sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Capítulo 31 - Amei tudo isso!

 
Acordei com um ligeiro arrepio de frio causado pela manhã gelada que se fazia sentir em Paris. Num movimento quase automático, puxei os cobertores até aos ombros e cheguei o meu corpo mais para o centro da cama, na esperança de encontrar o corpo quente do David. Rápido me apercebi de que estava sozinha. Abri os olhos lentamente, enquanto me espreguiçava daquela noite de sono tranquila. Percebi então que o David estava já a tomar banho. À medida que ia despertando, tornava-se mais nítido o som da água a cair do chuveiro. Levantei-me e, ainda a cambalear, percorri o caminho até à casa de banho. Abri suavemente a porta e, pé ante pé, cheguei até ao lavatório. Aproveitei as cantorias do David para lavar os dentes sem que ele notasse a minha presença. Sorri, antes de abrir as portadas do poliban e me juntar a ele num duche matinal. O David cantava, entusiasmado, uma música de um dos meus artistas brasileiros favoritos. Apesar da tremenda desafinação, era fácil de perceber que ele cantava com sentimento.

- “Hoje preciso de você, com qualquer humor, com qualquer sorriso, hoje só tua presença, vai me deixar feliz…”

Antes que ele chegasse à última frase do refrão, eu abri a portada e encostei-me de sorriso rasgado.

- “… Só hoje” – cantei, com a voz rouca de quem acaba de acordar – Bom dia, caracolinhos.
- Bom dia, lagartixa dorminhoca. – O David retribui-me o sorriso e de imediato estendeu-me a mão, convidando-me a partilhar o chuveiro com ele – Vem!

Eu não recusei aquele convite tentador. Despi-me num ápice e meti-me debaixo da água que fervia. O David envolveu-me num abraço e beijou-me.

- Que jeito mais gostoso de começar o dia – disse, passando as suas mãos na minha cara.
- Mesmo. – Segurei-lhe numa das mãos e beijei-a – Mas podias me ter acordado.
- Não tinha como. Você ‘tava tão linda dormindo. Tive até pena de acordar você!
- Oh… obrigada. Como eu gostava que o meu despertador pensasse assim… – Rimo-nos descontroladamente.
- Você é demais, sabia? Ainda agora acordou e já ‘tá falando bobagem!
- Eu sou mesmo boba, sabia? – Perguntei-lhe imitando o seu sotaque, depois de lhe beijar o peito. – Nem vi as horas. Já é tarde?
- Quando eu levantei eram nove e meia.
- Hum, isso significa que temos mais duas horas.
- É… dá para gente se arrumar e tomar o café da manhã com calma.
- E eu acordei cá com uma fome! Mas é melhor pedirmos e comermos aqui, não é? Deve estar muita gente lá em baixo.
- Não se preocupa não, eu já tratei de tudo.
- A sério? – Perguntei-lhe, surpreendida – És um cavalheiro, David! E é por isso que eu gosto tanto de ti – Sorri-lhe e beijei-o apaixonadamente.

Deixámo-nos ficar durante quase meia hora naquele banho a dois. E a culpa daquela demora era dos nossos corpos que teimavam em não se afastar, dos nossos lábios que insistiam em unir-se e das carícias não conseguíamos parar de trocar.

O David foi o primeiro a sair debaixo do chuveiro. Enquanto se enxugava, retomou as cantorias desafinadas e eu voltei a deliciar-me ao ouvi-lo, enquanto passava o cabelo por água uma última vez.

Envoltos nas macias toalhas brancas, regressámos para junto da cama onde nos vestimos. O David continuava a cantar e eu tinha-me juntado a ele. Individualmente as nossas vozes eram insuportáveis, mas em simultâneo a desafinação parecia desaparecer. Cantámos de novo a mesma música do banho.

- Você gosta de Jota Quest? – Perguntou-me o David enquanto apertava os atacadores das sapatilhas.
- Aprendi a gostar com a Andreia, uma amiga minha da faculdade. Ela adora as músicas deles.
- Cê sabe que eles vão dar um concerto lá em Lisboa daqui a duas semanas?
- Semana e meia. – Respondi-lhe num ar trocista, esfregando suavemente a toalha contra o cabelo para tirar o excesso de água – Sim, sei. Mas eu não vou.
- Ué, porquê? – O David estava em frente ao espelho do guarda-fatos a ajeitar a roupa
- Porque os bilhetes já estão esgotados. – Respondi-lhe com alguma tristeza na voz. – E tu vais?
- Não – afirmou com alguma rapidez – tenho jogo na Madeira nesse dia. E meus pais já vão estar em Lisboa por essa altura e meu pai não gosta muito não – o David continuava a falar sem tirar os olhos do espelho – então não é uma boa ideia.
- Pois. – Afastei-me da cama, tirei a toalha da cabeça e caminhei em direcção à casa de banho – Tenho esperança de que eles voltem! – Gritei já de secador na mão. – O David não me respondeu e eu liguei o aparelho.
Não me apercebi de quanto tempo tinha gasto a enxugar o cabelo, mas quando regressei ao quarto já a secretária estava transformada numa mesa de pequeno-almoço repleta de pão, queijo, bolo, sumo, leite, café e fruta. O David estava sentado com um jornal francês, aberto sobre as pernas, que ia folheando rapidamente, olhando apenas para as imagens. Assim que encontrou a secção de desporto, parou. Passou os olhos nas imagens e depois centrou toda a sua atenção no texto. Eu sentei-me ao seu lado e fiquei a olhar para ele, a sorrir. Ao fim de algum tempo, o David levantou a cabeça e fitou-me. Pela sua expressão facial percebi que não tinha entendido patavina do que tinha acabado de ler.

- Precisas de ajuda? – Perguntei-lhe com ar de gozo.
- Cê percebe esse negócio que ‘tá aí escrito? – Ripostou, passando-me o jornal para a mão. Eu fingi uma leitura atenta da reportagem sobre o jogo da noite anterior e alguns segundos depois respondi-lhe.
- Ora bem – coloquei um ar de quem estava preparada para uma longa explicação – o texto diz que – parei a tempo de evitar o riso – o Benfica foi muito superior ao PSG, que toda a equipa jogou muito bem mas que de facto o melhor em campo foi o central esquerdo…
- Eu? – O David olhava estupefacto para mim e eu quase perdia o controlo da situação – onde que cê leu isso?
- Aqui – disse-lhe, apontado com o dedo, aleatoriamente, para uma das frases do texto – mas deixa-me continuar. Portanto, diz que o melhor em campo foi o central esquerdo que, como recompensa, teve direito a uma noite de sonho. – Acabei de falar e continuei a olhar, séria, para o David, que continuava atónito.
- Ah… cê tá zoando da minha cara! – Resmungou o David ao fim de alguns segundos, tirando-me de imediato o jornal das mãos, enquanto eu me ria às gargalhadas. – Que maldade, isso não se faz garota.

Enquanto o David combatia a sua indignação com uma chávena de café com leite, eu continuava agarrada à barriga, sem conseguir controlar o riso e algumas lágrimas que já me corriam pela face.

- Vai gozando, vai Kika. Cê não espera pela demora, não! – Dizia-me o David por entre uma golada e um sorriso.
- Desculpa, David, mas foi mais forte que eu. Desculpa, sim? – Perguntava-lhe, enquanto lhe tentava dar um beijo, que ele evitava a todo o custo, colocando os braços á frente da cara. – Oh caracolinhos desculpa. Sim?
- Eu vou pensar no seu assunto mais tarde.
- Hum… está bem. Mas agora podes passar-me o pão, por favor?
- Posso. – Balbuciou, pegando no cesto. Gesto que eu aproveitei para o surpreender com um beijo.

- Ah, eu sabia que tu caías! – Vangloriei-me por ter conseguido que o David destapasse a cara.

Mas ele nem respondeu. Deixou-me pousar o cesto do pão, levantou-se num ápice e agarrou-se a mim, fazendo-me cócegas. Eu tentava afastá-lo, por entre gritos e gargalhadas, contorcendo o corpo, mas a agilidade do David permitia-lhe sempre encontrar um espaço para colocar as suas mãos. Eu parei de oferecer resistência e deixei que aquele “ataque” me levasse ao riso descontrolado e ofegante.

Fomos interrompidos pelas pancadas na porta do quarto. Enquanto o David caminhava para abrir, eu tentava, sem sucesso, parar de rir. Ouvi a porta abrir e vi o Ruben e a Raquel invadirem o quarto boquiabertos.

- Mano, o que é que estavas a fazer à rapariga? – Questionou o Ruben, enchendo um copo com sumo. – Fogo! Ouvia-se os gritos lá fora. Tens de ser mais calminho, mano. – Afirmou com malícia.
- Deixa de ser parvo, Ruben. – Fitei-o, ainda a rir. – Ele estava a fazer-me cócegas, pá!
- Já lhe ouvi chamar muita coisa.
- Oh mor – A Raquel olhava para ele indignada.
- Deixa, Raquel – Intrometeu-se o David – ele se acha mesmo! Né Manz? – Dando-lhe uma pancada na cabeça. – E aí, vocês estão prontos?
- Nós estamos, vocês é que parece que não. Ainda demoram? Daqui a quinze minutos o Paulo está aí.
- Eu ‘tou pronto. – Respondeu-lhe o David.
- E eu só preciso de dois minutos – informei-a depois de beber um copo de leite de uma única golada – vou só ajeitar a mala. Saímos já com eles?
- Cinco minutos depois, é melhor. – Afirmava o Ruben, pegando no jornal, ainda aberto na página que continha a notícia sobre o jogo. – Alguém percebe o que diz o texto? – Questionou.
- Eu. – Gritei, a sorrir.
- Cê ‘tá mas é calada, lagartixa.

Eu e o David riamo-nos com satisfação perante o olhar perplexo do Ruben e da Raquel. Só o som do telemóvel do David impediu um pedido de explicações por parte dos nossos amigos.

- Ruben, o Paulo já está chegando. Temos de ir. – Ao mesmo tempo que falava para o amigo, o David olhava para mim. O Ruben levantou-se, deu-me dois beijos e caminhou para a porta, ladeado pela Raquel que também já se tinha despedido do David.

Estávamos de novo sozinhos, junto à janela do quarto. Sem proferir qualquer palavra, o David abraçou-me com força. Eu deixei-me envolver pelo seu corpo. E senti-me inexplicavelmente triste. Embora a razão me lembrasse que íamos estar separados apenas durante algumas horas, o meu coração lembrava-me do quão maravilhosa tinha sido aquela noite e da vontade que eu tinha de ficar ali para sempre, abraçada ao David e protegida, pelas paredes daquele quarto, de qualquer obstáculo que se colocasse naquele caminho que eu tinha escolhido percorrer até à felicidade. Mostrando que a cada dia me ia conhecendo um pouco melhor, o David descodificou o suspiro que eu acabava de soltar e sussurrou-me ao ouvido.

- Daqui a pouco já vamos estar juntos de novo!
- Eu sei! – Olhei-o profundamente e beijei-o.
- Adorei o seu gesto lá no aniversário da Raquel, a sua visita inesperada, essa noite maravilhosa que a gente teve, o seu acordar cheio de risada. Amei tudo isso!
- Eu tinha mesmo que o fazer. Já não dava para me enganar a mim própria, para não me permitir ser feliz. – Suspirei demoradamente. – E eu sou feliz quando estou contigo. Por isso eu vim. – Passei-lhe os dedos suavemente pelos lábios. – E mesmo que nunca mais pudesse estar contigo, faria tudo de novo… só para viver os momentos maravilhosos que vivemos aqui, nesta cidade encantadora. – Dei um beijo leve nos lábios do David, arredei as cortinas e vislumbrei o Rio Sena e a Torre Eiffel ao fundo. Fiquei prisioneira daquele magnífico retrato real durante alguns segundos. E só despertei quando senti os lábios do David perto do meu ouvido.

- Um dia a gente volta cá, para ser feliz de novo, nessa cidade do amor!

Com aquelas palavras a ecoarem-me no cérebro e a fazerem-me palpitar o coração, voltei-me para o David e beijei-o apaixonadamente. Prolongámos o beijo até ao limite… imposto pela voz do Ruben, que gritava da entrada do quarto.

- Mano, vamos embora pá! Se nos atrasamos o mister passa-se!
- Tou indo manz, relaxa. – O David segurava-me a cara com as duas mãos e olhava-me no fundo dos meus olhos – Tenho de ir meu anjo. Daqui a pouco a gente se encontra.
- Vai, não te atrases. Quando eu chegar a Lisboa, ligo-te. Boa viagem.
- Obrigado. Agora, deixa eu ir.

O David deu-me um beijo, pegou no pequeno saco e começou a caminhar em direcção à porta do quarto, onde o Ruben o esperava. Eu encostei-me à janela, voltando a contemplar Paris, aguardando que a Raquel voltasse para fazermos tempo até deixarmos o hotel. Olhava, encantada, os barcos a navegarem no rio, quando o David regressou atrás, numa corrida. Agarrou-me, inundou-me a boca de leves beijos repenicados, segurou suavemente no meu queixo e olhou-me profundamente.

- Je t’aime! – Afirmou, com convicção.
- Je t’aime aussi! – Respondi-lhe, segura.

Trocámos um beijo rápido e, da mesma forma que regressou, o David saiu a correr. Eu permaneci estática, no mesmo sítio onde ele me tinha deixado, ainda atordoada com a afirmação que tinha acabado de fazer. Apesar de tudo sorria, porque respirava felicidade.

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Poucos minutos depois de os rapazes terem deixado o quarto, eu e a Raquel fizemos o mesmo. Não sem antes tirarmos uma fotografia às portas dos quartos que guardavam o segredo daquela noite inesquecível.
Descemos pelo elevador, de sorriso rasgado, e dirigimo-nos à recepção para fazer o chek-out e pagar a conta. E descobrimos nesse momento que as surpresas parisienses ainda não tinham terminado. A funcionária simpática que nos atendeu explicou-nos, num inglês perfeito e ao mesmo tempo que nos entregava um cartão, que o senhor que tinha ido buscar os rapazes, tinha já feito o pagamento da nossa conta. Agradecemos a explicação e o atendimento, despedimo-nos e saímos. Já no exterior do hotel, abrimos o cartão que o Paulo nos tinha deixado e lemo-lo em conjunto.

“That´s what friends are for…
Espero que a noite tenha sido inesquecível!
Do sempre amigo,
Paulo Leitão!”

Caminhámos, sorridentes, até ao leito do Rio Sena, apanhámos um táxi em direcção ao aeroporto, onde aproveitámos para aconchegar o estômago antes da viagem de regresso a Lisboa.

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Aterrámos em Lisboa pouco passava das cinco da tarde. A característica agitação fazia-se sentir no aeroporto àquela hora. No exterior, o céu da capital começava a escurecer. Entrámos dentro do primeiro táxi disponível e pedimos ao condutor que nos levasse até à margem sul.
Pelo caminho, ligámos os telemóveis e verificámos as inúmeras chamadas e mensagens antes de ligarmos aos rapazes. Com o tempo que perdi a ligar o telemóvel da empresa, a Raquel antecipou-se na chamada para o Ruben. Após uma conversa de alguns minutos, ela desligou o aparelho.

- Não vale a pena ligares ao David. Eles estão juntos e já sabem que vamos a caminho.
- Ok, então vou só ligar à Sílvia para avisar que já estamos em Lisboa.
- Também não é preciso – disse-me a Raquel a sorrir – ela também já sabe. Eles estão todos em casa do David à nosso espera.
- Bem, que grande recepção.
- Sim. Finalmente vamos voltar a ter um jantar dos seis magníficos! Aliás, sete. Porque o Paulo também lá está.
- Posso confessar-te uma coisa? – Perguntei-lhe, enquanto me encostava ao vidro da porta.
- Claro.
- Já tinha saudades. – Sorri-lhe ternamente.
- Oh… também eu minha querida!

A Raquel deixou cair o seu corpo para cima do meu e deitou a cabeça no meu ombro.

- Kika?!
- Sim?
- Apesar de te conhecer há tão pouco tempo, gosto mesmo de ti, miúda!
- Eu também gosto muito de ti, babe! E é por isso que amanhã vou colocar uma foto tua no mural da minha sala.

A Raquel deu um pulo do banco e olhou para mim de sorriso rasgado.

- A sério? – Perguntava-me visivelmente emocionada.

Eu não lhe respondi. Limitei-me a acenar afirmativamente com a cabeça, enquanto lhe mostrava o meu sorriso mais sincero. Depois de um forte abraço, voltámos a aconchegar os nossos corpos nos bancos e permanecemos abraçadas durante aquela demorada viagem até casa do David.