terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Capítulo 32 - A primeira mudança de muitas…


Ao longo de toda a viagem de táxi, o meu telefone não parava de tocar. Mensagens e mais mensagens, mas sobretudo informações sobre chamadas que me tinham sido feitas durante a minha estada em Paris, grande parte delas da minha mãe, obviamente.

- Oh pá, sou mesmo parva! – Desabafei, um pouco irritada com aqueles toques repetitivos, enquanto ia apagando as mensagens.
- Que se passa, Kika? – Perguntou-me a Raquel cuidadosamente perante a minha irritação.
- Oh Raquel, tu acreditas que eu não avisei a minha mãe que ia para Paris?! Ela fartou-se de me ligar e mandar mensagens, deve estar super preocupada.
- O quê? – A cara de estupefacção da minha amiga lembrava-me que eu tinha feito asneira da grossa – Kika não quero estar a dar-te sermões, mas nem quero imaginar o estado de nervos da tua mãe.
- Eu sei, eu sei. Merda, ela vai-se passar comigo. E quando lhe contar onde estive, com quem estive… bem, nem quero imaginar a gritaria que vai ser.
- Como assim? Ela não sabe que tu e o David…? – Mais uma vez a minha amiga olhava para mim com cara de espanto.
- Não… quer dizer, sabe, mas… – levei as mãos à cara e esfreguei as sobrancelhas.
- Kika, eu conheço esse gesto. O que se passa? A tua mãe sabe ou não sabe da tua relação com o David? – A Raquel tinha a pele do nariz enrugado, como acontecia sempre que estava preocupada com alguma coisa.
- Não sabe da relação porque como é óbvio não há oficialmente uma relação – as minhas mãos tinham descido então até ao meu pescoço, massajando-o descontroladamente – mas sabe que somos amigos, que passamos muito tempo juntos, que já nos beijámos, enfim, conhece-me o suficiente para saber que estou apaixonada por ele. E não, não aprova. – Disse-lhe, por fim. A Raquel baixou por instantes o olhar, suspirou e voltou a encarar-me.
- Mas achas que isso pode ser um problema? Isto é, o que a tua mãe pensa? Sei lá, ela é tão importante para ti…
- Raquel… – fixei o meu olhar no dela – Raquel, eu já sou crescida, eu sei o que quero, eu é que escolho gostar ou não de alguém. A minha mãe é muito importante sim, mas eu tomo as decisões da minha vida.
- Ela não gosta do David, é isso? É por ele ser jogador de futebol?
- Ela não conhece o David, ela só conhece o jogador. E ela no fundo só não quer que eu volte a sofrer e a cometer os mesmos erros, entendes?
- Sofrer porquê? Que erros?

Lembrei-me naquele instante que nunca tinha falado do meu passado à Raquel, mas soube também que aqueles não eram o momento e o local certos para o fazer.

- Um dia... um dia eu conto-te tudo, prometo! Mas primeiro deixa-me pôr a minha vida em ordem, acordar desta fantasia que vivi em Paris, falar com o David sobre a realidade, conversar com a minha mãe, e depois eu falo contigo, combinado? – Questionei-a, olhos nos olhos.
- Claro, eu respeito. Mas só quero que saibas que, independentemente do que tenha acontecido, do que te tenham feito, tu tens que andar com a tua vida para a frente e o Dê é a pessoa certa para te acompanhar nessa caminhada! – Os olhos da Raquel estavam ligeiramente humedecidos.
- O quem? – Perguntei a rir, numa tentativa de quebrar aquele ambiente triste.
- Oh tu percebeste. Mas não lhe podes chamar isso, só a Regina é que o trata assim desde miúdo e ele odeia. Sabes como são os homens, não sabes? – A Raquel ria ainda mais
- Sei! Oh… mas Dê é tão giro. – Eu também já não conseguia controlar as gargalhadas.
- Kika, tu jura que nunca lhe vais chamar isso. Ele mata-me!
- Ai vou, vou. Aliás vou-lhe chamar Dêzinho.

Com as nossas gargalhadas contagiantes, até o taxista se ia rindo no seu lugar solitário.

- Olha, não ligas à tua mãe?
- Já estamos perto de casa. Quando chegarmos, ligo-lhe.


*******************

Cinco minutos depois estávamos junto ao prédio do David. Pagámos ao taxista, que amavelmente nos retirou as malas da bagageira e subimos. A Raquel já tinha avisado o Ruben que estávamos a chegar e por isso a porta do prédio estava já aberta. Aproveitei a subida pelo elevador para tentar construir mentalmente um início de diálogo com a minha mãe, que esperava difícil.
A Sílvia veio abrir-nos a porta do apartamento com um sorriso estranho. Tentei decifrá-lo e encontrei um misto de alegria com preocupação. Percebi imediatamente que a minha mãe já lhe devia ter ligado e que ela, contrariada, lhe devia ter dado uma qualquer desculpa esfarrapada. Percebi tudo isso enquanto a minha amiga me apertava com toda a força.

- Oh babe, tive tantas saudades tuas. – Murmurou-me ao ouvido, enquanto me apertava um pouco mais.
- E eu tuas, minha bi! – Beijei-lhe a testa e preparei-me para a primeira reprimenda. A Sílvia soltou-me daquele abraço sentido.
- Ana Moreira, tu és parva? Tu vais para Paris, desligas a merda do telemóvel e nem sequer avisas a tua mãe? Ela está farta de ligar, já me ligou, está preocupada.

Deixei a Sílvia a falar sozinha e entrei na sala. Cumprimentei o Gustavo e o Ruben e, literalmente, atirei-me para os braços do David. Queria mostrar-lhe não tanto as saudades que tinha dele mas sobretudo o quanto tinha adorado aquela noite em Paris. Beijei-o apaixonadamente, envolvendo os meus braços no seu pescoço. E aquele até podia ter sido um beijo perfeito, não fosse a Sílvia estar atrás de mim aos berros.

- Isso não se faz… podias ter dito que ias em trabalho, uma porcaria qualquer… a tua mãe está possuída e com razão, Ana Moreira.
- Calma Sílvia. – Berrei-lhe, depois de afastar os meus lábios dos do David. – Tu tens razão e eu já vou ligar à minha mãe. Posso ao menos cumprimentar as pessoas? – Questionei-a enquanto me dirigia ao Paulo para o abraçar – Obrigada. Adoro-te Paulo Leitão! – Segredei-lhe ao ouvido. Ele sorriu-me. – E para de me tratar como se fosses a minha própria mãe, Sílvia Salgado. – Ordenei-lhe, enfurecida. – Agora se me dão licença vou ligar à minha mãe. Dê, posso ir para o teu quarto?

Fez-se silêncio na sala. O David petrificou, a Raquel corou, a Si e o Paulo olharam para mim curiosos e o Ruben e o Gustavo olharam um para o outro e soltaram uma gargalhada monumental. Eu sorri delicadamente.

- Dê, posso? – Voltei a perguntar. O David acenou afirmativamente com a cabeça e começou a andar na minha direcção.
- Sim, eu levo você. – Respondeu-me, colocando as mãos nos meus ombros. Eu estava já de costas a tentar controlar o riso. – Eu vou matar você, garota. – O David ameaçou a Raquel, tal como ela previa, e empurrou-me ligeiramente, fazendo-me caminhar.
- “Mas desde quando é que ela lhe chama Dê?” – Ouvimos o Ruben perguntar, por entre risos descontrolados.

Com o seu habitual cavalheirismo, o David abriu a porta e acendeu as luzes do quarto. Assim que entrámos, voltou a fechar a porta e num movimento repentino, mas suave, atirou-me para cima da sua cama, iniciando um ataque de cócegas que começava a fazer-me rir descontroladamente.

- Foi a Raquel que te contou isso? Foi? Fala para mim!
- Pára, Dê, por favor, pára! – Suplicava-lhe por entre risos.
- Pára você de me chamar esse negócio. – O David intensificava cada vez mais as cócegas e eu contorcia-me.
- Porquê Dêzinho? É tão querido!
- Mas que querido… parece nome de boiola. Vai parar? – Eram já audíveis por todo o prédio as minhas gargalhadas e cada vez mais frustradas as minhas tentativas para fazer o David parar.
- Sim… eu paro… eu paro.
- Mesmo? – O David parou de me fazer cócegas e eu tentava em vão parar de rir.
- Sim, paro. Juro.
- Tá bom, então!

Ao fim de alguns minutos consegui finalmente recompor-me. O David olhava para mim enternecido, de tal forma que chegava a ser constrangedor.

- Que foi? Porque é que estás a olhar assim para mim?
- Porque você tem o sorriso mais lindo que eu já vi até hoje! – A doçura nas palavras do David fizeram-me encolher e sorrir de vergonha mas sobretudo de encantamento. Mais ainda quando ele inclinou o seu corpo para cima do meu.
- E tu és um querido e é por isso que eu gosto tanto de ti! Meu Dêzin…

O David não me deixou terminar a frase. Beijou-me… com paixão, com desejo! Um beijo… aquele beijo que me fazia esquecer do mundo em meu redor, me tirava o fôlego e me arrepiava. Deixei-me levar pelo entusiasmo e entrelacei o meu corpo no do David. As nossas mãos percorriam, estusiasticamente, cada centímetro dos nossos corpos e os nossos corações já palpitavam freneticamente.
Até que o toque do meu telemóvel nos trouxe de novo à realidade. Apertei o David contra mim e rodopiei os nossos corpos de forma a poder ficar sentada sobre o seu corpo ainda trémulo pela excitação. Beijei, delicadamente, os seus lábios e preparei-me para a conversa com a minha mãe.

- Desculpa, tenho mesmo de falar com a minha mãe.
- Vai, antes que pare de chamar.

Levantei-me de rompante e corri para procurar o telemóvel na carteira. O David levantou-se de seguida e começou a caminhar em direcção à porta. Não sem antes me mimar com um beijinho na testa, no mesmo momento em que eu encontrava o meu telemóvel e me preparava para atender.

- Adoro-te, Dê. – Sorri-lhe, de forma provocadora e ele nem hesitou em tentar responder.
- Você prometeu que não falava mais esse negóc… – Num gesto rápido, tapei-lhe a boca com uma mão e simultaneamente levei o meu telemóvel ao ouvido, com a outra mão.
- Sim mãezinha!
Continuei a sorrir para o David, que saía fingidamente amuado do quarto fechando a porta com toda a delicadeza, enquanto ouvia os primeiros gritos da minha mãe no outro lado da linha.

- “Ana Moreira, onde é que tu andaste? O que é que se passa? Mas que raio se passa com a porcaria do teu telemóvel que está desde ontem desligado? Uma pessoa a tentar ligar e uma gaja qualquer a falar em francês ou em inglês ou lá que merda de língua estava a gaja a falar? Tu viajaste? Ana, tu viajaste sem me avisares? Quer dizer, tu já és maior e vacinada e não tens que me dar satisfações da tua vida, se calhar até foste em trabalho, mas não podias, pelo menos, ter mandado uma mensagem à tua mãe a dizer que ias sair do país? Está para aqui uma pessoa preocupada, sem saber onde andas, com quem estás, se estás bem se não estás? Fartinha de te ligar, de mandar mensagens e tu nada. Já liguei para a Sílvia, ela claro que não me disse onde andavas por isso não deves ter ido e trabalho porque se fosses ela dizia-me e ela estava muito nervosa para o meu gosto! Mas, seja como for, eu não quero saber para onde foste, nem com quem foste, ou melhor agora até quero porque estou preocupada, angustiada, numa pilha de nervos. Será que tu não percebes que isto não se faz? Não percebes? Oh, claro que não percebes, tu não és mãe. Ah, mas quando tu fores mãe tu vais entender… isto e muito mais, muito mais Ana! Fodasse, tu estás a ouvir-me? Mas onde é que tu andaste, Ana, o que é que tu andaste a fazer? Ana Moreira, tu estás a ouvir a tua mãe? Respondes-me se faz favor?

Já sem fôlego e praticamente sem voz, a minha mãe parou por fim aquilo que ela supunha ser um diálogo mas que, tão compreensível como irritantemente, tinha transformado num monólogo. Por entre a sua respiração irregular, pude ouvir os desabafos do meu pai.

- “Como é que queres que ela te responda se tu não te calas, Maria?” – O timbre do meu pai mostrava gozo mas também preocupação.
- Ora aí tens a tua resposta – respondi-lhe de forma cansada, mas também triste por saber que ela estava certa. – Tu ainda não calaste, mãe. Eu sei que tu estás cheia de razão, mas se queres saber o que aconteceu ou te calas e me ouves ou fazes uma pergunta de cada vez.
- Pronto, já me calei! – Retorquiu, já com a voz recomposta e ainda mais carregada de fúria. – Posso saber, então, o que aconteceu?
- Podes. – Sentei-me na beira da cama, deixei cair o corpo e, de olhos postos no tecto do quarto do David, tentei encontrar as palavras certas para explicar à minha mãe que finalmente tinha ganho coragem para assumir aquela paixão que ela própria já conhecia. Rapidamente deixei de tentar encontrar o mais bem construído texto explicativo e argumentativo para, de uma forma convicta, resumir tudo numa simples frase. – Eu… eu deixei de fumar.
- O quê? – Surpreendida com a minha resposta, a minha desatou num riso nervoso e enraivecido. – Deixaste de fumar? – Perguntava-me incrédula – E foste para o estrangeiro para deixar de fumar? – A minha mãe continuava num riso enlouquecido.
- Sim, isso mesmo que tu ouviste. Eu ontem fui para Paris e… deixei de fumar! – Dei bastante ênfase à última frase para que a minha mãe percebesse o verdadeiro sentido que eu lhe queria dar.
- Tu foste para Paris e deixaste de fumar? – Ela continuava irritada. – Espera lá… tu foste para Paris? Ontem? E deixaste de fumar? – Pelo tom de voz da minha mãe, conseguia imaginá-la a juntar as peças e formar um pensamento que fizesse finalmente sentido
- Sim, exactamente!
- Ahhhhh… já entendi! – Respondeu-me, de forma seca e sem qualquer emoção.

A velocidade dos meus batimentos cardíacos denunciava o meu nervosismo perante o sarcasmo da minha mãe. A cada minuto que passava eu tinha mais certezas de que ela se tinha já lembrado da nossa conversa, em Coimbra, na última visita que lhe fizera. Ela sabia o que eu queria dizer-lhe, ela sabia que eu tinha ido a Paris ter com o David, ela sabia que eu tinha assumido que estava apaixonada, ela sabia que esse era o motivo para eu ter deixado de fumar, tal como lhe tinha prometido.

- Mãe… mãe… – Eu chamava, mas ela não me respondia. E o meu coração batia cada vez mais apressado. De tanto tremerem, as mãos começavam já a sentir dificuldade em segurar o telemóvel. E quanto mais eu batia o pé direito contra a barra da cama do David, mais os meus olhos se humedeciam. Sentia-me preparada para ouvir qualquer palavra que a minha mãe pudesse pronunciar… mas não para a ausência de palavras. – Mãe, diz qualquer coisa, por favor. Mãe… mãezinha… – O seu silêncio estava a matar-me e, sem resistência, deixei que as lágrimas me rolassem pelo rosto. – Mãe, por favor!...