sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Capítulo 31 - Amei tudo isso!

 
Acordei com um ligeiro arrepio de frio causado pela manhã gelada que se fazia sentir em Paris. Num movimento quase automático, puxei os cobertores até aos ombros e cheguei o meu corpo mais para o centro da cama, na esperança de encontrar o corpo quente do David. Rápido me apercebi de que estava sozinha. Abri os olhos lentamente, enquanto me espreguiçava daquela noite de sono tranquila. Percebi então que o David estava já a tomar banho. À medida que ia despertando, tornava-se mais nítido o som da água a cair do chuveiro. Levantei-me e, ainda a cambalear, percorri o caminho até à casa de banho. Abri suavemente a porta e, pé ante pé, cheguei até ao lavatório. Aproveitei as cantorias do David para lavar os dentes sem que ele notasse a minha presença. Sorri, antes de abrir as portadas do poliban e me juntar a ele num duche matinal. O David cantava, entusiasmado, uma música de um dos meus artistas brasileiros favoritos. Apesar da tremenda desafinação, era fácil de perceber que ele cantava com sentimento.

- “Hoje preciso de você, com qualquer humor, com qualquer sorriso, hoje só tua presença, vai me deixar feliz…”

Antes que ele chegasse à última frase do refrão, eu abri a portada e encostei-me de sorriso rasgado.

- “… Só hoje” – cantei, com a voz rouca de quem acaba de acordar – Bom dia, caracolinhos.
- Bom dia, lagartixa dorminhoca. – O David retribui-me o sorriso e de imediato estendeu-me a mão, convidando-me a partilhar o chuveiro com ele – Vem!

Eu não recusei aquele convite tentador. Despi-me num ápice e meti-me debaixo da água que fervia. O David envolveu-me num abraço e beijou-me.

- Que jeito mais gostoso de começar o dia – disse, passando as suas mãos na minha cara.
- Mesmo. – Segurei-lhe numa das mãos e beijei-a – Mas podias me ter acordado.
- Não tinha como. Você ‘tava tão linda dormindo. Tive até pena de acordar você!
- Oh… obrigada. Como eu gostava que o meu despertador pensasse assim… – Rimo-nos descontroladamente.
- Você é demais, sabia? Ainda agora acordou e já ‘tá falando bobagem!
- Eu sou mesmo boba, sabia? – Perguntei-lhe imitando o seu sotaque, depois de lhe beijar o peito. – Nem vi as horas. Já é tarde?
- Quando eu levantei eram nove e meia.
- Hum, isso significa que temos mais duas horas.
- É… dá para gente se arrumar e tomar o café da manhã com calma.
- E eu acordei cá com uma fome! Mas é melhor pedirmos e comermos aqui, não é? Deve estar muita gente lá em baixo.
- Não se preocupa não, eu já tratei de tudo.
- A sério? – Perguntei-lhe, surpreendida – És um cavalheiro, David! E é por isso que eu gosto tanto de ti – Sorri-lhe e beijei-o apaixonadamente.

Deixámo-nos ficar durante quase meia hora naquele banho a dois. E a culpa daquela demora era dos nossos corpos que teimavam em não se afastar, dos nossos lábios que insistiam em unir-se e das carícias não conseguíamos parar de trocar.

O David foi o primeiro a sair debaixo do chuveiro. Enquanto se enxugava, retomou as cantorias desafinadas e eu voltei a deliciar-me ao ouvi-lo, enquanto passava o cabelo por água uma última vez.

Envoltos nas macias toalhas brancas, regressámos para junto da cama onde nos vestimos. O David continuava a cantar e eu tinha-me juntado a ele. Individualmente as nossas vozes eram insuportáveis, mas em simultâneo a desafinação parecia desaparecer. Cantámos de novo a mesma música do banho.

- Você gosta de Jota Quest? – Perguntou-me o David enquanto apertava os atacadores das sapatilhas.
- Aprendi a gostar com a Andreia, uma amiga minha da faculdade. Ela adora as músicas deles.
- Cê sabe que eles vão dar um concerto lá em Lisboa daqui a duas semanas?
- Semana e meia. – Respondi-lhe num ar trocista, esfregando suavemente a toalha contra o cabelo para tirar o excesso de água – Sim, sei. Mas eu não vou.
- Ué, porquê? – O David estava em frente ao espelho do guarda-fatos a ajeitar a roupa
- Porque os bilhetes já estão esgotados. – Respondi-lhe com alguma tristeza na voz. – E tu vais?
- Não – afirmou com alguma rapidez – tenho jogo na Madeira nesse dia. E meus pais já vão estar em Lisboa por essa altura e meu pai não gosta muito não – o David continuava a falar sem tirar os olhos do espelho – então não é uma boa ideia.
- Pois. – Afastei-me da cama, tirei a toalha da cabeça e caminhei em direcção à casa de banho – Tenho esperança de que eles voltem! – Gritei já de secador na mão. – O David não me respondeu e eu liguei o aparelho.
Não me apercebi de quanto tempo tinha gasto a enxugar o cabelo, mas quando regressei ao quarto já a secretária estava transformada numa mesa de pequeno-almoço repleta de pão, queijo, bolo, sumo, leite, café e fruta. O David estava sentado com um jornal francês, aberto sobre as pernas, que ia folheando rapidamente, olhando apenas para as imagens. Assim que encontrou a secção de desporto, parou. Passou os olhos nas imagens e depois centrou toda a sua atenção no texto. Eu sentei-me ao seu lado e fiquei a olhar para ele, a sorrir. Ao fim de algum tempo, o David levantou a cabeça e fitou-me. Pela sua expressão facial percebi que não tinha entendido patavina do que tinha acabado de ler.

- Precisas de ajuda? – Perguntei-lhe com ar de gozo.
- Cê percebe esse negócio que ‘tá aí escrito? – Ripostou, passando-me o jornal para a mão. Eu fingi uma leitura atenta da reportagem sobre o jogo da noite anterior e alguns segundos depois respondi-lhe.
- Ora bem – coloquei um ar de quem estava preparada para uma longa explicação – o texto diz que – parei a tempo de evitar o riso – o Benfica foi muito superior ao PSG, que toda a equipa jogou muito bem mas que de facto o melhor em campo foi o central esquerdo…
- Eu? – O David olhava estupefacto para mim e eu quase perdia o controlo da situação – onde que cê leu isso?
- Aqui – disse-lhe, apontado com o dedo, aleatoriamente, para uma das frases do texto – mas deixa-me continuar. Portanto, diz que o melhor em campo foi o central esquerdo que, como recompensa, teve direito a uma noite de sonho. – Acabei de falar e continuei a olhar, séria, para o David, que continuava atónito.
- Ah… cê tá zoando da minha cara! – Resmungou o David ao fim de alguns segundos, tirando-me de imediato o jornal das mãos, enquanto eu me ria às gargalhadas. – Que maldade, isso não se faz garota.

Enquanto o David combatia a sua indignação com uma chávena de café com leite, eu continuava agarrada à barriga, sem conseguir controlar o riso e algumas lágrimas que já me corriam pela face.

- Vai gozando, vai Kika. Cê não espera pela demora, não! – Dizia-me o David por entre uma golada e um sorriso.
- Desculpa, David, mas foi mais forte que eu. Desculpa, sim? – Perguntava-lhe, enquanto lhe tentava dar um beijo, que ele evitava a todo o custo, colocando os braços á frente da cara. – Oh caracolinhos desculpa. Sim?
- Eu vou pensar no seu assunto mais tarde.
- Hum… está bem. Mas agora podes passar-me o pão, por favor?
- Posso. – Balbuciou, pegando no cesto. Gesto que eu aproveitei para o surpreender com um beijo.

- Ah, eu sabia que tu caías! – Vangloriei-me por ter conseguido que o David destapasse a cara.

Mas ele nem respondeu. Deixou-me pousar o cesto do pão, levantou-se num ápice e agarrou-se a mim, fazendo-me cócegas. Eu tentava afastá-lo, por entre gritos e gargalhadas, contorcendo o corpo, mas a agilidade do David permitia-lhe sempre encontrar um espaço para colocar as suas mãos. Eu parei de oferecer resistência e deixei que aquele “ataque” me levasse ao riso descontrolado e ofegante.

Fomos interrompidos pelas pancadas na porta do quarto. Enquanto o David caminhava para abrir, eu tentava, sem sucesso, parar de rir. Ouvi a porta abrir e vi o Ruben e a Raquel invadirem o quarto boquiabertos.

- Mano, o que é que estavas a fazer à rapariga? – Questionou o Ruben, enchendo um copo com sumo. – Fogo! Ouvia-se os gritos lá fora. Tens de ser mais calminho, mano. – Afirmou com malícia.
- Deixa de ser parvo, Ruben. – Fitei-o, ainda a rir. – Ele estava a fazer-me cócegas, pá!
- Já lhe ouvi chamar muita coisa.
- Oh mor – A Raquel olhava para ele indignada.
- Deixa, Raquel – Intrometeu-se o David – ele se acha mesmo! Né Manz? – Dando-lhe uma pancada na cabeça. – E aí, vocês estão prontos?
- Nós estamos, vocês é que parece que não. Ainda demoram? Daqui a quinze minutos o Paulo está aí.
- Eu ‘tou pronto. – Respondeu-lhe o David.
- E eu só preciso de dois minutos – informei-a depois de beber um copo de leite de uma única golada – vou só ajeitar a mala. Saímos já com eles?
- Cinco minutos depois, é melhor. – Afirmava o Ruben, pegando no jornal, ainda aberto na página que continha a notícia sobre o jogo. – Alguém percebe o que diz o texto? – Questionou.
- Eu. – Gritei, a sorrir.
- Cê ‘tá mas é calada, lagartixa.

Eu e o David riamo-nos com satisfação perante o olhar perplexo do Ruben e da Raquel. Só o som do telemóvel do David impediu um pedido de explicações por parte dos nossos amigos.

- Ruben, o Paulo já está chegando. Temos de ir. – Ao mesmo tempo que falava para o amigo, o David olhava para mim. O Ruben levantou-se, deu-me dois beijos e caminhou para a porta, ladeado pela Raquel que também já se tinha despedido do David.

Estávamos de novo sozinhos, junto à janela do quarto. Sem proferir qualquer palavra, o David abraçou-me com força. Eu deixei-me envolver pelo seu corpo. E senti-me inexplicavelmente triste. Embora a razão me lembrasse que íamos estar separados apenas durante algumas horas, o meu coração lembrava-me do quão maravilhosa tinha sido aquela noite e da vontade que eu tinha de ficar ali para sempre, abraçada ao David e protegida, pelas paredes daquele quarto, de qualquer obstáculo que se colocasse naquele caminho que eu tinha escolhido percorrer até à felicidade. Mostrando que a cada dia me ia conhecendo um pouco melhor, o David descodificou o suspiro que eu acabava de soltar e sussurrou-me ao ouvido.

- Daqui a pouco já vamos estar juntos de novo!
- Eu sei! – Olhei-o profundamente e beijei-o.
- Adorei o seu gesto lá no aniversário da Raquel, a sua visita inesperada, essa noite maravilhosa que a gente teve, o seu acordar cheio de risada. Amei tudo isso!
- Eu tinha mesmo que o fazer. Já não dava para me enganar a mim própria, para não me permitir ser feliz. – Suspirei demoradamente. – E eu sou feliz quando estou contigo. Por isso eu vim. – Passei-lhe os dedos suavemente pelos lábios. – E mesmo que nunca mais pudesse estar contigo, faria tudo de novo… só para viver os momentos maravilhosos que vivemos aqui, nesta cidade encantadora. – Dei um beijo leve nos lábios do David, arredei as cortinas e vislumbrei o Rio Sena e a Torre Eiffel ao fundo. Fiquei prisioneira daquele magnífico retrato real durante alguns segundos. E só despertei quando senti os lábios do David perto do meu ouvido.

- Um dia a gente volta cá, para ser feliz de novo, nessa cidade do amor!

Com aquelas palavras a ecoarem-me no cérebro e a fazerem-me palpitar o coração, voltei-me para o David e beijei-o apaixonadamente. Prolongámos o beijo até ao limite… imposto pela voz do Ruben, que gritava da entrada do quarto.

- Mano, vamos embora pá! Se nos atrasamos o mister passa-se!
- Tou indo manz, relaxa. – O David segurava-me a cara com as duas mãos e olhava-me no fundo dos meus olhos – Tenho de ir meu anjo. Daqui a pouco a gente se encontra.
- Vai, não te atrases. Quando eu chegar a Lisboa, ligo-te. Boa viagem.
- Obrigado. Agora, deixa eu ir.

O David deu-me um beijo, pegou no pequeno saco e começou a caminhar em direcção à porta do quarto, onde o Ruben o esperava. Eu encostei-me à janela, voltando a contemplar Paris, aguardando que a Raquel voltasse para fazermos tempo até deixarmos o hotel. Olhava, encantada, os barcos a navegarem no rio, quando o David regressou atrás, numa corrida. Agarrou-me, inundou-me a boca de leves beijos repenicados, segurou suavemente no meu queixo e olhou-me profundamente.

- Je t’aime! – Afirmou, com convicção.
- Je t’aime aussi! – Respondi-lhe, segura.

Trocámos um beijo rápido e, da mesma forma que regressou, o David saiu a correr. Eu permaneci estática, no mesmo sítio onde ele me tinha deixado, ainda atordoada com a afirmação que tinha acabado de fazer. Apesar de tudo sorria, porque respirava felicidade.

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Poucos minutos depois de os rapazes terem deixado o quarto, eu e a Raquel fizemos o mesmo. Não sem antes tirarmos uma fotografia às portas dos quartos que guardavam o segredo daquela noite inesquecível.
Descemos pelo elevador, de sorriso rasgado, e dirigimo-nos à recepção para fazer o chek-out e pagar a conta. E descobrimos nesse momento que as surpresas parisienses ainda não tinham terminado. A funcionária simpática que nos atendeu explicou-nos, num inglês perfeito e ao mesmo tempo que nos entregava um cartão, que o senhor que tinha ido buscar os rapazes, tinha já feito o pagamento da nossa conta. Agradecemos a explicação e o atendimento, despedimo-nos e saímos. Já no exterior do hotel, abrimos o cartão que o Paulo nos tinha deixado e lemo-lo em conjunto.

“That´s what friends are for…
Espero que a noite tenha sido inesquecível!
Do sempre amigo,
Paulo Leitão!”

Caminhámos, sorridentes, até ao leito do Rio Sena, apanhámos um táxi em direcção ao aeroporto, onde aproveitámos para aconchegar o estômago antes da viagem de regresso a Lisboa.

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Aterrámos em Lisboa pouco passava das cinco da tarde. A característica agitação fazia-se sentir no aeroporto àquela hora. No exterior, o céu da capital começava a escurecer. Entrámos dentro do primeiro táxi disponível e pedimos ao condutor que nos levasse até à margem sul.
Pelo caminho, ligámos os telemóveis e verificámos as inúmeras chamadas e mensagens antes de ligarmos aos rapazes. Com o tempo que perdi a ligar o telemóvel da empresa, a Raquel antecipou-se na chamada para o Ruben. Após uma conversa de alguns minutos, ela desligou o aparelho.

- Não vale a pena ligares ao David. Eles estão juntos e já sabem que vamos a caminho.
- Ok, então vou só ligar à Sílvia para avisar que já estamos em Lisboa.
- Também não é preciso – disse-me a Raquel a sorrir – ela também já sabe. Eles estão todos em casa do David à nosso espera.
- Bem, que grande recepção.
- Sim. Finalmente vamos voltar a ter um jantar dos seis magníficos! Aliás, sete. Porque o Paulo também lá está.
- Posso confessar-te uma coisa? – Perguntei-lhe, enquanto me encostava ao vidro da porta.
- Claro.
- Já tinha saudades. – Sorri-lhe ternamente.
- Oh… também eu minha querida!

A Raquel deixou cair o seu corpo para cima do meu e deitou a cabeça no meu ombro.

- Kika?!
- Sim?
- Apesar de te conhecer há tão pouco tempo, gosto mesmo de ti, miúda!
- Eu também gosto muito de ti, babe! E é por isso que amanhã vou colocar uma foto tua no mural da minha sala.

A Raquel deu um pulo do banco e olhou para mim de sorriso rasgado.

- A sério? – Perguntava-me visivelmente emocionada.

Eu não lhe respondi. Limitei-me a acenar afirmativamente com a cabeça, enquanto lhe mostrava o meu sorriso mais sincero. Depois de um forte abraço, voltámos a aconchegar os nossos corpos nos bancos e permanecemos abraçadas durante aquela demorada viagem até casa do David.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Capítulo 30 - Até às estrelas!


 

As mãos trémulas e humedecidas eram o sinal mais evidente do nervoso miudinho que eu sentia. A mesma imagem que me prendia o olhar paralisava-me também os movimentos. Tinha acabado de abrir a porta e por momentos pensei ter-me enganado no quarto de hotel. Ainda com a minha mão direita pousada sobre a maçaneta, fiquei petrificada perante o que vislumbrava. O David, logo atrás de mim, tinha o seu corpo colado ao meu. Apesar de eu estar de costas, podia adivinhar-lhe no rosto o mesmo sorriso que me rasgava os lábios. O meu coração, que já batia acelerado, disparou velozmente quando o David encostou os seus lábios ao meu ouvido, para me perguntar num sussurro.

- Você preparou tudo isso para a gente?

Senti naquele momento dois corações a palpitarem fortemente numa sintonia tão perfeita que pareciam um só.

- Não fui eu… – Respondi-lhe em surdina.
- Ué, então quem fez isso?

Voltei-me de frente para o David e nem precisei de lhe responder, porque ele fê-lo por mim.

- Esse Paulão me surpreende a cada dia que passa! – Sorriu – Vamo entrar?

Enquanto o David fechava a porta, eu caminhava lentamente pelo corredor em direcção à secretária que tinha uma decoração diferente daquela que eu havia encontrado à tarde. Na jarra de vidro, as rosas brancas tinhas sido substituídas por rosas vermelhas e a madeira clara estava, então, coberta de pétalas da mesma cor. Ao lado do candeeiro, uma garrafa de espumante estava embutida num frapê metalizado, junto ao qual estavam pousados dois copos altos. Ao centro, uma taça de vidro avermelhada continha uma dúzia de bombons. Quer na secretária quer em cima das mesinhas de cabeceira estavam espalhadas algumas velas, ainda intactas. Sorri levemente e agradeci ao Paulo, em pensamentos, pelas várias manifestações de amizade com que me tinha brindado desde que ao início daquela tarde o tinha avisado que estava a caminho de Paris.

Quase em surdina, o David aproximou-se de mim, e afastou algumas madeixas do meu cabelo, deixando o meu pescoço à mercê dos seus leves beijos. O meu sorriso expandiu-se e um suspiro profundo acompanhou um só arrepio que me percorreu o corpo velozmente. Senti-me a flutuar. O David envolveu o meu corpo num abraço forte durante segundos, para me largar logo de seguida. Aproximou-se da secretária e retirou uma das rosas da jarra. Levou-a ao seu nariz e inspirou aquele aroma. Deu-ma também a mim a cheirar.

- Sabe o que essa rosa me faz lembrar? – Perguntou-me com um sorriso rasgado.
- Nova Iorque? – Ripostei, também com um sorriso. Sabia que ele se estava a referir ao nosso primeiro jantar.
- Cara, eu acho que fiquei apaixonado por você nesse momento!
- A sério? E eu a pensar que tinha sido no dia em que quase me mataste. – Soltei uma gargalhada sonora.
- Engraçadinha… – O David colocou de novo a rosa na jarra e puxou-me contra o seu corpo – Esse foi o dia em que eu te achei maior gata – Disse, beijando-me.
- Sim? – Perguntei-lhe interrompendo o beijo – pensei que isso tinha acontecido só naquela noite em que me apanhaste de rabo à mostra – Para evitar a resposta, beijei-o de novo, mas com alguma dificuldade. Manter os nossos lábios unidos era difícil devido aos risos que íamos soltando.
- Boba – Balbuciou o David por entre beijos e sorrisos.

Apesar de nos conhecermos há relativamente pouco tempo, eu e o David tínhamos já algumas histórias para recordar. E isso tornava aquela noite ainda mais especial, porque a dotava de conteúdo. E apesar dos receios, que nem o ambiente romântico conseguia eliminar, eu sentia-me preparada para consumar aquela paixão. Afastei-me ligeiramente do David, despi o casaco, que atirei para cima da mala, e com o isqueiro, que retirei da carteira, acendi as velas pousadas sobre a secretária. Peguei depois num bombom, trinquei suavemente uma metade e levei a outra à sua boca. O David pegou então na garrafa de champanhe, que já estava aberta, e encheu os copos. Por entre uma profunda troca de olhares, brindámos! E o tilintar dos copos a bater marcou o início de uma entrega mágica, que nem as fugazes recordações trazidas pelo travo agressivo das gotas de champanhe com que apenas humedeci os lábios poderiam impedir. Pousámos os copos e beijámo-nos apaixonadamente. Os nossos corações voltavam a bater num compasso sintonizado e os nossos corpos ganhavam vontade própria. Era como se se conhecessem desde sempre. Deixei que as minhas mãos se perdessem pelos rebeldes caracóis do David enquanto ele, delicadamente, me ia retirando cada peça de roupa. E a cada milímetro do meu corpo que ficava a nu, o meu sangue fervilhava de desejo. O David beijou-me o pescoço, depois os ombros e desceu até ao peito, tornando a nossa respiração ofegante. Estávamos já a meio de uma “viagem” que nenhum dos dois queria interromper, mas ainda assim o David não hesitou em questionar o meu grau de certeza. O que me pareceu justificável, perante as constantes dúvidas e hesitações que foram marcando a nossa história até àquela noite em Paris.

- Eu sei que pode parecer estranho eu perguntar, mas eu preciso saber. Até onde você quer ir?

Sem desviar o meu olhar do dele, percorri, com leves beijos, um lento caminho desde a sua boca até ao seu ouvido.

- Até às estrelas! – Disse-lhe com firmeza na voz.

Apertei-o com todas as minhas forças, beijei-o avidamente e sem resistir aos instintos, fui despindo o David, que num gesto delicado me agarrou ao colo e me deitou lentamente na enorme cama. Estávamos apenas em roupa interior e eu senti o olhar do David percorrer-me o corpo. Deixei-me apoderar pela timidez. Ter partilhado durante tantos anos a minha intimidade com apenas um homem e não ter voltado a fazê-lo desde que esse homem deixou de fazer parte da minha vida, intimidava-me e de alguma forma fazia despontar as minhas inseguranças. O David foi buscar o isqueiro e acendeu cada uma das restantes velas espalhadas pelo quarto, apagando as luzes. Numa atitude provocadora, voltou a percorrer a minha silhueta com o olhar. Eu sorri-lhe, tranquilamente, e retribui o gesto. Apreciei o seu corpo delineado com a mesma precisão e deslumbramento de quem aprecia uma obra de arte. Foi então que o David voltou a retirar uma das rosas da jarra e se sentou junto a mim. Depois de um beijo demorado, voltou a levar-me a flor ao nariz para que eu lhe sentisse o aroma.

- Agora… fecha os olhos! – Ordenou-me com uma voz doce.

Eu fechei os meus olhos lentamente e inspirei suavemente. E foi então que senti o toque macio da rosa. Primeiro no rosto, o que provocou em mim um efeito relaxante. Depois no pescoço, descendo lentamente até ao peito, transformando o relaxante em prazeroso, e depois na barriga, percorrendo uma linha até ao umbigo, fazendo acelerar o bater do meu coração. Os movimentos do David eram demorados, delicados, por vezes trémulos. O nervosismo que eu sentia começou a dissolver-se à medida que a minha excitação aumentava. E no momento em que senti aquele toque aveludado das pétalas a contornarem-me as virilhas em direcção ao interior das coxas, gemi baixinho. Voltei a abrir os olhos e encontrei no rosto do David a mesma ânsia de se entregar ao prazer. Em silêncio e por entre beijos ardentes, entrelaçámos os nossos corpos, deixando-os entregues à paixão. E num instante, eles se uniram num só. Um encaixe perfeito que parecia acontecer desde sempre. Ofegantes e suados, eles moviam-se incessantemente ao ritmo daquele desejo que parecia insaciável. E mesmo que no limite das forças, eles pediam sempre mais… e o mais parecia sempre tão pouco.
Pressentindo que o final daquela “viagem” estava próximo, olhámo-nos uma última vez. E, numa sintonia perfeita, atingimos o limite máximo do prazer.

Ficámos largos segundos abraçados, com os corpos ainda entrelaçados, olhando-nos mutua e enternecidamente. Eu sentia o meu corpo ainda dormente, mas o toque da pele macia do David ia acalmando o bater do meu coração. A pouco e pouco, a respiração voltou ao seu ritmo normal. O David dava-me pequenos beijos na testa.

- Obrigado! – Murmurou-me, com um sorriso terno.
- Pelo quê? – Perguntei-lhe no mesmo tom.
- Por essa noite fantástica, pelo seu carinho, pela sua entrega…
- … Shiu – interrompi-o, levando o dedo indicador à boca – não me agradeças por me sentir feliz ao fazer-te feliz!
- Te adoro, lagartixa!
- Eu também te adoro caracolinhos.


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O banho quente que partilhei com o David tinha relaxado de tal forma o meu corpo que sentia o cansaço apoderar-se de mim. O David tinha apagado as velas, deixando apenas a luz do pequeno candeeiro acesa. Aninhei o meu corpo junto ao dele, na cama, e deitei a minha cabeça sobre o seu peito destapado. Coloquei as minhas pernas sobre as dele e abracei-o com força. Ele beijou-me suavemente e envolveu-me com o seu braço musculado. Eu senti-me segura, como já não acontecia há muito tempo. Fechei os olhos e tentei adormecer, embalada pelo cafuné que o David me fazia. Mas quase instantaneamente, uma lágrima soltou-se do canto do meu olho e rolou pela minha face até chegar à pele delicada do David que, num impulso, levou a sua mão livre ao meu queixo, puxando a minha cara de forma a que os nossos olhares se cruzassem.

- Ei, tá chorando porquê meu anjo? – Perguntou-me com um sorriso encantador.
- Desculpa, foi só uma lagrimita teimosa que me escapou.
- Porquê?
- Sabes David – suspirei profundamente – já não estava habituada a sentir-me assim.
- Assim como? Cê está triste, se arrependeu?
- Não, claro que não – retorqui com convicção, enquanto me levantava, ficando sentada ao lado do David – Estou feliz, muito feliz! E há muito que eu não sabia o que isso era. Estar feliz, sentir-me bem, sentir-me acarinhada, sentir-me desejada, sentir-me… – fiz uma breve pausa – … sentir-me mulher!
- Como não? Você é uma mulher linda e atraente, Kika!
- Também já não estava habituada a tantos elogios – as minhas maçãs do rosto estavam rosadas.
- Então vai-se habituando, viu… porque eu vou-te elogiar toda a vez que estivermos juntos! – O David sorria para mim.
- Tu és incrível, sabias?
- Que nada, você é que é fantástica. – O David fez-me uma festinha na cara e beijou-me a ponta do nariz – E eu já entendi que há muita coisa no seu passado que atormenta esse coraçãozinho e eu até posso imaginar o quê…
- Não, não podes… – Interrompi-o de imediato – mas eu também não quero falar sobre isso. É verdade que há muito para ser dito, mas não agora, não depois deste dia incrível e desta noite maravilhosa. Temos tempo, certo? – Perguntei-lhe, procurando ao mesmo tempo uma resposta no seu olhar.
- Claro, todo o tempo do mundo. Vem cá, vem. Deixa eu te abraçar.

Deixei cair o meu corpo para junto do David e beijei-o delicadamente. Tudo o que vinha a acontecer na minha vida desde que o tinha conhecido me parecia demasiadamente irreal, mas não o suficiente fabuloso para apagar a dura realidade que tinha vivido no passado e o medo terrível que tinha do futuro. Como se me adivinhasse os pensamentos, o David intensificou aquele beijo e aquele abraço. E foi nesse preciso momento que eu percebi que, só fechando definitivamente aquele capítulo negro da minha vida, seria capaz de virar a página e começar um novo… muito mais feliz!

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Capítulo 29 - Beijos ao luar

 

Encostada ao parapeito da janela, contemplava Paris. Apesar da noite escura, um sem fim de luzes pintavam a cidade de tons amarelados e tornavam-na ainda mais esplêndida. Mas o brilho daquele clarão não conseguia amenizar o sufoco que eu sentia, enquanto esperava pelo David. Estava numa pequena sala que o Paulo tinha providenciado para que o nosso encontro fosse o mais discreto possível. Sentados no sofá, a Raquel e o Ruben, matavam as saudades com beijos e palavras de amor. Indiferente à presença do casal, eu continuava de olhos postos no horizonte, profundamente compenetrada naquele cenário. De tal forma que não ouvi o barulho da porta a abrir quando o David entrou na sala. Apercebi-me da sua presença apenas pelo reflexo da sua imagem no vidro da janela. Deixei-me estar encostada por mais alguns segundos só pelo prazer de o poder admirar. Mas quando o meu olhar se fixou na sua boca, perfeitamente delineada por um sorriso, um impulso tomou conta de mim e eu não ofereci qualquer resistência. Virei-me de frente para o David e num gesto decidido e silencioso os nossos corpos colaram-se e os nossos lábios uniram-se lentamente. O David segurava a minha cara com as duas mãos e eu envolvia os meus braços à volta do seu tronco. Apertei-o contra mim e fechei os olhos. Aquele primeiro beijo suave foi-se intensificando até se transformar numa explosão de sensações. Quanto mais as nossas línguas brincavam, mais os nossos corpos se comprimiam. Beijávamo-nos com paixão e eu tinha a certeza de que queria prolongar aquele beijo até à eternidade. Selámos o momento com pequenos beijos doces e permanecemos em silêncio, simplesmente a olharmo-nos. O brilho dos olhos do David iluminava o meu sorriso. Ele beijou-me a testa levemente, entrelaçou os seus dedos nos meus cabelos e puxou-me a cabeça suavemente.

- Te adoro – Disse-me, num sussurro. A sua voz meiga e a sua respiração fizeram-me estremecer.
- Beija-me – Pedi-lhe, sem conseguir responder-lhe com as mesmas palavras.

O David beijou-me de forma carinhosa. Um beijo apenas interrompido pelo Ruben, que tossia de forma artificial. Eu e o David soltámos uma gargalhada. Estávamos tão focados um no outro que nos tínhamos esquecido dos nossos amigos.

- Já acabaram, pombinhos? – Perguntava o Ruben com ar de gozo.
- Não… mas você não deixa a gente continuar, fazer o quê?
- Manz, continuam com as lamechices ao jantar, pode ser? É que eu estou a morrer de fome.
- Ué, e elas podem vir jantar connosco? – Perguntava o David, admirado.
- Não, mano, nós é que vamos jantar com elas.
- Sério? – A admiração do David aumentava.
- Sim, caracolinhos – Olhei-o e contei-lhe as novidades que o Paulo nos tinha deixado antes de ele chegar – O Paulo já falou com o treinador e vocês estão dispensados de jantar com a equipa. Vamos jantar ao hotel onde eu e a Raquel estamos instaladas.
- Que legal. – O David sorria como uma criança que acaba de receber um presente.
- Mas há mais mano – interrompeu o Ruben, levantando-se do sofá, e caminhando para a porta com a Raquel – A dispensa prolonga-se até às onze e meia da manhã de amanhã. – O Ruben piscou-lhe o olho e saiu.
- Ele ‘tá falando sério? – O David olhava para mim à espera de uma confirmação.

Acenei-lhe com a cabeça, toquei com os meus lábios suavemente nos dele e saí. Ele seguiu-me. Percebendo o meu embaraço perante alguns olhares mais curiosos com os quais nos cruzávamos nos corredores até à garagem do estádio, a Raquel largou a mão ao Ruben e veio colocar-se ao meu lado. O Ruben sorriu e esperou pelo David para lhe fazer companhia. Depressa chegámos ao carro, emprestado pelo Paulo, e seguimos viagem até ao hotel.

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O recepcionista do hotel era o mesmo da tarde e já estava à nossa espera. Encaminhou-nos até ao restaurante que tinha, àquela hora, fraco movimento. Apontou para a mesa do canto e sorriu.

Já acomodados na mesa reservada pelo Paulo, fomos atendidos por um empregado que falava connosco em inglês. Fizemos o pedido e ele retirou-se, de forma elegante.

- Ainda bem o Paulo pensou em tudo. – Dizia a Raquel enquanto arredava a cortina e espreitava para a rua – Se o empregado só falasse francês, estávamos tramados.

Todos sorrimos. O jantar decorreu sempre num tom animado. Enquanto eu contava ao David tudo o que tinha acontecido naquele dia, ela ia acusando o Ruben, na brincadeira, de ser mau amigo por não o ter avisado da nossa presença em Paris. Por entre piadas e gargalhadas sonoras, o tempo passou a voar. Estávamos sozinhos no restaurante, a música ambiente tinha sido desligada e o empregado olhava para nós, entediado.

- Se calhar é melhor irmos andando. O homem precisa de descansar. – O Ruben levantou a mão e chamou o empregado – E nós também.

O funcionário veio até à mesa e informou-nos de que o jantar estava incluído na conta do hotel que, como era normal, só pagaríamos quando fizéssemos o check-out. Agradecemos-lhe, os rapazes deixaram-lhe uma gorjeta e saímos para o hall de entrada, onde estava já um recepcionista diferente. O Ruben colocou os braços por cima dos ombros da Raquel e beijou-lhe a nuca.

- Vamos subir, amor? – Perguntou-lhe carinhosamente.
- Sim, vamos. – Ela olhava então para nós – Boa noite meus queridos, até amanhã.

Ainda não tínhamos acabado de responder e já eles estavam de costas, caminhando em direcção às escadas. Eu e o David tínhamos ficado sozinhos, sob o olhar discreto do empregado do hotel. Apesar de cansada, eu não tinha ainda vontade de ir para o quarto. Sabia que estava uma noite fria em Paris, mas apetecia-me desfrutar da beleza nocturna da cidade e, sobretudo, fazê-lo na companhia do David. Ele leu-me os pensamentos.

- Vamo? – Questionou-me, esticando-me a mão.

Saímos do hotel de mãos dadas e caminhámos sob o olhar atento da lua e das estrelas. Dávamos passadas lentas. Sem precisar de o dizermos um ao outro, sabíamos que queríamos saborear aquele momento. Era como se os nossos movimentos vagarosos fizessem o tempo passar mais lentamente.

Alguns minutos depois estávamos junto ao Sena. Aproximamo-nos do muro de pedra e apreciámos o incrível reflexo dos austeros edifícios nas águas tranquilas do rio. O David debruçou-se ligeiramente, rodou a cabeça e o seu olhar acompanhou o curso das águas. Eu deliciei-me com a sua beleza. Tinha a certeza de que guardaria aquela imagem para sempre na minha memória, mas ainda assim senti necessidade de registar o momento. Tirei a máquina fotográfica da carteira sem ele perceber e disparei. O flash fê-lo voltar-se para mim.

- Não sei se esse é o meu melhor lado – Gracejou.
- Tu não tens um lado melhor. – Respondi-lhe enquanto revia a foto.
- Não? – Perguntou-me cabisbaixo.
- Não… – Fiz uma pausa, preparando a máquina para disparar – Todos os teus lados são perfeitos.

O David sorriu de forma encantador e eu voltei a disparar. Voltámos a unir as nossas mãos e seguimos pela margem do Rio Sena. Atravessámos uma ponte e parámos num parque. Escolhemos um local bastante iluminado, por precaução, e sentámo-nos no banco mais recatado com vista para o Grande Palácio. Apesar do avançar da hora e das baixas temperaturas, ainda havia meia dúzia de pessoas que, ligeiramente afastadas, passeavam e conversavam naquele jardim. O David sentou-se primeiro numa ponta do banco, colocando uma perna para cada lado.

- Senta aqui. – Ordenou-me carinhosamente, apontando para o meio das suas pernas abertas.

Eu sentei-me de costas para ele e deixei descair o corpo, descontraído, encostando a minha cabeça no seu ombro. Com os braços à volta da minha cintura, o David apertou-me suavemente e beijou-me delicadamente a bochecha. Mantivemo-nos assim, abraçados e em silêncio, durante um bom tempo. O abraço do David transmitia-me segurança e conforto. Sentia-me intocável. Naquele momento nada no mundo me faria sofrer, ou chorar… não enquanto permanecesse assim, com os braços do David à minha volta.

Com a máquina fotográfica ainda na mão, fui registando cada carícia, cada beijo, cada sorriso e algumas caretas que o David fazia.

Lá do alto, a lua sorria-nos e iluminava-nos os corpos e os corações. Nós contemplávamo-la e, em silêncio, agradecíamos-lhe a generosidade. Inundados pela beleza do luar, beijávamo-nos com carinho e ternura.

- Posso te confessar uma coisa? – Perguntava-me ele ao ouvido, enquanto revíamos as fotografias já tiradas.
- Podes.
- Nesse momento sou o homem mais sortudo do planeta. E o mais feliz também.

Eu sorri baixinho. Afastei o meu corpo do dele e num movimento quase acrobático, virei-me de frente. Afastei as pernas e, aos poucos, fui-me aproximando um pouco mais. Coloquei as minhas pernas por cima das do David que, percebendo a minha intenção, me agarrou pela cintura e me apertou contra ele. Com os corpos bem juntinhos, entrelacei-lhe as mãos nos seus caracóis e beijei-o apaixonadamente.

- És também o homem mais bonito do planeta… o que faz de mim uma mulher com sorte. – Sorri e roubei-lhe um doce beijo. Ele corou e fez-me uma festinha na cara. - David… (pausa) … que momento solitário foi aquele no final do jogo?

Ele desviou o olhar e fixou-o no céu, sorrindo.

- Foi ali que tudo começou. O sonho, a luta, o sacrifício, as vitórias…
- … Ah, o primeiro jogo com a camisola do Benfica. – Não o deixei terminar a frase. – O início de uma brilhante carreira…
- … E Ele – o David apontava para o céu – esteve comigo naquela noite, e voltou a estar essa noite…
- … e vai continuar a estar todos os dias, tenho a certeza. Estejas tu onde estiveres, faças o que fizeres.

Ele sorriu para mim e beijou-me suavemente.

- Pensei que você não acreditava em Deus?
- David… alguém deve ter mexido os cordelinhos para que os nossos caminhos se cruzassem. E esse alguém só pode ter sido Ele! – Agora era eu quem olhava e apontava para o céu. O David seguia o meu dedo com o olhar.
- Kika – chamava-me com entusiasmo – pede um desejo!

Uma estrela cadente passava naquele momentos. Ficámos os dois calados por instantes, de olhos fechados.

- Já pedi. E tu?
- Também.

A nossa cumplicidade deixava transparecer que tínhamos desejos semelhantes.

- Sabe que eu adoro você? – Perguntava-me por entre um beijo.
- Sei – Respondi-lhe por entre um arrepio – Vamos andando?

Ele não me respondeu. Simplesmente acenou com a cabeça. Levantámo-nos e iniciamos, de mãos dadas, o trajecto de regresso. Estávamos na margem do rio, a uns metros do início da ponte e, num ímpeto, o David parou.

- Que foi? – Questionei-o, tentando perceber o significado daquela paragem.
- Posso te perguntar uma coisa?
- Claro.
- Porquê você tá sempre evitando falar o que sente? – Ele olhava-me fixamente
- Não estou nada – Eu desviada o olhar numa tentativa de desviar também a conversa.
- ‘Tá sim. Eu te digo que te adoro, que ‘tou apaixonado, que ‘tou feliz e você nem responde.
- David…
- … Você não tem certeza do que tá sentindo, é isso? – Ele interrompeu-me, com uma voz entristecida.
- Se eu não tivesse certezas não estava aqui – Disse-lhe convicta.
- Então porquê você nunca fala? ‘Tá com medo do quê?
- De nada. – Respondi-lhe bruscamente – Outra vez essa conversa do medo?
- Desculpa, mas é que eu não consigo entender.
- Então eu explico-te – o meu desconforto com aquela conversa fazia elevar o meu tom de voz – Eu não tenho que te dizer seja o que for só porque tu também dizes. E eu não preciso de dizer o que sinto. Basta senti-lo. E eu sei perfeitamente o que sinto.
- Mas eu não. – O David começava também a elevar a voz.
- Não? – Perguntei-lhe irritada.
- Não. – Respondeu-me de forma agressiva.
- Não? – Voltei a perguntar ainda mais irritada.
- Já disse que não.
- Ok.

Larguei-lhe a mão abruptamente e comecei a andar em direcção à ponte. A intensidade dos meus passos aumentava à medida que me afastava.

- Onde você vai Kika? – Perguntava-me o David sem sair do sítio. – Volta para cá. Vamo esquecer essa conversa.

Eu continuava determinada, sem lhe responder ou sequer olhar para trás. Ele começou a seguir-me, sem no entanto chegar ao início da ponte.

- Kika. Kika, espera por mim.

Quanto mais eu me afastava, mais alto o David gritava. Eu estava já a meio da ponte, quando parei. Dei meia volta e encarei-o. Ele parou ainda na margem do rio e fixou os olhos em mim. Eu desviei o olhar e avancei em direcção às grades da ponte. Coloquei um pé de cada vez no terceiro ferro horizontal a contar do chão e segurei-me na barra superior.

- KIKA – Gritou-me o David, desesperado.

Eu podia ver o pânico na sua cara. Larguei as mãos lentamente e tentei e, com o olhar fixo no David, encontrar um ponto de equilíbrio. Apesar de estar a tremer de medo, afastei os braços num movimento lento e inspirei profundamente.

- ADORO-TE – Gritei com toda a força que tinha – ADORO-TE, OUVISTE?
- Desce daí sua maluca. – Apesar de furioso, ele não conseguia evitar o sorriso. Começou a caminhar na minha direcção.
- PARIS… EU ESTOU APAIXONADA PELO DAVID LUIZ MOREIRA MARINHO. – Num acto tresloucado eu continuava a gritar bem alto.

As poucas pessoas que ainda permaneciam no parque olhavam para mim estupefactas. Envergonhada, desci cuidadosamente do gradeamento. O David estava já no início da ponte. Assim que os nossos olhares se cruzaram, os nossos corpos iniciaram uma corrida frenética. Mal cheguei perto do David, dei um pulo e atirei-me para o seu colo. Enrolei as pernas à volta da sua cintura, com os braços segurei-me no seu pescoço e beijei-o intensamente. Ele apertava o meu corpo com força contra o seu. Eu afastei os meus lábios e comecei a percorrer-lhe a cara com beijos até chegar à orelha. Passei-lhe com a língua delicadamente no lóbulo e senti o David arrepiar-se de prazer.
- Assim você me deixa louco. – Sussurrou-me ao ouvindo, provocando em mim o mesmo arrepio.
- Eu adoro-te David. Nunca duvides disso.

Ele não me respondeu. Beijou-me simplesmente. Eu voltei a arrepiar-me, mas ambos percebemos que aquele pequeno tremor tinha sido provocado pelo frio que se fazia sentir. Eu deslizei lentamente pelo corpo do David, até ficar de pé. Voltámos a dar as mãos e seguimos até ao hotel.

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Entrámos o mais silenciosamente possível no hall de entrada e dirigimo-nos ao elevador, depois de acenarmos ao recepcionista. Caminhávamos frente-a-frente, sem nos conseguirmos parar de beijar. Como eu estava de costas para o elevador, foi o David quem carregou no botão. Uns segundo depois, o elevador parou por trás de mim e a porta abriu-se. Num movimento veloz, soltei-me do David e, com a minha mão no seu peito, fiz força para não o deixar aproximar.

- Boa noite David, até amanhã. – Disse-lhe com uma cara séria.
- Você não vai me deixar subir? – Ele olhava para mim surpreso e as palavras demoravam a sair da sua boca.
- Não. Eu sou uma senhora. – Tentei manter um ar austero, mas com a sua característica perspicácia o David percebeu que as minhas palavras não espelhavam a minha vontade.
- Tem razão, você é uma senhora – O David aproximou-se serenamente, o que fez com que desarmasse. Deu-me um terno beijo nos lábios e continuou – Uma senhora que ainda há pouco pulou no meu colo e fazendo assim… – aproximou a sua língua da minha orelha e com uma pequena lambidela fez-me estremecer – … me deixou louco. Por isso, cala a boca e entra aí – Com um gesto rápido o David empurrou-me para dentro do elevador.
- Aaahhh – A sorrir, soltei um pequeno guincho que, não fosse o silêncio carregado da madrugada, mal se teria ouvido.
- Shiu – O David segurava-me contra a parede do elevador, à espera que este se fechasse. Eu tentava oferecer resistência.

Assim que a porta se fechou por trás dele, o David pressionou o seu corpo contra o meu. Com uma das mãos segurava-me a cabeça e com a outra puxava uma das minhas pernas, colocando-a à volta do seu corpo. Eu não resisti mais. Abracei-o com força e beijei-o com desejo. Perdemos o controlo das nossas mãos, deixando-as percorrer livremente os nossos corpos. Acometidos pela excitação, esquecemo-nos do quão rápida era aquela viagem até ao terceiro andar. Fomos acordados daquele entusiasmo pelo barulho da porta do elevador a deslizar. Num movimento rápido, recompusemo-nos e preparamo-nos para sair. Mais próximo da porta, o David deu-me a mão e puxou-me. Eu estava já a atravessar a pequena fenda que separava a caixa do elevador do chão do corredor, quando um qualquer instinto me fez parar e olhar para cima. Soltei uma gargalhada sonora, que não consegui evitar. O David olhou para mim estupefacto e tapou-me agilmente a boca com a sua mão quente, evitando o prolongar daquele som que poderia acordar os restantes hóspedes.

- Que foi sua boba?

Sem lhe responder, puxei-o novamente para dentro do elevador e apontei para o canto superior esquerdo.

- Merda! – Sussurrou o David tentando controlar o riso – Como é que a gente esqueceu esse pormenor?

Ríamos os dois perdidamente, mas em surdina, sem conseguir desviar o olhar da câmara de vigilância.

Já com o riso controlado e depois de uma troca de olhares cúmplice, saímos do elevador e abrimos a porta do quarto 23 do hotel. Apesar do desejo que nos consumia, não sabíamos o que aquela noite nos reservava, mas tínhamos a certeza de que queríamos desfrutá-la juntos.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Capítulo 28 - Apaixonada em Paris


O dia em Paris estava iluminado pelo brilho do sol morno típico de Fevereiro. Nós seguíamos no carro conduzido pelo Paulo que, num gesto simpático, nos tinha ido buscar ao aeroporto. A Raquel, sentada no banco traseiro, falava ao telefone com o Ruben, pedindo-lhe pela milésima vez que não estragasse a surpresa. Eu seguia na frente, junto ao Paulo que, sorridente, me ia dizendo que, embora tivesse tentado, não tinha conseguido quartos no mesmo hotel da equipa, que também já tinha os bilhetes para o jogo e que já sabia onde nos ia levar durante as três horas que ainda faltavam para o início da partida.

Algum tempo depois estávamos em frente ao hotel onde ficaríamos alojadas. Um pequeno edifício de tons claros, com uma entrada discreta que quase não deixava perceber a atribuição de quatro estrelas, situado no centro de Paris, perto do Grande Palácio e também do Rio Sena. O Paulo, num acto de cavalheirismo, tirou as malas das bagageiras e levou-as até à recepção. Nós seguimo-lo atentamente. Num francês perfeito, o nosso amigo fez o check-in e depois de nos traduzir as indicações para os quartos, encostou-se no balcão à nossa espera. Eu e a Raquel entramos no elevador e subimos ao terceiro piso. Entrámos cada uma no respectivo quarto e combinámos encontrar-nos quinze minutos depois, junto à porta do elevador.

A escolha que o Paulo tinha feito para mim revelava o seu cuidado com os pormenores, a começar pelo número da porta: o 23. No interior, a primeira imagem que os meus olhos alcançaram foi a de uma secretária, de madeira clara como os restantes móveis, decorada com um enorme candeeiro branco e uma jarra transparente com duas rosas também elas brancas. Percorri o pequeno corredor e encontrei um quarto pintado em tons pérola, iluminado pelos raios de sol que trespassavam os cortinados, pendurados no varão da enorme janela, e reflectiam na cama, de grande dimensões. Fiquei durante alguns minutos só a contemplar a decoração. As cores daquele quarto estavam em sintonia com o meu estado de espírito. Depois de um profundo suspiro de tranquilidade, pousei a mala a um canto, tirei de lá o meu casaco de pêlo preto, já a pensar no frio da noite, e enviei uma mensagem à Si. Dei uns passos até à janela e deixei-me encantar com a vista sobre aquela fantástica cidade. Podia ver os sumptuosos edifícios repletos de pormenores arquitectónicos, os barcos de passeio no Rio Sena e, do lado esquerdo ao fundo, a imponente Torre Eiffel. “O cenário ideal para vislumbrarmos amanhã de manhã, caracolinhos”. Sorri com o meu próprio pensamento, abri a janela e respirei o ar parisiense, antes de sair para, juntamente com a Raquel, ir ter com o Paulo, que nos esperava pacientemente.

- Estão prontas, minhas senhoras? – Perguntava-nos sorridente.
- Com certeza – Respondi-lhe. – Então e para onde vamos?
- Passear – Respondeu-me o Paulo, saindo do hotel – Têm tudo o que precisam até logo à noite?
- Sim – respondemos em uníssono.
- Ok, então depois seguimos directos para o estádio.
- Mas ainda não disseste onde vamos agora? – Perguntei-lhe já impaciente.
- É surpresa.
- Olha, eu cá agradecia que me levasses a comer qualquer coisa. Estou a morrer de fome. – Dizia a Raquel num tom reivindicativo.
- Oui, oui, mademoiselle.

Entrámos no carro sorridentes e seguimos naquela viagem, ainda em direcção ao desconhecido. Eu e a Raquel olhávamos encantadas pelos vidros do carro. Embora não fosse a primeira vez de ambas em Paris, a magnificência daquela cidade não nos era indiferente. Depressa chegámos ao destino: a Torre Eiffel.

- Bem, meninas, tal como prometido, os bilhetes para subirem à Torre. – Dizia-nos o Paulo ainda no interior do carro, esticando-nos a mão onde segurava dois bilhetes.

Não evitámos soltar uma gargalhada conjunta.

- Tu compraste mesmo os bilhetes, Paulinho? Pensei que estivesses a gozar.
- Também eu pensei que estavas a gozar e olha… – fez uma pausa para nos sorrir e apontar para a Torre – … aqui estão vocês prontinhas para subir ao ex-libris de Paris.
- E porque é que eu só vejo dois bilhetes? – Perguntava a Raquel que entretanto se tinha pendurado entre os dois bancos dianteiros.
- Eu não vou. Tenho vertigens. – Informava o Paulo, envergonhado.
- Oh, anda lá. Fechas os olhos e nós guiamos-te até lá cima. – Disse-lhe a sorrir.
- Não, a sério, não consigo. Já tentei e não consegui. Vão vocês.
- E tu ficas aqui sozinho a fazer o quê?
- A tratar de uns assuntos. E aproveito e vou comprar qualquer coisa para comermos.
- Mas assim não tem piada Paulo.
- Tem sim dona Amorim – respondia-lhe ele em tom de brincadeira – Agora vão lá que daqui parece que está lá muita gente e o tempo passa a correr.
- Ok, Paulinho.

Saímos do carro e caminhámos juntas em direcção àquele amontoado de ferro do século XIX (19) com 324 metros de altura. A cada passo que dávamos, a estrutura parecia aumentar em tamanho e em sumptuosidade. Após uma longa desesperante espera de meia hora na fila, iniciámos a subida. Optámos por fazer o primeiro nível de elevador, o segundo de escadas e daí até ao topo de novo de elevador. Parámos em cada um dos níveis para apreciar a paisagem, mas foi no cimo da torre que permanecemos mais tempo. Estávamos entorpecidas com tamanha beleza. “Sinto que podemos ver daqui o mundo inteiro”, desabafei de olhar perdido no horizonte que parecia infindável. O céu azulado e a terra pintada pelos tons brancos dos edifícios tocavam-se numa simbiose quase perfeita. O vento frio fazia esvoaçar algumas madeixas do meu cabelo, que eu ia desviando da frente dos olhos para não perder de vista aquela cenário deslumbrante. Para guardar todos os pormenores que pudessem escapar às nossas retinas, eu e a Raquel fotografávamos incessantemente. De cada vez que as máquinas disparavam eu lembrava-me da minha amiga Sílvia. Senti uma tristeza apoderar-se de mim.

- Gostava tanto que a Si aqui estivesse. Parece que falta um bocadinho de mim – Balbuciava, revendo as fotos já tiradas.
- Imagino que sim. A vossa amizade é tão linda! – A Raquel fitava-me com o seu olhar sincero – É tão estranho não vos ter às duas no mesmo sítio.
- Sim, é – voltei a preparar a máquina para disparar – Mas agora somos três – Puxei a Raquel para junto de mim e abracei-a – E se te convidei para vires comigo é porque gosto muito de ti, menina Amorim. Só que gostava que estivéssemos aqui as três.
- Oh… eu também gosto muito de ti. Aliás, de vocês. E também sinto a falta da Si. – A Raquel deu-me um beijo na bochecha.
- Somos mesmo seis magníficos, não somos?
- Se somos, Kika, se somos. Ligados pela amizade e pelo amor. – Ela falava num tom trocista e fazia-me uma careta.
- Não te estiques, Raquelinha. Calma, eu preciso de muita calma.
- Eu sei amiga. Estava só a brincar. Leva o tempo que precisares, só não deixes fugir o David. Ele é uma pessoa extraordinária.
- Eu sei, querida. Vamos?

Num instante demos a volta ao varandim, onde encontrámos várias garrafas de champagne vazias espalhadas pelo chão. “Consequência dos inúmeros pedidos de casamento que por aqui se fazem”, dizia-nos uma senhora brasileira, ao ouvir-nos questionar a presença de tais objectos. No mesmo momento e quase que comprovando as palavras daquela desconhecida, um jovem inglês ajoelhava-se à nossa frente, de anel na mão, e fazia a pergunta que a maioria das mulheres quer ouvir: “Do you marry me?”. A resposta positiva da namorada fez-se ouvir por entre lágrimas e soluços. De forma quase irreflectida, eu e a Raquel fotografámos o momento. Um acto que, ao contrário do que imaginámos assim que nos demos conta de que poderíamos ter invadido a vida íntima alheia, foi bem aceite pelo casal que nos deu o seu e-mail para que lhes enviássemos as fotos. Antes de descermos, voltou a olhar a cidade, respirei o ar romântico que inundava a atmosfera e sem grande esforço pensei no David. Fui invadida por uma ansiedade que me fez tremer. O nervosismo voltou a apoderar-se de mim e nem a Raquel lhe ficou indiferente.

- Calma, amiga, já falta pouquinho para estares com o David.

Fizemos o percurso de descida com os olhos humedecidos pela emoção contagiante do acto de amor que tínhamos presenciado.
O Paulo aguardava-nos, no interior do carro, com três baguettes de atum e três sumos. Comemos, sentados num banco próximo do carro, e seguimos para o estádio.

Voltava a sentir-me deslumbrada, desta vez com o majestoso estádio Parque dos Príncipes, a “casa” do Paris Saint-Germain. Uma enorme estrutura oval iluminada pelos reflectores brancos. O Paulo seguiu pela entrada VIP, mostrando a sua identificação e os nossos bilhetes ao segurança. Depois de estacionarmos o carro e acedermos ao interior do estádio pelo elevador, percorremos um longo corredor e parámos em frente a uma porta onde se podia ler a palavra “cabines”. Percebi, então, para onde eram os bilhetes que o Paulo nos tinha arranjado.

- Olha lá, isto são camarotes? – Perguntei-lhe com algum desdém.
- Claro. – Respondeu-me com firmeza – Achavas que te ia mandar para as bancadas?
- Óbvio. Até parece que não me conheces Paulo. Sabes como eu odeio estas paneleirices.
- Chiça, uma pessoa a tentar pôr-te confortável e tu reclamas, Ana.
- Vamos estar sozinhas, ao menos?
- Não. Esse é o local destinado aos familiares dos jogadores…
- … Nan, nan, nan, nan, nan – interrompi-o, abanando o dedo indicador – Eu não vou para aí. Nem pensar, Paulinho. Muito obrigada, mas não.
- Porquê? – Perguntava a Raquel admirada. – Eu já conheço algumas pessoas Kika e garanto-te que o ambiente costuma ser bom.
- Pois, mas eu não quero cá essas misturas. Eu não sou familiar de ninguém que jogue no Benfica. Eu prefiro ir para as bancadas, se não te importares.
- Por mim tudo bem, mas será que nos deixam?

Olhámos para o Paulo, pedindo com o olhar que ele encontrasse uma solução para aquele pequeno problema. Ainda que aborrecido, ele fez-nos sinal para o seguirmos e pediu ao segurança que nos deixasse passar.

- Ok, meninas esquisitas e mal agradecidas – usava um tom irritado, enquanto falava connosco – podem sentar-se numa dessas cadeirinhas geladas ao relento, mas se aparecer o dono do lugar, têm de sair.
- Sem problema, Paulinho – disse-lhe a sorrir – tu sabes que até sentada nas escadas ou no chão eu vejo a bola.
- Então vão lá. No final do jogo esperem aqui por mim.
- Certíssimo Doutor Paulo Leitão.

Sorri e dei um beijo repenicado ao Paulo, puxei a Raquel por um braço e entrei nas bancadas. Fui acometida por uma panóplia de emoções. O deslumbramento provocado pela beleza do estádio e pelos cânticos ensurdecedores das claques já instaladas misturava-se com a ansiedade e o nervosismo de estar a ver o David. As equipas faziam o aquecimento no relvado e num ápice os meus olhos encontraram os caracóis esvoaçantes do camisola 23 do Benfica. Um sorriso rasgado invadia-me o rosto e o coração batia demasiadamente acelerado. Fui acordada daquele extâse, pelo flash da máquina da Raquel, que olhava para mim com o seu jeito encantador e sorriso magnífico nos lábios. A minha amiga pousou a máquina e tirou de dentro da sua carteira, um cachecol e uma camisola do Benfica, obviamente com o número cinco e o nome do namorado. Fitou com um olhar semi-cerrado e não resistiu a provocar-me.

- Olha a camisola é muito pessoal, mas se quiseres posso emprestar-te o cachecol.
- Ah, ah, ah menina Amorim, estamos com umas piadinhas. Nunca na minha vida vou pôr isso ao pescoço, ouviste? Nunca – Dizia-lhe com um ar convincente.
- Não me digas que vieste apoiar o PSG?
- Não, claro que não. Vim apoiar o David e, ok, vou apoiar o teu Benfica, hoje e só hoje, mas nada de cachecóis.
- Ok, não se fala mais no assunto. Olha, vão entrar as equipas.

Sentei-me ao lado da Raquel e fomos absorvidas pelo som estonteante dos aplausos e assobios. O Estádio estava quase lotado, na sua maioria por adeptos do Paris Saint-germain, mas também por muitos apoiantes benfiquistas. Nós estávamos na bancada central e, por isso, em nosso redor praticamente só havia franceses. O que nunca nos inibiu de aplaudirmos as jogadas do Benfica e de vaiarmos as entradas faltosas da equipa da casa. Apesar do meu amor ao Sporting ser intocável, naqueles noventa minutos deixei-me contagiar pela Raquel e senti os nervos a apoderarem-se de mim. Insultei o árbitro e os jogadores do PSG, roí as unhas, puxava pelos jogadores do Benfica cada vez que eles esmoreciam e batia palmas entusiasticamente de cada vez que eles criavam situações de golo. O maldito golo que, aos oitenta e cinco minutos, teimava em não aparecer. A Raquel estava cada vez mais desesperada e eu podia confirmar isso só de olhar para ela. O golo chegou finalmente, dois minutos depois, dos pés de Pablo Aimar que num remate magistral de fora da área levou a Raquel e os cerca de cinco mil benfiquistas presentes no estádio ao delírio. A minha amiga abraçava-me com força e eu, deliciada com a felicidade do David, retribuía-lhe com um sorriso rasgado. Até ao apito final foram minutos de sofrimento para a Raquel, que já não conseguia estar sentada, e para os adeptos do PSG, que protestavam contra a euforia dela. Aquela discussão que depressa passou à troca de palavrões, em português e francês, só terminou com a festa do SLB, que marcava o fim do jogo. A Raquel voltou a envolver-me num abraço forte e a junção dos nossos corpos permitiu-lhe perceber o estado incontrolável de nervos em que eu me encontrava.

- Estás a tremer, Kika.
- Estou tão nervosa Raquel.

Conversávamos sem desviarmos o olhar do relvado. Os jogadores estavam a agradecer ao público. Por trás de nós, o silêncio já imperava. Com uma rapidez incrível, a bancada tinha ficado vazia.

- Acredito amiga – Dizia-me a Raquel enquanto me segurava na mão – Mas agora é melhor sairmos antes que eles nos vejam.
- O Ruben já te viu – respondi-lhe a sorrir, fazendo sinal com a cabeça para que ela voltasse a olhar para o relvado, onde o Ruben quase nos estragava a surpresa.

Ela virou-se num ápice e eu consegui descobrir o amor que os une só por aquela troca de olhares intensa. O Ruben caminhava para o túnel de acesso aos balneários. O David continuava no centro do relvado, agachado, a olhar em seu redor. Tentei decifrar, sem sucesso, aquele seu comportamento enigmático. Ficámos alguns minutos ainda a presenciá-lo, em silêncio. Todos os outros jogadores já tinham abandonado o campo, os poucos adeptos que restavam iam saindo apressadamente por entre cânticos de alegria e, na entrada do túnel, a equipa de arbitragem esperava o David.

- Vamos Kika? O Paulo deve estar à nossa espera.
- Vamos – respondi-lhe sem a mínima convicção.

Por momentos senti uma vontade louca de correr até ao centro do relvado e beijar o David. Sabia que o Paulo tinha providenciado tudo para que nos encontrássemos ainda no interior do estádio, mas aquela espera estava a tornar-se sufocante. Subíamos os degraus lentamente. A cada passo em frente que dava movida pelo meu cérebro, o meu coração pedia-me que recuasse. Estava já nos últimos degraus antes de atingir a porta de saída das bancadas, quando um instinto se apoderou de mim. Não resisti a olhar para trás. O David caminhava lentamente, com os olhos fixos na equipa de arbitragem. As luzes do estádio realçavam-lhe os traços do rosto e aumentavam o brilho do seu sorriso. Apesar de se mover cabisbaixo, podia encontrar nos seus olhos a felicidade provocada pela conquista.
Comecei a descer as escadas lentamente, sem pensar minimamente nas consequências. Naquele momento, a voz do meu coração abafada as ordens da razão, e o desejo de estar com o David olhos nos olhos era incontrolável. Vendo-o aproximar-se cada vez mais do túnel, acelerei a passada.

- David – gritei com a voz carregada de entusiasmo.

Num gesto veloz, os olhos dele encontraram os meus. Sentia o coração a bater descompassadamente e o corpo a tremer de forma descontrolada. Os olhos começaram a humedecer-se. O David olhava para mim atónito e caminhava na minha direcção. Quanto mais ele se aproximava, maior era a vontade que eu tinha de o beijar. Caminhei lentamente até ao varão que separava a bancada do relvado.

- Meu Deus – A sua voz tinha um som trémulo – O que é que você tá fazendo aqui? – Perguntava-me de olhos esbugalhados.
- Vim pedir-te a camisola – Sorri, envergonhada.

Aquele desejo ardente que já tínhamos sentido antes voltava agora a tomar conta de nós. Tudo à nossa volta tinha desaparecido. Naquele momento éramos só nós e a nossa paixão.

- Você é louca garota! – O David trincava o lábio, abanava a cabeça suavemente e olhava em seu redor, de sorriso rasgado.

Segurei-lhe a cabeça com a mão direita, olhei-o profundamente e sorri-lhe.

- Sou louca por ti – Estremeci ao proferir aquelas palavras que me tinham saído do fundo do coração – Agora, despe lá a camisola e despacha-te que eu estou à tua espera lá dentro.

Com um movimento rápido, o David despiu a camisola, entregou-ma e piscou-me o olho, com um sorriso malandro.

- Tou louco p’ra te beijar.
- Também eu. Por isso não me faças esperar muito.

Ele saiu a correr em direcção ao túnel. Eu respirei fundo, encostei a camisola do David contra o peito e subi as escadas a correr, voltando para junto da Raquel. Senti de novo o bailado de borboletas dentro de mim e tive a certeza de que queria levar aquela paixão até aos limites.