terça-feira, 19 de julho de 2011

Capítulo 37 – Depois da tempestade… a bonança


Dois corpos cansados, caídos sobre o sofá. Duas faces pálidas e enrugadas pela tristeza. Duas respirações pesadas e sufocantes. Ali estávamos nós, eu e a Sílvia, a viver o nosso primeiro grande desentendimento, desde que nos tornáramos amigas, há quase uma década. Na verdade, nem uma nem outra sabíamos lidar com aquela dor que manchava a nossa relação, que até então havia sido sempre marcada pela união, pela cumplicidade, pela verdade. Não conseguia lembrar-me de uma única vez que a Sílvia me tivesse mentido ou escondido algo verdadeiramente importante e essa constatação aumentava ainda mais a culpa que sentia por ter sido eu a quebrar os laços de confiança existentes. Mas foi precisamente esse sentimento que me fez quebrar o silêncio imposto naquela sala.

Soltei um falso sorriso, tentando disfarçar o meu nervosismo – Bem, passei o dia todo a preparar esta conversa e… na verdade, não sei muito bem por onde começar. – A Sílvia olhava para mim, estranhamente calma. Eu passava a língua nos lábios, humedecendo-os. – Acho que o mais importante é dizer-te que lamento muito estar a magoar-te. Eu sei que nunca deveria ter-te escondido uma coisa destas, mas eu…
- Eu só queria perceber porquê! – A Sílvia ajeitava-se no sofá, encolhendo as pernas contra o peito, agarrando-as com as duas mãos. – Porquê, Kika? – Perguntava-me com uma tristeza imensa na voz e no olhar.
- Falta de coragem. – Respondi-lhe da outra ponta do sofá, onde eu permanecia sentada da mesma forma que a minha amiga. – Acho que foi isso. Eu quis contar-te, Si, eu juro que sim. Mas de cada vez que eu tentava fazê-lo, perdia as forças. O medo tomava conta de mim.
- Medo do quê? Explica-me, porque eu não consigo entender.
- Medo de te desiludir. O que eu fiz foi cruel e tu de certeza que me dirias isso. Ias chamar-me à razão e condenar o meu comportamento desumano. E eu já estava a sofrer tanto que não conseguiria suportar mais essa dor.
- Caramba, Kika… – soltou num tom de voz mais elevado, perdendo a postura calma que havia mantido até então. – A nossa amizade sempre foi baseada na verdade, por muito que doesse, por muito que custasse. Não foi sempre assim? – Irrequieta, a Sílvia saiu então do sofá e começou a caminhar de um lado para o outro, enquanto continuava o seu discurso. – Quantos vezes eu fiz merda, magoando os outros e magoando-me a mim própria, e fiquei à espera da tua opinião? Mesmo sabendo que, ao contrário de todos os outros que escondiam o seu descontentamento por debaixo das cortinas dos mimos só para não me magoar, tu virias apontar-me o dedo e dizer-me que eu estava errada? Mesmo que isso me fizesse sofrer! Sempre Kika, sempre. Eu nunca te escondi nada. Porque é que tu tiveste de fazê-lo? – Gritava a Sílvia apontando-me o seu dedo indicador à cara.
- Porque sou uma covarde! – Gritei, já com as lágrimas a querem saltar dos meus olhos. – É isso que queres ouvir? Uma covarde que não soube lidar com a dor de ser traída e vingou-se no único ser que não tinha culpa nenhuma. Uma covarde que não conseguiu contar à melhor amiga que tinha feito merda da grossa. E sabes porquê? Porque a tua opinião é demasiado importante.
- Isso não é desculpa! – Retorquia ela desapontada, por entre gritos, algo raro no comportamento da minha amiga.
Eu seguia-lhe o exemplo e extravasava também toda a minha tristeza através do meu tom de voz alterado e nervoso. – Pois não, não é desculpa Sílvia. É a verdade. Porque quanto mais importantes são as opiniões das pessoas que amamos mais difícil se torna lidar com elas. Percebes?
- Não, desculpa mas eu não consigo perceber.
- Eu podia ter o mundo inteiro a crucificar-me por ter errado que, mesmo assim, eu ía arranjar forças para ultrapassar isso. Mas bastava que tu me crucificasses e, num segundo, eu perderia todas as forças, por mais que me esforçasse para não sofrer.
- Mas eu merecia esse esforço, Kika. Eu merecia que tu confiasses em mim.
- Mas eu confio. – Afirmava eu, agora num tom de quase súplica.
- Não, não confias. Se confiasses, ter-me-ias contado. Tal como fizeste ao David e só o conheces há pouco mais de um mês.
- Por isso mesmo! – Gritei já descontrolada.
- Por isso mesmo o quê?
- Não percebes que o David não é tão importante para mim como tu és? Caramba… – não consegui mais controlar o choro e deixei, por fim, que as primeiras lágrimas me rolassem pelo rosto. – eu compreendo a tua mágoa, mas tenta compreender a minha dor. Por favor, Sílvia, imagina como seria teres de chegar perto de alguém que amas muito e dizeres: «eu matei uma pessoa».
- Mas tu não mataste ninguém! – Disse-me, enraivecida. Estávamos ambas a perder o controlo das nossas próprias emoções.
- Matei sim! Matei o filho que eu carregava já no meu ventre!
- Pára de dizer disparates, pára por favor. – O choro compulsivo tinha tomado conta de nós. A Sílvia baixou-se então junto ao sofá, mesmo na minha frente. – Pára, Kika. Foi um acto negligente, não foi propositado. E desculpa se o que vou dizer é cruel, mas – a minha amiga engoliu em seco antes de continuar, enquanto me segurava no rosto – era apenas um embrião.
- Não – respondi-lhe num suspiro prolongado e muito convicto – era o meu filho!
- Era também o filho de um gajo que nem sequer merece ser pai. Muito menos de um filho teu. – Apesar de transtornada, a Sílvia tentava construir um discurso calmo e lúcido.
Fechei os olhos e voltei àquele maldito dia de Junho passado. Era impossível não deixar que aquelas imagens me voltassem a consumir a alma. – Dói tanto amiga… – Falava quase em surdina. Tinha perdido as forças. Estava de olhos cerrados e podia sentir as mãos da minha amiga a passearem-se por entre os meus cabelos loiros – … dói tanto não conseguir tirar aquelas imagens da minha cabeça. O teste de gravidez positivo, a felicidade imensa. Depois aqueles dois na minha cama, a cama onde eu entregava o meu amor àquele filho da puta. E as malditas linhas de coca no maço dos cigarros, a garrafa vazia no chão do carro, as ondas do mar a baterem com toda a força contra a areia. – Os soluços iam-me fazendo quebrar o discurso. – Dói tanto amiga…
- Shiu. Pára por favor! – Suplicava-me ela também em lágrimas.
Mas eu não conseguia. Era como se estivesse a ver um filme, quisesse carregar no botão “stop” e não encontrasse o comando. – E as palavras da médica. Aquela grande cabra. – Levei as mãos aos olhos, tentando impedir as lágrimas. - Mas o pior é que ela tem razão. Eu tenho a certeza que Deus me vai castigar.
- Hey… – gritou-me a Sílvia – e quem é ela para te dizer isso, hã?! Se eu lá estivesse podes apostar que ela engolia logo a merda das palavras. Olha para mim – ordenou-me, levantando-me a cabeça caída e apontando para cima – Se mereces castigo ou não, só Ele é que sabe. E Ele sabe que tu vais ser uma grande mãe, ouviste?
Apesar do sofrimento, não consegui evitar um sorriso, enquanto abanava a cabeça afirmativamente. – Pareces o David a falar!
- E tu só tens de ouvir o que nós dizemos e não o que uma gaja qualquer te diz, seja ela médica ou não. Percebeste?
- Sim. – Respondi timidamente. – Desculpa, babe, desculpa. Eu nunca, mas nunca te deveria ter escondido uma coisa destas. Desculpa-me, por favor. – Voltei a suplicar com toda a minha sinceridade.
- Jura que nunca mais me escondes nada, Kika. Nada, ouviste?
- Juro, juro, juro. – Respondi, numa troca de olhar tão profunda quanto honesta.

Era demasiado importante que a minha amiga voltasse a confiar em mim. A Sílvia ergueu-se ligeiramente e envolveu-me num abraço forte, ao qual eu correspondi com um enorme sorriso na cara. E ela não me largou sem antes me fazer um pedido, num sussurro meigo.

- Promete-me outra coisa.
- Tudo o que tu quiseres, bi.
- Promete-me que vais parar de chorar. – Ela voltou a olhar-me nos olhos. – Passa uma borracha nesse maldito passado de uma vez por todas, esquece tudo o que ficou para trás e segue a tua vida com um sorriso.
- Vou tentar.
- Vais tentar, nada. Vai conseguir. Pára de te subestimar, Kika. Tu és mais forte do que aquilo que tu pensas. Quem te visse no verão passado ia pensar que acabarias numa clínica qualquer de desintoxicação, amarrada à cama para evitar actos suicidas. E passados 7 meses, olha só para a tua vida. És independente, uma boa profissional, ganhas bem, tens uma casa, um carro novo e ainda namoras com o segundo jogador de futebol mais bonito do planeta. Queres mais? – Ela sorriu-me, provocante.
- Quero que tu deixes de ser mentirosa. Mas qual segundo jogador mais bonito, qual quê? O mais bonito, queres tu dizer! – Respondi-lhe num tom de brincadeira, enquanto enxugava as minhas próprias lágrimas.
- Pff, opiniões! – Afirmou-me com algum desdém. – E ao que consta a minha é bastante importante! – Referindo-se ironicamente à conversa que se tinha desenrolado naquela sala.
- Acredita que é, minha babe. Tal como tu és muito importante.
- Eu sei, bi. Tu também és muito importante para mim. Agora, vamos lá encerrar este assunto de uma vez por todas. Tu prometeste!
- E vou cumprir. Acredita que vou.
- Assim é que se fala. Agora vai lá fazer um jantarzinho maravilhoso como só tu sabes que eu vou tomar a banhoca que devia ter tomado há… – ela olhou para o relógio de soslaio – … merda! ‘Tou lixada!
- Que foi?
- O trabalho. Porra, esqueci-me do trabalho. Já não vou tomar banho nenhum. Estou super atrasada. – Desabafou, iniciando uma correria pela casa toda.
- Calma, precisas de ajuda? – Questionava, seguindo atrás dela para onde quer que ela fosse.
- Preciso. Preciso que me emprestes aquele teu gorro preto bué giro!Vou já buscar. – Dei meia volta ao corpo e segui em direcção ao meu quarto, enquanto a Sílvia, no corredor, calçava as botas, depois de já ter ido buscar os dois ou três sacos com as máquinas, flashs e todos os apetrechos necessários ao seu trabalho. Eu abri apressadamente uma das portas do meu guarda-fatos e retirei o gorro de uma das gavetas, voltando ao corredor em menos de um minuto. – Aqui está. Queres que to coloque?
- Quero, obrigada. – Respondeu-me com a respiração ofegante, enquanto tentava, atabalhoadamente, abotoar o casaco comprido.
- Mas que raio de trabalho vais tu fazer a estas horas? – Acabei de lhe compor o gorro e o cabelo e nem esperei pela resposta. A cara dela dizia tudo. – Social, pois claro. Paparazzi?
- Não. Evento. – Afirmou numa rapidez estonteante. Ajeitou a carteira nos ombros, pegou nos sacos e caminhou para a porta. Pegou a chave de casa, lançou-me um beijo e um “até amanhã” esganiçado e saiu. Eu aproveitei estar mesmo ali junto à porta da cozinha e entrei para preparar qualquer coisa para comer. Mas nem um segundo depois já estava de volta ao corredor, assim que ouvi as chaves rodarem na fechadura da porta de casa. Era a Sílvia, novamente. Empurrou a porta com força e fitou-me
- Olha lá, tu não devias estar a caminho de Coimbra?
A gargalhada foi incontrolável. – Devia, mas não estou. Já é tarde, prefiro sair amanhã cedo.
- Então não te esqueças de avisar a tua mãe. – Aproximou-se de mim a custo, devido ao peso de todas as malas que carregava aos ombros, e deu-me dois beijos. – Só para o caso de já estares a dormir quando eu chegar. E de eu não conseguir acordar de manhã para me despedir. Faz boa viagem. – Rodou o corpo esforçado equilíbrio, para tentar não bater em nada, e voltou a sair, deixando a porta para que eu a fechasse. Eu fiquei ali, por entre risos, a vê-la entrar para o elevador da mesma forma desordenada com que tinha saído de casa. – Liga-me quando lá chegares. – Gritou já dentro do elevador praticamente fechado.


Foi ainda por entre risos que eu fechei a porta de casa. “Estou para ver como é que vais sair do prédio”, pensei para com os meus botões e imaginando já a cena cómica que seria a minha amiga, carregada de tralhas, a tentar baixar-se para abrir as portas do prédio cujas fechaduras parecem ter sido colocadas à altura de uma criança de cinco anos. Voltei a entrar na cozinha, um pouco a cambalear. Apesar da tensão nervosa, provocada por aquela conversa, já ter passado, eu continuava a sentir-me um pouco zonza, com as mãos a tremelicar. Deduzi que fosse falta de alimento e o roncar do meu estômago acabou por confirmá-lo. Fiz apenas uns cereais e fui aninhar-me debaixo de um cobertor que acabei por colocar no sofá, dado o frio que se fazia sentir. Liguei a televisão com o volume quase no mínimo e por entre um entediante zapping, liguei à minha mãe e ao David para os avisar da alteração dos planos. Assim que desliguei a última chamada, programei o despertador do telemóvel, pousei-o no chão e entreguei-me aos prazeres da tranquilidade, o que não acontecia há pelo menos duas noites. Adormeci com duas certezas a passearem-se pelo meu pensamento, lento e já demasiadamente pesado: não voltaria a esconder o que quer que fosse da minha melhor amiga ou de outro alguém que eu amasse e a partir da manhã seguinte iria tratar de ser feliz.

4 comentários:

  1. Andava eu aqui a passear por curiosidade antes de me ir deitar e mesmo naquela de quem se cansou de escrever e não tem mais nada pra fazer e deparo-me com esta bela relíquia! :D
    Nem sei que te diga, minha linda!
    O capítulo está maravilhoso e deixa-nos com as emoções à flor da pele, como tão bem nos habituaste desde o início desta história!

    Agora quero mais, para ver onde esta busca pela felicidade a leva! :)

    Beijinhos ^^

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  2. Que lindo!

    Ora aqui está uma verdadeira amizade :)

    Continua, quero mais :)

    Bjs

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  3. Uma conversa séria mas necessária,os amigos verdadeiros são assim, para o bem e para mal,principalmente para o mal.
    Adorei este capitulo emocionante,fico á espera de mais.
    Bjs

    Fernanda

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  4. Amei o capitulo, alias eu amo a tua fic. Morro de saudade quando não publicas :D
    Quero mais!
    Beijo

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