perceber que, afinal, a minha maior dependência estava naquele travo amargo de um café forte e bem tirado. Ainda assim, confesso que a ausência do cigarro a acompanhar lhe roubava parte do prazer que me oferecera outrora.
De chávena na mão, regressei então à sala para me inteirar das notícias que marcavam o país, naquele gélido dia de Fevereiro. Um outro gesto que era para mim tão rotineiro como escovar os dentes. Era impensável sair de casa sem fazê-lo.
Pouco passava das nove da manhã quando me fiz à estrada, entusiasmada por regressar, mesmo que por pouco tempo, ao aconchego da família.

Conduzia de forma tranquila. Queria aproveitar aquelas duas horas de caminho que tinha pela frente para gozar da minha própria companhia. Precisava de ter uma conversa séria e tranquila com o meu coração, como há muito não acontecia, e para isso tinha de transformar aquela viagem solitária num descontraído passeio pelos trilhos da minha consciência. Das colunas do carro soltava-se a música chill out que marcava o ritmo de cada passada interior e, vindos do céu, uns intensos raios de sol iluminavam-me o caminho.
Muita coisa tinha acontecido desde a minha última visita a Coimbra: aquela em que eu negara, com alguma teimosia, a paixão que começava a consumir-me; aquela em que eu jurara a mim mesma afastar-me do David; aquela em que eu prometera deixar de fumar. “Tão bem que me ia saber um cigarrinho agora!”, pensei, deixando-me levar pela saudade daquele companheiro de tantas viagens. Deixar de fumar era sem dúvida um dos maiores testes à minha capacidade de resistência. Estive tentada a abrir a carteira, pousada no banco do pendura, para retirar do maço ainda guardado um dos últimos cigarros que haviam sobrado, antes da viagem a Paris. Mas a minha consciência não me permitiu fraquejar. “Tu prometeste kika, tu prometeste”, lembrei-me do motivo que me tinha levado à tomada de decisão. Não queria voltar a sentir-me culpada, mesmo que fosse por não conseguir resistir a um vício do qual estava tão dependente. Continuei, então, a viagem sem cigarro mas com um sorriso na cara. Pensei na minha Sílvia e na prova de amizade que me havia dado na noite anterior, com a sua capacidade de perdoar um erro que eu própria não me imaginaria capaz de perdoar. Mas essa era a essência da minha amiga. Esse humanismo e altruísmo que a tornavam verdadeiramente especial e que me faziam adorá-la com todas as minhas forças. Era também o que nos distinguia. Ao contrário da minha amiga eu não sabia perdoar. Nem aos outros, nem a mim própria. E era precisamente por isso que, apesar de na noite anterior me ter libertado de um piores sentimentos de culpa que alguma vez havia sentido – o de ter mentido à pessoa que me devolveu à vida – a maior das minha culpas iria permanecer comigo para o resto dos meus dias. Porque eu jamais conseguiria arrancá-lo de dentro de mim. Mas eu tinha prometido à minha melhor amiga que ia seguir a minha vida com um sorriso e essa era, naquele momento, a minha única convicção. Tranquilamente, procurei o cantinho mais ínfimo e recatado do meu coração e guardei lá todo o sofrimento que havia acumulado nos últimos oito meses.

Estava já a meio do caminho entre a cidade que me acolhera e a cidade que me vira nascer. A viagem fluía calmamente, sem percalços. Já não me lembrava da última vez que tinha feito aquele trajecto ao volante, ultimamente eram o alfa-pendular e o táxi do senhor José que me levavam para junto do calor família e me faziam voltar para o aconchego do colo da minha melhor amiga. Mas aquela experiência estava, definitivamente, a fazer-me bem!

Olhei o horizonte, descontraidamente. E enquanto me perdia naquela paisagem verdejante que ladeava a auto-estrada, recordava o esverdeado dos olhos do David. Os cantos da minha boca afastaram-se, delineando no meu rosto um sorriso apaixonado. Havia descoberto nos últimos dias que o David era muito mais do que um bom amigo, um bom companheiro, um bom amante. Ele era, indubitavelmente, um bom ser humano. Que compreendia a dimensão dos erros dos outros sem os condenar, porque humildemente se aceitava a si próprio como um ser errante. Que descobria o lado mais sombrio dos outros sem nunca desistir de procurar o brilho e a luz, por mais ocultos que estivessem. Que tinha a bondade de apontar trilhos de esperança nos outros, mesmo que estes apenas vislumbrassem o caminho das trevas. E os outros rendiam-se aos seus encantos e viam nele uma essência quase rara. Entre esses outros, estava eu… entregue a uma louca paixão.

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Cheguei a Coimbra pouco passava das onze da manhã. Entrei em casa dos meus pais de sorriso rasgado. A primeira pessoa que encontrei foi a minha mãe, na cozinha, já entretida com os preparativos para o almoço.

- Bom dia, flor mais linda do meu jardim! – Cumprimentei-a, com o coração aos pulos por estar a matar todas as saudades que sentia após tantos dias sem ver a minha mãe.
- Bom dia filhota! – Deu-me um forte abraço que me assegurou de imediato que aquela conversa hostil que havíamos tido uns dias antes por telefone fazia já parte do passado. – Então a viagem, correu bem?
- Óptima. – Respondi-lhe, pegando numa maçã que comecei imediatamente a trincar. – O resto da malta está em casa?
- O teu pai foi tomar um cafezinho, a pequena ainda dorme.
- Hum, então vou só acabar de comer e já a acordo.
- Sim, faz isso que já não são horas de ela estar na cama.

Dei uma última trinca na maçã, passei pela casa de banho para lavar as mãos e segui até ao meu antigo quarto. Assim que entrei, liguei a luz do grande candeeiro cor-de-rosa suspenso no tecto e atirei-me para cima da minha mana caçula.

- Oh mana, fogo! – Resmungou ela, tapando a cara com as duas mãos.
- Fogo o quê? Toca a levantar essa bunda da cama que já é tarde! – Afirmei, em tom de reclamação, tentando destapá-la.
- Vens muito abrasileirada, para o meu gosto. – Afirmou, num tom abafado pelos cobertores, que havia puxado para cima do rosto.
- Estamos cá com uma piadinhas, menina Cris. Vá, abre lá os olhos e dá um beijo à tua irmã, se faz favor! – Ordenei-lhe, em jeito de brincadeira. Ela respeitou a minha ordem, levantou-se e beijou-me a face ao mesmo tempo que me abraçava.
- Vieste sozinha?
- Sim, a Sílvia tem trabalhos este fim-de-semana.
- Hum, podias ter trazido o namorado novo para apresentar à mãe!
- Olha que tu não me irrites. É que nem sequer quero tocar nesse assunto.
- ‘Tava a brincar. Mas conta lá, como foi a viagem a Paris? – Perguntou-me, com um sorriso maroto.
- Foi maravilhosa. – Deixei cair o corpo sobre a cama, ficando lado a lado com a minha irmã naquela que seria sempre a nossa cama – Ele adorou a surpresa. Havias de ter visto a cara dele quando me viu no estádio.
- Imagino. – Desabafou, sorridente. – Tu és um bocadinho maluquinha, Kika.
- Tu também vais ser, quando te apaixonares verdadeiramente.
- Sim, sim. – Retorquiu, com desdém. – E mais?
- Então, jantámos, passeámos nas margens do Sena, dormimos juntos e foi tão bom!
- Wow – interrompeu-me – mas poupa-me os pormenores.
- Claro, parvinha, não te ia contar mais nada. Ah – levantei o dedo – falta dizer ainda que recebi uma camisola do Benfica. – Afirmei, divertida.
A minha irmã soltou, então, uma descomunal gargalhada, audível por toda a casa. – É bom que isso não chegue aos ouvidos, muito menos à vista, da dona Maria, se não cheira-me que vais ser deserdada.
- Que pena, estava a pensar oferecer-lha como prenda de anos. – Respondi por entre risos descontrolados. Mas a conversa teve de ser interrompida, com a entrada da minha mãe no quarto.
- É que vocês não podem estar juntas! Como é que é possível eu estar na cozinha e ouvir-vos rir?! – Praguejou a minha mãe, não conseguindo esconder, no entanto, o brilho de felicidade por nos ter às duas deitadas na mesma cama, como tinha sido habitual durante quase 17 anos.
- Estávamos a falar sobre a tua prenda de anos – disparou a minha irmã, obrigando-me a fuzilá-la com o olhar. – Gostavas de fazer um salto de pára-quedas? – O meu coração tranquilizou-se com aquela pergunta da miúda.
- Gostava, gostava. – Respondeu a minha mãe, irritada. – Eu gostava era que tu te levantasses e arrumasses este quarto que parece a feira da ladra. – Repreendeu a minha irmã e atirou umas peças de roupa que estavam no chão para cima da cama, antes de sair do quarto. Para a minha mãe, aquela gracinha era um motivo suficientemente forte para estarmos a gozar com ela, que tinha um pavor enorme de alturas e uma aversão ainda maior a actividades radicais.
- Tão ingénua a dona Maria. – Desabafou a minha irmã, sorridente.
- Tão parvinha a menina Cris. Queres matar-me de ataque cardíaco ou quê? Acabaram-se as gracinhas que eu não quero sequer ouvir falar no nome do David nesta casa, pelo menos enquanto eu aqui estiver. Não quero mais discussões e palavras azedas.
- Oh mana, também não precisas ser assim. E para tua informação, tem-se falado mais do David nesta casa do que tu imaginas. – Afirmou, com uma certa autoridade na voz.
- Tem? – De facto não imaginava.
- Sim, a mãe e o pai não sabem, mas eu já os ouvi falar bué vezes em vocês.
- E então? – Perguntei, tão curiosa quanto assustada.
- A mãe no fundo está feliz por ti, embora diga que a assusta uma possível exposição pública sobre a vossa relação e que sobretudo tem medo que tu sofras, caso o David tenha de ir embora no final da época. E claro, irrita-a bastante que te tenhas apaixonado logo por um gajo que joga no Benfica. – Soltou uma gargalhada, que eu acompanhei, e continuou. – O pai não está nem aí para as preocupações da mãe. Diz que tu mereces ser feliz e que tem a certeza que tu sabes o que fazes. Mas já prometeu que, se o David te fizer sofrer, dá cabo dele. – A minha irmã voltou a sorrir e eu também. No fundo, aquelas confidências da minha irmã tranquilizavam-me o espírito e permitiam-me voltar a Lisboa com muito mais forças para lutar contra o que quer que fosse que se intrometesse entre mim e o David.
Voltámos a ser interrompidas, na conversa, desta feita pelo meu pai, que entrou no quarto com uma felicidade imensa – Bom dia para as filhas mais lindas do mundo. – Declarou de braços abertos, para nos cumprimentar. Agarrou primeiro a minha irmã, beijando-a, e envolveu-me depois num abraço forte que demonstrava que ele estava feliz não só por me ver, mas sobretudo por me saber feliz.

O dia de sábado passou numa correria. Depois de um almoço tranquilo em família, fui distribuir beijinhos e abraços por todos os que me eram realmente chegados. Passei primeiro por casa da minha madrinha, onde me demorei um bom par de horas, e combinei para depois um cafezinho com um grupo de amigas de infância. Foi um encontro animado que se prolongou até ao final da tarde. Regressei a casa para jantar com os meus pais e aproveitei para lhes prometer um passeio na manhã seguinte para os tentar compensar da minha ausência ao longo da tarde. Fui, depois, arranjar-me para uma saída nocturna que tinha combinado com a Nokas, uma das grandes amigas que eu e a Sílvia tínhamos feito nos tempos de faculdade.


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Percorri os jardins da Associação de Estudantes da mesma forma relaxada com que estava a aproveitar aquela “visita relâmpago” a Coimbra. Sabia que a Nokas estava do lado oposto àquele por onde eu tinha entrado e era para lá que teria seguido, não fosse a paragem imposta por uma voz agradavelmente familiar.

- Então menina, já não se cumprimenta os amigos?! – Assim que virei a cara para o lado direito vi o Rafa e o mesmo sorriso simpático de sempre. O Rafa era um grande amigo do Tiago que, por inerência, se tinha tornado também um grande amigo meu. Era a primeira vez que o via, desde que a minha relação com o outro tinha terminado.
- Desculpa, Rafa, nem te tinha visto! – Afirmei, sorridente, enquanto o cumprimentava com dois beijos. – Está tudo bem contigo?
- Sempre em grande. E a vida pela margem sul, corre bem?
- Muito bem, felizmente. A Filipa está por aqui? Tenho saudades dela, pah.
- Está, foi só ali ao bar com o Tia… – O Rafa calou-se antes de terminar o nome do amigo. Percebi-o constrangido e sorri-lhe.
- Com o Tiago. Podes dizer, não me incomoda.
- Desculpa Kika. Isto é o que dá estarmos tanto tempo sem falar. Não sei como é que estás em relação a tudo o que aconteceu.
- Estou bem, Rafa, acredita. É passado, só isso.

Fomos interrompidos naquele momento por uma outra voz familiar, mas não tão agradável. Tiago e Filipa apareceram por trás do Rafa e nem me viram.
- Porco, estivemos a ver a repetição dos golos do glorioso, pah. Joga-se muito à bola naquele estádio, fodasse. – A inconfundível maneira de falar do Tiago e a sua paixão pelo Benfica. Nunca se cansava de ver as repetições dos golos, dos lances, dos jogos completos, se tivesse oportunidade para isso. O Rafa deu então um passo para o lado, deixando a descoberto o espaço entre mim, o Tiago e a Filipa.
- Miúda, há quanto tempo… – A minha amiga abraçou-me com força. – Oh pá, ainda no outro dia disse a este gajo – apontando para o namorado – que tínhamos de te fazer uma visita.´Tava cheia de saudades.
- Quando quiserem. – Depois de lhe responder, fechei o sorriso que me iluminava o rosto e disse um “olá” meio tosco ao Tiago, que ele mal retribui. Talvez a nossa última conversa não lhe tivesse caído muito bem.
- A ver se combinamos, então. Olha e pode ser num fim-de-semana que o nosso Sporting jogue em casa, para irmos ao estádio. – Continuava a Filipa, entusiasmada com a ideia. Ela era também uma lagarta que namorava com um lampião. E esse tinha sido sempre um dos pontos que nos unia aos quatro, enquanto casais.
- Oh minha menina, tu não deves ‘tar boa da cabeça, de certeza. – Afirmava o Rafa num tom trocista. – Vamos a Lisboa mas há-de ser para ver o glorioso.
- Pois, amigo, então temos pena mas acho que nesse dia não vou estar por lá. – Gozei-o descaradamente. – Não pago para ver esses gajos jogarem.
- Tens lá melhor, queres ver? – Pela primeira vez o Tiago metia-se na conversa. E eu não me opus. Afinal, conhecia-o demasiadamente bem para saber que defender os seus jogadores estava-lhe no sangue, fosse em que situação fosse, contra quem fosse.
- Não. Tens razão, os que são mesmo bons estão no Benfica. – Disparei, levando aquela afirmação para o plano físico, algo que só a Filipa percebeu.
- Bons e de que maneira. Nisso estamos de acordo, há lá dois ou três que batem o plantel todo do Sporting aos pontos. – Proferiu soltando uma gargalhada e dando-me uma cotovelada para confirmar que tinha percebido a minha indirecta.
- Estás-te a esticar, oh menina. – Repreendeu-a o Rafa, como qualquer homem ferido no seu orgulho.
- É só nisso que vocês percebem de futebol, coitadas. Como se eles fossem uns deuses. – Voltava a interferir na conversa o Tiago, reivindicando também ele um orgulho ferido, que no entanto já não lhe era reconhecido.
Ao ouvir aquelas palavras, lembrei-me da primeira noite com o David em Paris e de como ele, iluminado apenas pela luz das pequenas velas, me tinha parecido de facto um deus. E apeteceu-me provocar o Tiago, ferindo ainda mais o seu orgulho. Desejando quiçá que ele sentisse na pele a humilhação pela qual me havia feito passar. – Alguns são mesmos uns deuses, Tiago, e olha que faziam de mim uma verdadeira deusa. – Disse-lhe com alguma maldade, embrulhada num sorriso. E foi então que as feições do Tiago se alteraram. Voltou a demonstrar-me aquela raiva, que eu não tinha visto mas tinha sentido na nossa última conversa ao telefone. O Rafa e a Filipa aperceberam-se do constrangimento do Tiago perante a minha provocação e tentaram amenizar os efeitos.
- Então e não queres beber nada Kika?
- Não, obrigada. Eu tenho de ir andando.
- Mas já vais embora?
- Acabei de chegar, amiga, mas tenho ali uma pessoa à minha espera. – Afirmei sorridente, sabendo que isso iria irritar ainda mais o Tiago. – Bem pessoal, até à próxima. – Falei, enquanto me despedia do Rafa e da Filipa com dois beijos. – E quando quiserem aparecer lá por baixo, estejam à vontade.
- Conta com isso. – Respondeu-me a minha amiga, convictamente. Não voltei a responder-lhe, limitei-me a sorrir e virei costas, disposta a seguir o caminho que me levava até à Nokas.
Mas depressa fui surpreendida pelo Tiago que, com alguma agressividade, me puxou por um braço contra si, fazendo embater as minhas costas no seu peito. Respirei fundo, tentando controlar qualquer impulso. Mas ele fez o favor de me descontrair, com mais uma afirmação pateta de ex namorado ciumento. – Afinal eu tinha razão. Já arranjaste outra pessoa!
Foi nesse momento que me afastei ligeiramente e virei o meu rosto, de forma a encará-lo. – Porquê? Tu ainda não?
- Não, porque ainda te amo, Kika! – O Tiago fazia um ar aparentemente meigo e eu soube naquele momento que, assim que lhe dissesse algo que ele não quisesse ouvir, ele iria partir para a ignorância. Mas isso não me demoveu. Ele tinha de aprender de uma vez por todas que nunca mais faria parte da minha vida.
- Lamento, mas quanto a isso não posso fazer nada. É melhor seguires a tua vida… eu já segui a minha.
Tal como eu esperava, os olhos do Tiago encheram-se de ódio. – Afinal de contas, choraste tanto, gritaste, esperneaste, partiste-me a casa toda para quê? Para meio ano depois já estares a abrir as pernas para outro gajo qualquer. És uma pêga! – Gritou o Tiago a plenos pulmões, fazendo-me sentir uma enorme vontade de lhe pregar um estaladão. O Rafa ainda interveio, tentando chamá-lo à razão, enquanto a Filipa o puxava por um braço para o demover de continuar com aquela parvoíce. Mas o Tiago estava demasiado enraivecido para parar. – Fazes-te de santinha e não passas de uma puta, que anda para aí com uns e com outros!
Apesar de tom elevado da música, já toda a gente olhava para nós. E eu aproveitei aquela plateia, para concentrar todas as forças com que me apetecia partir a cara ao Tiago e me vingar de uma forma menos física mas que lhe ferisse até ao limite o seu orgulho. Sorri-lhe cinicamente e elevei bastante o meu tom de voz.
Com uns e com outros não, meu querido, só um chega-me. Sabes porquê, idiota? Porque ele é bem melhor ser humano que tu, porque ele é bem mais giro e atraente que tu… – Respirei fundo e preparei-me mentalmente para levar o maior chapadão da minha vida – … e porque ele fode mil vezes melhor que tu! – Gritei a plenos pulmões.
Senti, instantaneamente, os risos de todos os que assistiam àquela cena triste e vi a mão do Tiago a vir de encontro à minha cara.
Valeu-me o Rafa, que conhecendo tão bem o Tiago quanto eu, pôde prever a sua atitude e agarrar-lhe o braço pouco antes de eu ser atingida.
– Tu não passas de um grande otário! – Provoquei-o antes de virar costas e retomar o meu caminho.
- E tu és uma grande puta! – Gritou, com a voz trémula
- Pára com isso Tiago, por favor. Deixa-a em paz. – Ouvi a voz da Filipa, enquanto continuava o meu caminho, sentindo o ódio a fervilhar-me no sangue.

Não precisei de andar muito até encontrar a Nokas que, ouvindo o barulho, se tinha levantado como todos os outros. Fez-me sinal com a mão e esperou por mim junto à mesa que estava mais perto. Olhava-me incrédula.
- Aquele ali é o Tiago? – Olhei para trás uma última vez e vi o seu rosto, mais envergonhado que nunca, por descobrir que afinal a pessoa com quem eu me ia encontrar era tão e somente a minha amiga da faculdade, com quem ele tantas vezes convivera.
- É – respondi-lhe, com um sorriso nervoso.
- Estás bem? – Perguntava-me com uma ar preocupado.
- Nunca estive tão bem, bi. – Retorqui com um ar totalmente descontraído, depois de alguns exercícios de respiração que a minha psiquiatra me havia aconselhado a praticar em caso de acessos de raiva.
Ela continuava a olhar para mim, confusa. – Mas o que é que lhe passou pela cabeça para estar para ali a chamar-te puta à frente desta gente toda?
- Ataque de ciúmes de ex namorado que trai e ainda tenta fazer-se de vítima. – Respondi-lhe com ironia. – É sempre mais fácil atirar as culpas para cima dos outros.
- Passou-se o gajo! Os homens são todos uns idiotas. É por isso que dessa espécie eu quero é distância. – Brincou a Nokas, enquanto tirava o maço de tabaco da carteira e o pousava em cima da mesa. Mas olha lá – fitou-me com os seus olhos pretos rasgados, enquanto acendia o cigarro – é impressão minha ou tu estás demasiado calma? Não me digas que afinal aquele homem espectacular, giro e bom de cama de que falavas existe mesmo!
Soltei uma gargalhada, que tentei abafar colocando a mão rapidamente na boca. Depois daquele espectáculo ridículo com o Tiago, tudo o que eu mais queria era passar despercebida naquele lugar. – Eh lá, viraste “profiler” agora ou quê?
- Ah, tu a mim não me enganas. Parece que tens alguma coisa para me contar, menina Ana.
- Continuas a mesma chatinha, tu. – Sorri e abanei a mão direita com toda a força, para tentar afastar o fumo que a minha amiga ía soltando por entre os seus finos lábios. Não que me incomodasse, mas que era uma tentação, isso não posso negar – Sim, tenho algumas coisas para te contar, mas não aqui.
- Isso é um convite para irmos ao Penedo? – Questionou-me, por entre mais uma passa no cigarro – Convite aceite. – Concluiu. E sem mais conversas, arrumou o maço de tabaco na carteira, afastou a cadeira e levantou-se. Eu segui-lhe o exemplo. Contornei a mesa e fui juntar-me à minha amiga para iniciar a saída daquele espaço onde eu não pretendia regressar tão depressa.
Caminhávamos em silêncio. A Inês continuava a lançar o fumo do cigarro para o ar e eu abanava a mão tentando afastar aquele maldito cheiro de perto do meu nariz. Um comportamento ao qual a minha amiga não ficou indiferente.
- Oh Kika, mas o que é que se passa contigo hoje? Sempre a afastar o fumo do meu cigarro. É que isso vindo de alguém que fuma desalmadamente até parece brincadeira.
- Ai minha querida Nokas, já te conheci mais perspicaz. – Coloquei-lhe o braço por cima dos ombros e sorri-lhe. – Deixei de fumar amiga.
Ela parou abruptamente, no primeiro dos cerca de quinze degraus que nos levariam ao exterior dos jardins da associação de estudantes.
 Tu o quê? Estás a gozar comigo certo?
- Tu por acaso viste-me acender algum cigarro depois daquela escandaleira toda lá dentro? – Ela abanou negativamente a cabeça, pensativa – E tu achas isso normal em mim?
- Bolas, estás mesmo a falar a sério! Nunca pensei que fosses capaz de deixar esse maldito vício. Eh pa, tens de me dar a tua receita porque eu preciso de fazer o mesmo! Conta lá… como é que conseguiste?
- No Penedo! – Sussurrei-lhe, antes de seguir em direcção ao meu carro, deixando-a roxa de curiosidade.

Percorremos as duas em silêncio o caminho que nos levaria até ao Penedo da Saudade. Um dos mais bonitos miradouros da cidade de Coimbra, situado numa das colinas com vista mais privilegiada. Daquele local místico e verdejante, pode vislumbrar-se toda a parte oriental da cidade até ao Rio Mondego e ainda, em dias de boa visibilidade, a não muito longínqua Serra da Lousã. Mas era de noite que aquele parque no alto da cidade de Coimbra se tornava verdadeiramente poético. Uma conversa de amigas no Penedo da Saudade transformava-se num recital. Foi lá que confidenciei à Nokas o meu romance com o David e foi lá que ela me prometeu, depois de me escutar atentamente, que aquelas declarações permaneceriam em si como se dentro de um túmulo se fechassem.
Saímos do Penedo já a madrugada ía alta, não sem antes eu jurar a mim mesma que um dia levaria David àquele “jardim dos poetas” onde estão guardados alguns dos mais belos poemas escritos por autores portuguesas, durante a sua vida académica em Coimbra.


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A manhã de domingo, gélida mas solarenga, foi passada com os meus pais e a minha irmã na Figueira da Foz, uma cidade marítima situada a cerca de 50 kms de Coimbra. Percorremos alguns trilhos da Serra da Boa Viagem, passeámos à beira-mar na praia da claridade e acabámos sentados num dos mais conhecidos restaurantes da marginal. Uma refeição tão tranquila e divertida quanto o ambiente que se vivia no seio daquela família.
A meio da tarde regressámos a Coimbra, onde eu me preparei para mais duas horas de viagem relaxada, desta vez em direcção à margem sul, onde sabia ter à minha espera o carinho da Sílvia e o amor do David, a quem enviei mensagens a informar da hora prevista para a minha chegada. Despedi-me da família com os olhos rasos de lágrimas, como de resto acontecia em todas as outras despedidas, e fiz-me à estrada já o céu começava a escurecer.
A serenidade que me havia conduzido a norte, acompanhava-me agora no sentido inverso, mas desta vez constantemente interrompida por um irritante sinal sonoro que me alertava para a fraca bateria do meu telemóvel. Tive vontade, por várias vezes, de o desligar mas ainda bem que não o fiz já que, caso contrário, nunca poderia atender a chamada do David.

- Olá meu querido! – Atendi, docemente.
- Oi meu anjo, tudo bom? – Respondeu-me o David no mesmo tom meigo – E aí, já tá chegando?
- Não, ainda falta um bocadinho. – Aquele sinal do telemóvel era cada vez mais intensivo e eu temia a qualquer momento ficar a falar sozinha. Resolvi, portanto, advertir o David para essa situação – Olha, a conversa tem de ser rápida que eu ‘tou a ficar sem bateria no telemóvel.
- Ah tá bom. Só queria falar para você que ‘tou morrendo de saudade e te convidar a vir jantar cá a casa.
- Oh querido, eu também vou aqui doidinha para matar estas saudades. Convite aceite. Assim que chegar vou aí ter. O resto da malta está aí?
- Sim, ‘tá aqui todo o mundo. Mas kika, eu queria te dizer que estão cá também…. (pi pi pi pi pi)
- Está aí quem? – Apesar de saber que aquele som consecutivo significava a chamada interrompida, estava na esperança de ouvir a voz do David mais um pouquinho. – David, estás a ouvir? David? – Perguntei já com os olhos postos no ecrã do telemóvel. – Merda de telemóvel, pá! – Irritada, atirei o aparelho para cima do banco do pendura e segui viagem, ansiosa por rever o David.


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Cheguei à entrada do prédio do David completamente estoirada. Na verdade, não fosse aquele convite tentador e teria ido direitinha para casa, estatelar-me no sofá e dividir uma pizza com a Sílvia. Mas as saudades que tinha dos beijos do David eram bem mais fortes que o cansaço que o meu corpo sentia. Além disso, uma noite entre amigos era sempre uma óptima forma de recarregar forças para enfrentar uma dura semana de trabalho.
Aproveitei a saída de um casal para entrar no prédio sem precisar de tocar à campainha e aproveitei também o facto de o elevador estar no rés-do-chão para subir sem mais demoras.
Assim que saí, no sétimo andar, ouvi o barulho vindo de casa do David, como de resto era já habitual nos nossos jantares. Levei o dedo indicador à campainha e esperei que alguém me viesse abrir a porta. Foram segundos de ansiedade, no fundo pensei que o David tivesse a certeza de que era eu e fosse ele a vir receber-me. E só de imaginar os seus lábios perfeitinhos ali na minha frente, prontos a beijar, sentia umas cócegas na barriga e um sorriso estupidamente feliz na cara, típicos de quem está loucamente apaixonada.
Mas tudo se alterou, assim que a porta se abriu.
As cócegas na barriga e o sorriso continuavam lá, mas eram, então, resultado do nervosismo provocado pela cara simpática e voz meiga, de uma mulher bonita, na sua simplicidade. - Oi, tudo bom? Você deve ser a Kika! Entre minha filha.


terça-feira, 19 de julho de 2011

Capítulo 37 – Depois da tempestade… a bonança


Dois corpos cansados, caídos sobre o sofá. Duas faces pálidas e enrugadas pela tristeza. Duas respirações pesadas e sufocantes. Ali estávamos nós, eu e a Sílvia, a viver o nosso primeiro grande desentendimento, desde que nos tornáramos amigas, há quase uma década. Na verdade, nem uma nem outra sabíamos lidar com aquela dor que manchava a nossa relação, que até então havia sido sempre marcada pela união, pela cumplicidade, pela verdade. Não conseguia lembrar-me de uma única vez que a Sílvia me tivesse mentido ou escondido algo verdadeiramente importante e essa constatação aumentava ainda mais a culpa que sentia por ter sido eu a quebrar os laços de confiança existentes. Mas foi precisamente esse sentimento que me fez quebrar o silêncio imposto naquela sala.

Soltei um falso sorriso, tentando disfarçar o meu nervosismo – Bem, passei o dia todo a preparar esta conversa e… na verdade, não sei muito bem por onde começar. – A Sílvia olhava para mim, estranhamente calma. Eu passava a língua nos lábios, humedecendo-os. – Acho que o mais importante é dizer-te que lamento muito estar a magoar-te. Eu sei que nunca deveria ter-te escondido uma coisa destas, mas eu…
- Eu só queria perceber porquê! – A Sílvia ajeitava-se no sofá, encolhendo as pernas contra o peito, agarrando-as com as duas mãos. – Porquê, Kika? – Perguntava-me com uma tristeza imensa na voz e no olhar.
- Falta de coragem. – Respondi-lhe da outra ponta do sofá, onde eu permanecia sentada da mesma forma que a minha amiga. – Acho que foi isso. Eu quis contar-te, Si, eu juro que sim. Mas de cada vez que eu tentava fazê-lo, perdia as forças. O medo tomava conta de mim.
- Medo do quê? Explica-me, porque eu não consigo entender.
- Medo de te desiludir. O que eu fiz foi cruel e tu de certeza que me dirias isso. Ias chamar-me à razão e condenar o meu comportamento desumano. E eu já estava a sofrer tanto que não conseguiria suportar mais essa dor.
- Caramba, Kika… – soltou num tom de voz mais elevado, perdendo a postura calma que havia mantido até então. – A nossa amizade sempre foi baseada na verdade, por muito que doesse, por muito que custasse. Não foi sempre assim? – Irrequieta, a Sílvia saiu então do sofá e começou a caminhar de um lado para o outro, enquanto continuava o seu discurso. – Quantos vezes eu fiz merda, magoando os outros e magoando-me a mim própria, e fiquei à espera da tua opinião? Mesmo sabendo que, ao contrário de todos os outros que escondiam o seu descontentamento por debaixo das cortinas dos mimos só para não me magoar, tu virias apontar-me o dedo e dizer-me que eu estava errada? Mesmo que isso me fizesse sofrer! Sempre Kika, sempre. Eu nunca te escondi nada. Porque é que tu tiveste de fazê-lo? – Gritava a Sílvia apontando-me o seu dedo indicador à cara.
- Porque sou uma covarde! – Gritei, já com as lágrimas a querem saltar dos meus olhos. – É isso que queres ouvir? Uma covarde que não soube lidar com a dor de ser traída e vingou-se no único ser que não tinha culpa nenhuma. Uma covarde que não conseguiu contar à melhor amiga que tinha feito merda da grossa. E sabes porquê? Porque a tua opinião é demasiado importante.
- Isso não é desculpa! – Retorquia ela desapontada, por entre gritos, algo raro no comportamento da minha amiga.
Eu seguia-lhe o exemplo e extravasava também toda a minha tristeza através do meu tom de voz alterado e nervoso. – Pois não, não é desculpa Sílvia. É a verdade. Porque quanto mais importantes são as opiniões das pessoas que amamos mais difícil se torna lidar com elas. Percebes?
- Não, desculpa mas eu não consigo perceber.
- Eu podia ter o mundo inteiro a crucificar-me por ter errado que, mesmo assim, eu ía arranjar forças para ultrapassar isso. Mas bastava que tu me crucificasses e, num segundo, eu perderia todas as forças, por mais que me esforçasse para não sofrer.
- Mas eu merecia esse esforço, Kika. Eu merecia que tu confiasses em mim.
- Mas eu confio. – Afirmava eu, agora num tom de quase súplica.
- Não, não confias. Se confiasses, ter-me-ias contado. Tal como fizeste ao David e só o conheces há pouco mais de um mês.
- Por isso mesmo! – Gritei já descontrolada.
- Por isso mesmo o quê?
- Não percebes que o David não é tão importante para mim como tu és? Caramba… – não consegui mais controlar o choro e deixei, por fim, que as primeiras lágrimas me rolassem pelo rosto. – eu compreendo a tua mágoa, mas tenta compreender a minha dor. Por favor, Sílvia, imagina como seria teres de chegar perto de alguém que amas muito e dizeres: «eu matei uma pessoa».
- Mas tu não mataste ninguém! – Disse-me, enraivecida. Estávamos ambas a perder o controlo das nossas próprias emoções.
- Matei sim! Matei o filho que eu carregava já no meu ventre!
- Pára de dizer disparates, pára por favor. – O choro compulsivo tinha tomado conta de nós. A Sílvia baixou-se então junto ao sofá, mesmo na minha frente. – Pára, Kika. Foi um acto negligente, não foi propositado. E desculpa se o que vou dizer é cruel, mas – a minha amiga engoliu em seco antes de continuar, enquanto me segurava no rosto – era apenas um embrião.
- Não – respondi-lhe num suspiro prolongado e muito convicto – era o meu filho!
- Era também o filho de um gajo que nem sequer merece ser pai. Muito menos de um filho teu. – Apesar de transtornada, a Sílvia tentava construir um discurso calmo e lúcido.
Fechei os olhos e voltei àquele maldito dia de Junho passado. Era impossível não deixar que aquelas imagens me voltassem a consumir a alma. – Dói tanto amiga… – Falava quase em surdina. Tinha perdido as forças. Estava de olhos cerrados e podia sentir as mãos da minha amiga a passearem-se por entre os meus cabelos loiros – … dói tanto não conseguir tirar aquelas imagens da minha cabeça. O teste de gravidez positivo, a felicidade imensa. Depois aqueles dois na minha cama, a cama onde eu entregava o meu amor àquele filho da puta. E as malditas linhas de coca no maço dos cigarros, a garrafa vazia no chão do carro, as ondas do mar a baterem com toda a força contra a areia. – Os soluços iam-me fazendo quebrar o discurso. – Dói tanto amiga…
- Shiu. Pára por favor! – Suplicava-me ela também em lágrimas.
Mas eu não conseguia. Era como se estivesse a ver um filme, quisesse carregar no botão “stop” e não encontrasse o comando. – E as palavras da médica. Aquela grande cabra. – Levei as mãos aos olhos, tentando impedir as lágrimas. - Mas o pior é que ela tem razão. Eu tenho a certeza que Deus me vai castigar.
- Hey… – gritou-me a Sílvia – e quem é ela para te dizer isso, hã?! Se eu lá estivesse podes apostar que ela engolia logo a merda das palavras. Olha para mim – ordenou-me, levantando-me a cabeça caída e apontando para cima – Se mereces castigo ou não, só Ele é que sabe. E Ele sabe que tu vais ser uma grande mãe, ouviste?
Apesar do sofrimento, não consegui evitar um sorriso, enquanto abanava a cabeça afirmativamente. – Pareces o David a falar!
- E tu só tens de ouvir o que nós dizemos e não o que uma gaja qualquer te diz, seja ela médica ou não. Percebeste?
- Sim. – Respondi timidamente. – Desculpa, babe, desculpa. Eu nunca, mas nunca te deveria ter escondido uma coisa destas. Desculpa-me, por favor. – Voltei a suplicar com toda a minha sinceridade.
- Jura que nunca mais me escondes nada, Kika. Nada, ouviste?
- Juro, juro, juro. – Respondi, numa troca de olhar tão profunda quanto honesta.

Era demasiado importante que a minha amiga voltasse a confiar em mim. A Sílvia ergueu-se ligeiramente e envolveu-me num abraço forte, ao qual eu correspondi com um enorme sorriso na cara. E ela não me largou sem antes me fazer um pedido, num sussurro meigo.

- Promete-me outra coisa.
- Tudo o que tu quiseres, bi.
- Promete-me que vais parar de chorar. – Ela voltou a olhar-me nos olhos. – Passa uma borracha nesse maldito passado de uma vez por todas, esquece tudo o que ficou para trás e segue a tua vida com um sorriso.
- Vou tentar.
- Vais tentar, nada. Vai conseguir. Pára de te subestimar, Kika. Tu és mais forte do que aquilo que tu pensas. Quem te visse no verão passado ia pensar que acabarias numa clínica qualquer de desintoxicação, amarrada à cama para evitar actos suicidas. E passados 7 meses, olha só para a tua vida. És independente, uma boa profissional, ganhas bem, tens uma casa, um carro novo e ainda namoras com o segundo jogador de futebol mais bonito do planeta. Queres mais? – Ela sorriu-me, provocante.
- Quero que tu deixes de ser mentirosa. Mas qual segundo jogador mais bonito, qual quê? O mais bonito, queres tu dizer! – Respondi-lhe num tom de brincadeira, enquanto enxugava as minhas próprias lágrimas.
- Pff, opiniões! – Afirmou-me com algum desdém. – E ao que consta a minha é bastante importante! – Referindo-se ironicamente à conversa que se tinha desenrolado naquela sala.
- Acredita que é, minha babe. Tal como tu és muito importante.
- Eu sei, bi. Tu também és muito importante para mim. Agora, vamos lá encerrar este assunto de uma vez por todas. Tu prometeste!
- E vou cumprir. Acredita que vou.
- Assim é que se fala. Agora vai lá fazer um jantarzinho maravilhoso como só tu sabes que eu vou tomar a banhoca que devia ter tomado há… – ela olhou para o relógio de soslaio – … merda! ‘Tou lixada!
- Que foi?
- O trabalho. Porra, esqueci-me do trabalho. Já não vou tomar banho nenhum. Estou super atrasada. – Desabafou, iniciando uma correria pela casa toda.
- Calma, precisas de ajuda? – Questionava, seguindo atrás dela para onde quer que ela fosse.
- Preciso. Preciso que me emprestes aquele teu gorro preto bué giro!Vou já buscar. – Dei meia volta ao corpo e segui em direcção ao meu quarto, enquanto a Sílvia, no corredor, calçava as botas, depois de já ter ido buscar os dois ou três sacos com as máquinas, flashs e todos os apetrechos necessários ao seu trabalho. Eu abri apressadamente uma das portas do meu guarda-fatos e retirei o gorro de uma das gavetas, voltando ao corredor em menos de um minuto. – Aqui está. Queres que to coloque?
- Quero, obrigada. – Respondeu-me com a respiração ofegante, enquanto tentava, atabalhoadamente, abotoar o casaco comprido.
- Mas que raio de trabalho vais tu fazer a estas horas? – Acabei de lhe compor o gorro e o cabelo e nem esperei pela resposta. A cara dela dizia tudo. – Social, pois claro. Paparazzi?
- Não. Evento. – Afirmou numa rapidez estonteante. Ajeitou a carteira nos ombros, pegou nos sacos e caminhou para a porta. Pegou a chave de casa, lançou-me um beijo e um “até amanhã” esganiçado e saiu. Eu aproveitei estar mesmo ali junto à porta da cozinha e entrei para preparar qualquer coisa para comer. Mas nem um segundo depois já estava de volta ao corredor, assim que ouvi as chaves rodarem na fechadura da porta de casa. Era a Sílvia, novamente. Empurrou a porta com força e fitou-me
- Olha lá, tu não devias estar a caminho de Coimbra?
A gargalhada foi incontrolável. – Devia, mas não estou. Já é tarde, prefiro sair amanhã cedo.
- Então não te esqueças de avisar a tua mãe. – Aproximou-se de mim a custo, devido ao peso de todas as malas que carregava aos ombros, e deu-me dois beijos. – Só para o caso de já estares a dormir quando eu chegar. E de eu não conseguir acordar de manhã para me despedir. Faz boa viagem. – Rodou o corpo esforçado equilíbrio, para tentar não bater em nada, e voltou a sair, deixando a porta para que eu a fechasse. Eu fiquei ali, por entre risos, a vê-la entrar para o elevador da mesma forma desordenada com que tinha saído de casa. – Liga-me quando lá chegares. – Gritou já dentro do elevador praticamente fechado.


Foi ainda por entre risos que eu fechei a porta de casa. “Estou para ver como é que vais sair do prédio”, pensei para com os meus botões e imaginando já a cena cómica que seria a minha amiga, carregada de tralhas, a tentar baixar-se para abrir as portas do prédio cujas fechaduras parecem ter sido colocadas à altura de uma criança de cinco anos. Voltei a entrar na cozinha, um pouco a cambalear. Apesar da tensão nervosa, provocada por aquela conversa, já ter passado, eu continuava a sentir-me um pouco zonza, com as mãos a tremelicar. Deduzi que fosse falta de alimento e o roncar do meu estômago acabou por confirmá-lo. Fiz apenas uns cereais e fui aninhar-me debaixo de um cobertor que acabei por colocar no sofá, dado o frio que se fazia sentir. Liguei a televisão com o volume quase no mínimo e por entre um entediante zapping, liguei à minha mãe e ao David para os avisar da alteração dos planos. Assim que desliguei a última chamada, programei o despertador do telemóvel, pousei-o no chão e entreguei-me aos prazeres da tranquilidade, o que não acontecia há pelo menos duas noites. Adormeci com duas certezas a passearem-se pelo meu pensamento, lento e já demasiadamente pesado: não voltaria a esconder o que quer que fosse da minha melhor amiga ou de outro alguém que eu amasse e a partir da manhã seguinte iria tratar de ser feliz.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Capítulo 36 - A desilusão

O chão tinha acabado de me fugir debaixo do corpo. Sentia-me em queda livre, sem qualquer amparo. Queria virar-me e enfrentar a Sílvia, queria pedir-lhe desculpa por lhe ter escondido algo tão grave, queria fechar de uma vez por todas aquele maldito passado num baú a sete chaves, mas o meu corpo não respondia à minha vontade.  Sentia o coração a bater com tanta força contra o peito que, por momentos, pensei que qualquer batida poderia ser a última. Não chorava, nem sequer chorava. Estava simplesmente estagnada e, mais do que isso, envergonhada!

- Eu pensava que era a tua melhor amiga! – As palavras da Sílvia, proferidas num tom mais baixo mas com a mesma raiva, despertaram-me do transe em que permanecia.
- Desculpa! – Falei em surdina, encarando finalmente a minha amiga. – Desculpa? É só isso que tens a dizer? Como é que pudeste esconder-me uma coisa destas, Kika? Como é que, em sete meses, não encontraste um momento sequer para me contares a verdade?
- Tens razão, eu devia ter-te contado, mas eu tive medo…
- Medo do quê?
- Do que tu pudesses pensar… – saí finalmente do meio das pernas do David e sentei-me na beira do sofá – tive medo que ficasses desiludida com a minha irresponsabilidade, que me condenasses por ter sido tão egoísta. Não queria desapontar-te. – O David sentiu-se a mais naquela conversa e, aproveitando o retorno da electricidade, levantou-se sorrateiramente e começou a sair da sala.
- Não precisas de sair David. – A Sílvia foi peremptória na sua afirmação, fazendo com que o David parasse mesmo a seu lado. – Eu já estou de saída. Vim só pegar algumas coisas que me esqueci. E pelos vistos valia mais nem sequer ter voltado a casa. – A Sílvia saiu da sala sem sequer olhar para mim. Eu levantei-me de imediato e segui-a até ao seu quarto. O David continuou o seu caminho até à cozinha. Ele sabia que aquela era uma conversa onde só havia lugar para nós duas.
- Si, nós precisamos de conversar. Deixa-me pelo menos tentar pedir desculpa. – Encostei-me à porta vendo a Sílvia andar de um lado para o outro. Ela ia arrumando umas roupas numa pequena mala. Suspeitei que aquela zanga estava a levar a minha amiga a preparar mais roupa do que inicialmente previsto. E isso assustou-me. – Vá lá Si, vamos conversar. – A Sílvia fechou a mala, parou firmemente e olhou-me no fundo dos meus olhos.
- Tiveste sete meses para conversar comigo. Sete. Agora, simplesmente, não me apetece ouvir-te. Estou magoada de mais para isso, porque tudo o que me possas dizer não me vai fazer encontrar um verdadeiro motivo para não teres confiado em mim. Se o teu problema era não me desiludir, então estes sete meses não serviram de nada, porque neste momento… tu és uma desilusão. – Aquelas palavras atingiram-me profundamente. E eu voltei a ficar sem palavras. Porque no mais fundo de mim, eu compreendia a Sílvia e a sua reacção.

Mal acabou de falar, a minha amiga pegou na pequena mala e saiu de casa, batendo a porta com força. Eu fiquei ali, no seu quarto, mais uma vez, com o arrependimento a consumir-me a alma. Sentei-me na sua cama onde contemplei, durante largos segundos, algumas fotos nossos espalhadas pelas paredes. Estava tão perdida em pensamentos que nem dei pela presença do David.

- Amanhã vocês conversam melhor e se entendem. – Apesar da esforçada convicção nas palavras de David, fiquei com a sensação de que nem ele acreditava nelas.
- Tenho receio de que isso não aconteça David.
- Claro que vai acontecer, meu amor, vocês são amigas faz um tempão, a vossa amizade é fera, vocês vão dar um jeito de se entender. Confia em mim. – O sorriso do David tranquilizou-me ligeiramente o coração, mas ainda assim não me deu a total confiança que eu necessitava.
- Porque é que eu só faço merda atrás de merda na minha vida?
- Shiu, não fala bobagem. Vem, vamo’ dormir.

Depois de me beijar suavemente os lábios, o David pegou na minha mão e levou-me até à sala. Apaguei todas as velas ainda acesas e aninhei o meu corpo junto do dele por baixo do cobertor. Ligámos a televisão, mas não retomámos a sessão de cinema. Estávamos, ambos, demasiado exaustos. Não demorou muito até que adormecêssemos.


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Acordei bem cedo com um carinhoso beijo do David, que me provocou um leve sorriso. Apesar da montanha-russa de emoções que tinha tido nos últimos dias, sentia-me serena e isso, indubitavelmente, devia-o à presença do David na minha vida. Por isso, queria recompensá-lo de todas as formas que pudesse… sobretudo com manifestações de amor. Antes que ele se levantasse, coloquei os meus braços à volta do seu pescoço e beijei-o apaixonadamente, apanhando-o completamente de surpresa.

- Ué, parece que alguém acordou com fome de beijo?! – Não consegui evitar soltar um sorriso rasgado.
- É o que faz dormir assim tão bem acompanhada. Já agora… – fitei-o – por que raio dormiste tu na minha casa?
O David esbugalhou os olhos, corou e muito timidamente tentou encontrar uma explicação. – Eu pensei que você queria que eu ficasse aqui, mas… se calhar, tem razão, estamos levando as coisas depressa demais, né?
- Ei, calma, estava a brincar. – Respondi-lhe com uma festa na cara e um sorriso – estava só a brincar, querido. Mas não deixa de ser estranho!
- A gente dormir junto?
- Tudo, David, tudo. Ainda há dias estava a jurar a mim mesma que não ia envolver-me contigo, que não podia apaixonar-me por ti e olha, sem dar por isso, o teu cheiro embrenhou-se em mim e acho que já não sai mais.
- Hum… e o meu cheiro é bom ou mau? – Perguntou-me, divertido.
- Hum, deixa cá pensar – rodopiei o dedo em volta do nariz durante uns segundos – pelo sim, pelo não… é melhor ires tomar banho.

O David fingiu uma cara de irritação, agarrou-me pela cintura e rodou os nossos corpos de forma a colocar-se sobre mim, roçando o seu corpo no meu, propositadamente.

- Cê tá falando que eu cheiro mal, garota? É isso que cê tá falando? – quanto mais ele tentava fazer uma cara séria, mais eu me ria à gargalhada.
- Não, cheirosinho, ‘tava na brincadeira, juro! Agora, dá-me um beijinho, vá lá!
- Zoa com a minha cara e agora quer beijo, é? Não tem beijo para ninguém!
- Vá lá querido, só um! – O David afastava a sua cara da minha e eu tentava, a custo, segurar-lhe a cabeça. Apesar disso, não foi difícil juntar os nossos lábios, as nossas bocas já não respeitavam as nossas ordens e, quiséssemos nós beijarmo-nos ou não, elas tinham vontade própria.

Depois de uma longa troca de beijos, saímos finalmente daquela cama improvisada no sofá da sala. O David ajudou-me a arrumar tudo no sítio e ainda me tentou convencer a ir com ele para a banheira, convite que eu neguei peremptoriamente. As horas passavam e eu ainda tinha de preparar a mala para levar para Coimbra. Assim podia aproveitar o tempo para passar em casa dele depois de sair da empresa e antes de me fazer à estrada, ao final da tarde. Assim que o David saiu da casa de banho, eu fui tomar um banho e arranjar-me enquanto ele acabava de preparar o pequeno-almoço. Cheguei à cozinha de novo cabisbaixa. Durante aqueles minutos sozinha não foi fácil tirar as palavras azedas da Sílvia da minha cabeça. Voltava a respirar culpa por todos os poros, como há muito não acontecia. O David não ficou indiferente à minha tristeza e recebeu-me com um forte abraço.

- Vamo comer, você vai trabalhar, deixar passar o tempo e logo, logo vocês não vão mais lembrar dessa zanga. – O David olhou para o relógio e eu percebi que tinha de comer rapidamente. Sentámo-nos frente a frente e, pela primeira vez naquela manhã, reparei no seu ar cansado. Tive a certeza que também ele tinha dormido mal.
- Tenho que falar com a Sílvia ainda hoje, não posso ir para Coimbra com esse nó na garganta. Tenho de resolver este assunto rapidamente.
- Dá um tempo p’ra ela, Kika. Deixa ela colocar as ideias em ordem.
- Mas eu não posso deixar este assunto arrastar-se por muito mais tempo, David. Nós vivemos na mesma casa, ela é a minha melhor amiga, eu não tenho mais ninguém aqui. Se a Sílvia ficar zangada comigo, o que é que eu vou fazer?
- Como assim não tem mais ninguém? E eu sou o quê? – O David tinha levado aquela afirmação à letra, ficando mesmo magoado.
- Tu és um grande mas muito recente amigo, por quem me apaixonei loucamente e que estou a conhecer aos poucos. Não é a mesma coisa. A Sílvia conhece-me de olhos fechados, é uma irmã para mim. Da mesma forma que eu e o Gustavo não temos a mesma importância na tua vida, certo?
- Certo. Desculpa, ‘tava sendo bobo. Você tem toda a razão, desculpa.
- Não precisas de pedir desculpa. – Levantei-me e dei-lhe um beijo. – Vou só lavar os dentes e saímos, sim?
- Vai lá então. Não esquece de pegar a mala para colocar na bagageira.
- Não esqueço. – Respondi-lhe, já à entrada da casa de banho. Escovei os dentes e despedi-me depois do David já junto à porta do apartamento. Combinámos que ele sairia do prédio quinze minutos depois de mim. Àquela hora havia já movimento no elevador e nas escadas de acesso à garagem e, para evitar olhares curiosos, ele ficou com as chaves da minha casa e com o comando da garagem, que me entregaria ao final da tarde quando eu passasse por casa dele.


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Foram simplesmente em vão, todas as tentativas que fiz, ao longo do dia, para conseguir falar com a Sílvia. Ela não me atendia as chamadas, não me respondia às mensagens enviadas e eu começava já a desesperar. O dia de trabalho tinha voltado a ser de uma dureza indescritível. Por mais que me tentasse concentrar, o meu pensamento não tinha estado nunca naquela empresa e em todos os assuntos importantes que tinha para tratar. Por isso, a melhor maneira para descrever a minha saída da empresa é garantindo que o fiz a voar. Conduzi em direcção a casa do David para ir buscar as minhas chaves e despedir-me dele, com uma ténue esperança de encontrar por lá a Sílvia.
Estacionei o carro e entrei no elevador de coração acelerado. Aquela viagem até ao sétimo andar pareceu-me demasiado longa.

- Oi meu anjo, tudo bem? – Perguntou-me o David de sorriso rasgado, afastando a porta para a minha entrada.
- Olá. Sim, está tudo bem. – Afirmei de uma forma pouco convicta, fechando a porta atrás de mim.
- Hum, não ‘tá parecendo não. – Passando o braço à volta do meu corpo, o David abraçou-me e beijou-me carinhosamente. – Vamo’ para a sala, que eu vou pegar as suas chaves.
- Espera. – Interrompi-o apressadamente – o Gustavo está em casa?
- Está lá no quarto – ao ouvir aquelas palavras, um sorriso inundou-me os lábios… mas por pouco tempo – mas ‘tá sozinho! – Frisou o David, sabendo exactamente o que eu pretendia com aquela pergunta. – A Sílvinha já esteve aqui, mas foi embora há pouco. Disse que tinha um trabalho ainda esta noite. Você ainda não conseguiu falar com ela?
O David entrou na sala e eu segui-o, encostando-me na parede enquanto o via retirar as chaves e o comando de uma das gavetas do móvel por baixo da televisão. – Não está fácil. Vinha com esperanças de encontrá-la aqui. Queria mesmo esclarecer tudo antes de ir para Coimbra. – Soltei um longo suspiro, em jeito de resignação.
- Vai ver e é melhor assim. Cê vai para Coimbra, fica dois dias lá e quando voltar, tenho a certeza que a Sílvinha já vai tá’ querendo falar com você! – O David veio juntar-se a mim.
- Não sei. Que grande merda, eu sou mesmo um poço de problemas!
- Qué isso, Kika?! Deixa de bobagem. Vem cá, vem. – Aceitei a sugestão do David, aninhei-me no corpo dele e deliciei-me com as festinhas que ele me ia fazendo na cabeça. – Pára de falar essas coisas. – Pediu-me com um sorriso tranquilo.
- Desculpa… e obrigada. – Devolvi-lhe o sorriso.
- Ué… tá pedindo desculpas e agradecendo porquê?
- Oh David – olhei-o profundamente – tu sabes porquê. Desde que nos conhecemos que esta relação tem sido demasiado atribulada, com encontros, desencontros, lágrimas e tu tens sido sempre tão paciente. E eu conto-te sobre as maiores barbaridades que já fiz na minha vida e nem por um segundo encontrei qualquer palavra ou olhar teu que me julgasse. Isso é importante, sabes?
- Não sou eu que te vou julgar, Kika. É só com Ele que você vai ter de se acertar. – afirmou com o dedo indicador apontado para cima. - Escuta – o David segurou-me no queixo e olhou-me profundamente – ninguém está livre de escolher um caminho errado na vida, o importante é assumir que é errado e tentar dar um jeito de voltar para o caminho certo. E isso, você tem feito! E sabe essa culpa e essa dor que você sente aí dentro de você??? – Eu acenei a cabeça afirmativamente. – Não tem maior julgamento do que esse, não. – Ficámos ambos em silêncio durante largos minutos e só o beijo que David me deu interrompeu aquele momento.
- Tenho de ir, David, está a ficar tarde e a viagem é longa. – Rodei o corpo e comecei a dirigir-me à porta. O David veio logo atrás de mim.
- Guarda as chaves, antes que esqueça. E a mala, você pegou?
- Sim, está aqui. – Retorqui, apontando para a carteira que segurava na mão direita.
- Não é essa não. A mala de viagem que ‘tava no corredor da sua casa… cê pegou quando saiu?
- Sim, acho que sim.
- Cê acha ou tem certeza?
- Hum… eu acho… que tenho a certeza. – Soltei uma gargalhada e despedi-me dele com um beijo apaixonado.
- Maluca, viu. Dirige com cuidado e quando chegar lá me liga, tá combinado?
- Sim, claro. Boa sorte para o jogo de amanhã, mas só para ti, não é para a equipa.
- Ah cala a boca, oh lagartixa! – Ordenava o David, silenciando-me com um beijo. – Faz boa viagem, meu anjo. Te amo.
- Eu também… – vi por breves instantes um brilho especial no olhar d David – … gosto muito de ti. – Não indiferente à tristeza que depressa o consumiu, beijei-o apaixonadamente. – Adoro-te, meu caracolinhos! Xau Gu. – Gritei, por entre os leves beijos que ia trocando com o David antes de abrirmos a porta de casa. Ainda ouvi a resposta do Gustavo ao fundo do corredor, voltei a beijar o David, a contemplar por mais uns instantes aquele sorriso carinhoso que tão facilmente me aquecia o coração e saí finalmente.

Desci as escadas em jeito de corrida, não tanto pela pressa que tinha em viajar para Coimbra, mais pela ânsia de confirmar se de facto tinha guardado a mala de viagem na bagageira do carro. E se o meu dia estava a correr mal, ficou ainda pior assim que abri o carro e vi a bagageira vazia. “Merda, Kika, como é que te foste esquecer da porcaria da mala?”, rosnei por entre dentes. Entrei no carro e segui viagem até casa, irritada com o meu esquecimento e apavorada só de imaginar o trânsito que iria apanhar para passar Lisboa, num final de tarde de sexta-feira.
Em passo acelerado, entrei no prédio e esperei pelo elevador. Ainda não tinha conseguido recuperar da corrida nas escadas do prédio do David e, na verdade, aqueles dois dias sem fumar ainda não surtiam qualquer efeito na minha condição cardiorrespiratória, que se ressentia claramente das quantidades exacerbadas de nicotina que eu havia consumido nos últimos dez anos da minha vida.
A espera pelo elevador não foi longa, tal como não o foi a viagem até ao sétimo andar, onde o agradável cheiro a vários cozinhados assinalava a hora de jantar e despertava o trabalhar do meu estômago, mal aconchegado com a sopa ingerida apressadamente ao almoço. Coloquei as chaves na fechadura sem imaginar, por momento algum, que talvez aquela miscelânea de aromas fosse também um sinal de que o meu jantar teria lugar naquele cómodo apartamento da margem sul e não em Coimbra, como previsto.
Assim que bati com a porta, vi a Sílvia sair, hesitante, do seu quarto. Encontrei na minha amiga um olhar triste, acentuado pelas olheiras arroxeadas que sobressaíam do moreno claro da sua pele. Fiquei feliz de a ver e acho que foi o brilhozinho nos meus olhos, provocado por tamanha felicidade, que demonstrou à minha amiga que aquele havia sido um encontro inesperado para ambas. A Sílvia caminhou, então, calmamente, pelo corredor, entrando na sala sem me olhar e eu segui-a atentamente. Soubemos, naquele exacto momento, que aquela conversa não iria mais ser adiada. E, afinal, a cidade dos estudantes podia esperar… a nossa amizade não!


Olá,
esta é a primeira vez que ouso escrever qualquer comentário no final do capítulo, mas tenho mesmo de o fazer. Por vocês! Pelo carinho, pelas palavras sempre simpáticas, pelo tempo que dispensam a ler o que eu escrevo, pelas visitas que continuam a fazer ao meu blogue, por acompanharem a história, mesmo que nos últimos tempos eu demore tanto a actualizá-la. E é sobretudo por este último motivo que eu tenho mesmo de vos agradecer. O último capítulo que postei foi há mais de um mês, no entanto, todos os dias as visitas ao blogue aumentam significativamente. E isso sabe tão bem! Como é tão bom ter tantos comentários em cada capítulo novo. Portanto, muito obrigada a todas (eventualmente a todos J) por continuarem a acompanhar a minha fanfic. Espero que continuem a ler, a comentar, a opinar…
Beijinhos
Ana M.