sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Capítulo 29 - Beijos ao luar

 

Encostada ao parapeito da janela, contemplava Paris. Apesar da noite escura, um sem fim de luzes pintavam a cidade de tons amarelados e tornavam-na ainda mais esplêndida. Mas o brilho daquele clarão não conseguia amenizar o sufoco que eu sentia, enquanto esperava pelo David. Estava numa pequena sala que o Paulo tinha providenciado para que o nosso encontro fosse o mais discreto possível. Sentados no sofá, a Raquel e o Ruben, matavam as saudades com beijos e palavras de amor. Indiferente à presença do casal, eu continuava de olhos postos no horizonte, profundamente compenetrada naquele cenário. De tal forma que não ouvi o barulho da porta a abrir quando o David entrou na sala. Apercebi-me da sua presença apenas pelo reflexo da sua imagem no vidro da janela. Deixei-me estar encostada por mais alguns segundos só pelo prazer de o poder admirar. Mas quando o meu olhar se fixou na sua boca, perfeitamente delineada por um sorriso, um impulso tomou conta de mim e eu não ofereci qualquer resistência. Virei-me de frente para o David e num gesto decidido e silencioso os nossos corpos colaram-se e os nossos lábios uniram-se lentamente. O David segurava a minha cara com as duas mãos e eu envolvia os meus braços à volta do seu tronco. Apertei-o contra mim e fechei os olhos. Aquele primeiro beijo suave foi-se intensificando até se transformar numa explosão de sensações. Quanto mais as nossas línguas brincavam, mais os nossos corpos se comprimiam. Beijávamo-nos com paixão e eu tinha a certeza de que queria prolongar aquele beijo até à eternidade. Selámos o momento com pequenos beijos doces e permanecemos em silêncio, simplesmente a olharmo-nos. O brilho dos olhos do David iluminava o meu sorriso. Ele beijou-me a testa levemente, entrelaçou os seus dedos nos meus cabelos e puxou-me a cabeça suavemente.

- Te adoro – Disse-me, num sussurro. A sua voz meiga e a sua respiração fizeram-me estremecer.
- Beija-me – Pedi-lhe, sem conseguir responder-lhe com as mesmas palavras.

O David beijou-me de forma carinhosa. Um beijo apenas interrompido pelo Ruben, que tossia de forma artificial. Eu e o David soltámos uma gargalhada. Estávamos tão focados um no outro que nos tínhamos esquecido dos nossos amigos.

- Já acabaram, pombinhos? – Perguntava o Ruben com ar de gozo.
- Não… mas você não deixa a gente continuar, fazer o quê?
- Manz, continuam com as lamechices ao jantar, pode ser? É que eu estou a morrer de fome.
- Ué, e elas podem vir jantar connosco? – Perguntava o David, admirado.
- Não, mano, nós é que vamos jantar com elas.
- Sério? – A admiração do David aumentava.
- Sim, caracolinhos – Olhei-o e contei-lhe as novidades que o Paulo nos tinha deixado antes de ele chegar – O Paulo já falou com o treinador e vocês estão dispensados de jantar com a equipa. Vamos jantar ao hotel onde eu e a Raquel estamos instaladas.
- Que legal. – O David sorria como uma criança que acaba de receber um presente.
- Mas há mais mano – interrompeu o Ruben, levantando-se do sofá, e caminhando para a porta com a Raquel – A dispensa prolonga-se até às onze e meia da manhã de amanhã. – O Ruben piscou-lhe o olho e saiu.
- Ele ‘tá falando sério? – O David olhava para mim à espera de uma confirmação.

Acenei-lhe com a cabeça, toquei com os meus lábios suavemente nos dele e saí. Ele seguiu-me. Percebendo o meu embaraço perante alguns olhares mais curiosos com os quais nos cruzávamos nos corredores até à garagem do estádio, a Raquel largou a mão ao Ruben e veio colocar-se ao meu lado. O Ruben sorriu e esperou pelo David para lhe fazer companhia. Depressa chegámos ao carro, emprestado pelo Paulo, e seguimos viagem até ao hotel.

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O recepcionista do hotel era o mesmo da tarde e já estava à nossa espera. Encaminhou-nos até ao restaurante que tinha, àquela hora, fraco movimento. Apontou para a mesa do canto e sorriu.

Já acomodados na mesa reservada pelo Paulo, fomos atendidos por um empregado que falava connosco em inglês. Fizemos o pedido e ele retirou-se, de forma elegante.

- Ainda bem o Paulo pensou em tudo. – Dizia a Raquel enquanto arredava a cortina e espreitava para a rua – Se o empregado só falasse francês, estávamos tramados.

Todos sorrimos. O jantar decorreu sempre num tom animado. Enquanto eu contava ao David tudo o que tinha acontecido naquele dia, ela ia acusando o Ruben, na brincadeira, de ser mau amigo por não o ter avisado da nossa presença em Paris. Por entre piadas e gargalhadas sonoras, o tempo passou a voar. Estávamos sozinhos no restaurante, a música ambiente tinha sido desligada e o empregado olhava para nós, entediado.

- Se calhar é melhor irmos andando. O homem precisa de descansar. – O Ruben levantou a mão e chamou o empregado – E nós também.

O funcionário veio até à mesa e informou-nos de que o jantar estava incluído na conta do hotel que, como era normal, só pagaríamos quando fizéssemos o check-out. Agradecemos-lhe, os rapazes deixaram-lhe uma gorjeta e saímos para o hall de entrada, onde estava já um recepcionista diferente. O Ruben colocou os braços por cima dos ombros da Raquel e beijou-lhe a nuca.

- Vamos subir, amor? – Perguntou-lhe carinhosamente.
- Sim, vamos. – Ela olhava então para nós – Boa noite meus queridos, até amanhã.

Ainda não tínhamos acabado de responder e já eles estavam de costas, caminhando em direcção às escadas. Eu e o David tínhamos ficado sozinhos, sob o olhar discreto do empregado do hotel. Apesar de cansada, eu não tinha ainda vontade de ir para o quarto. Sabia que estava uma noite fria em Paris, mas apetecia-me desfrutar da beleza nocturna da cidade e, sobretudo, fazê-lo na companhia do David. Ele leu-me os pensamentos.

- Vamo? – Questionou-me, esticando-me a mão.

Saímos do hotel de mãos dadas e caminhámos sob o olhar atento da lua e das estrelas. Dávamos passadas lentas. Sem precisar de o dizermos um ao outro, sabíamos que queríamos saborear aquele momento. Era como se os nossos movimentos vagarosos fizessem o tempo passar mais lentamente.

Alguns minutos depois estávamos junto ao Sena. Aproximamo-nos do muro de pedra e apreciámos o incrível reflexo dos austeros edifícios nas águas tranquilas do rio. O David debruçou-se ligeiramente, rodou a cabeça e o seu olhar acompanhou o curso das águas. Eu deliciei-me com a sua beleza. Tinha a certeza de que guardaria aquela imagem para sempre na minha memória, mas ainda assim senti necessidade de registar o momento. Tirei a máquina fotográfica da carteira sem ele perceber e disparei. O flash fê-lo voltar-se para mim.

- Não sei se esse é o meu melhor lado – Gracejou.
- Tu não tens um lado melhor. – Respondi-lhe enquanto revia a foto.
- Não? – Perguntou-me cabisbaixo.
- Não… – Fiz uma pausa, preparando a máquina para disparar – Todos os teus lados são perfeitos.

O David sorriu de forma encantador e eu voltei a disparar. Voltámos a unir as nossas mãos e seguimos pela margem do Rio Sena. Atravessámos uma ponte e parámos num parque. Escolhemos um local bastante iluminado, por precaução, e sentámo-nos no banco mais recatado com vista para o Grande Palácio. Apesar do avançar da hora e das baixas temperaturas, ainda havia meia dúzia de pessoas que, ligeiramente afastadas, passeavam e conversavam naquele jardim. O David sentou-se primeiro numa ponta do banco, colocando uma perna para cada lado.

- Senta aqui. – Ordenou-me carinhosamente, apontando para o meio das suas pernas abertas.

Eu sentei-me de costas para ele e deixei descair o corpo, descontraído, encostando a minha cabeça no seu ombro. Com os braços à volta da minha cintura, o David apertou-me suavemente e beijou-me delicadamente a bochecha. Mantivemo-nos assim, abraçados e em silêncio, durante um bom tempo. O abraço do David transmitia-me segurança e conforto. Sentia-me intocável. Naquele momento nada no mundo me faria sofrer, ou chorar… não enquanto permanecesse assim, com os braços do David à minha volta.

Com a máquina fotográfica ainda na mão, fui registando cada carícia, cada beijo, cada sorriso e algumas caretas que o David fazia.

Lá do alto, a lua sorria-nos e iluminava-nos os corpos e os corações. Nós contemplávamo-la e, em silêncio, agradecíamos-lhe a generosidade. Inundados pela beleza do luar, beijávamo-nos com carinho e ternura.

- Posso te confessar uma coisa? – Perguntava-me ele ao ouvido, enquanto revíamos as fotografias já tiradas.
- Podes.
- Nesse momento sou o homem mais sortudo do planeta. E o mais feliz também.

Eu sorri baixinho. Afastei o meu corpo do dele e num movimento quase acrobático, virei-me de frente. Afastei as pernas e, aos poucos, fui-me aproximando um pouco mais. Coloquei as minhas pernas por cima das do David que, percebendo a minha intenção, me agarrou pela cintura e me apertou contra ele. Com os corpos bem juntinhos, entrelacei-lhe as mãos nos seus caracóis e beijei-o apaixonadamente.

- És também o homem mais bonito do planeta… o que faz de mim uma mulher com sorte. – Sorri e roubei-lhe um doce beijo. Ele corou e fez-me uma festinha na cara. - David… (pausa) … que momento solitário foi aquele no final do jogo?

Ele desviou o olhar e fixou-o no céu, sorrindo.

- Foi ali que tudo começou. O sonho, a luta, o sacrifício, as vitórias…
- … Ah, o primeiro jogo com a camisola do Benfica. – Não o deixei terminar a frase. – O início de uma brilhante carreira…
- … E Ele – o David apontava para o céu – esteve comigo naquela noite, e voltou a estar essa noite…
- … e vai continuar a estar todos os dias, tenho a certeza. Estejas tu onde estiveres, faças o que fizeres.

Ele sorriu para mim e beijou-me suavemente.

- Pensei que você não acreditava em Deus?
- David… alguém deve ter mexido os cordelinhos para que os nossos caminhos se cruzassem. E esse alguém só pode ter sido Ele! – Agora era eu quem olhava e apontava para o céu. O David seguia o meu dedo com o olhar.
- Kika – chamava-me com entusiasmo – pede um desejo!

Uma estrela cadente passava naquele momentos. Ficámos os dois calados por instantes, de olhos fechados.

- Já pedi. E tu?
- Também.

A nossa cumplicidade deixava transparecer que tínhamos desejos semelhantes.

- Sabe que eu adoro você? – Perguntava-me por entre um beijo.
- Sei – Respondi-lhe por entre um arrepio – Vamos andando?

Ele não me respondeu. Simplesmente acenou com a cabeça. Levantámo-nos e iniciamos, de mãos dadas, o trajecto de regresso. Estávamos na margem do rio, a uns metros do início da ponte e, num ímpeto, o David parou.

- Que foi? – Questionei-o, tentando perceber o significado daquela paragem.
- Posso te perguntar uma coisa?
- Claro.
- Porquê você tá sempre evitando falar o que sente? – Ele olhava-me fixamente
- Não estou nada – Eu desviada o olhar numa tentativa de desviar também a conversa.
- ‘Tá sim. Eu te digo que te adoro, que ‘tou apaixonado, que ‘tou feliz e você nem responde.
- David…
- … Você não tem certeza do que tá sentindo, é isso? – Ele interrompeu-me, com uma voz entristecida.
- Se eu não tivesse certezas não estava aqui – Disse-lhe convicta.
- Então porquê você nunca fala? ‘Tá com medo do quê?
- De nada. – Respondi-lhe bruscamente – Outra vez essa conversa do medo?
- Desculpa, mas é que eu não consigo entender.
- Então eu explico-te – o meu desconforto com aquela conversa fazia elevar o meu tom de voz – Eu não tenho que te dizer seja o que for só porque tu também dizes. E eu não preciso de dizer o que sinto. Basta senti-lo. E eu sei perfeitamente o que sinto.
- Mas eu não. – O David começava também a elevar a voz.
- Não? – Perguntei-lhe irritada.
- Não. – Respondeu-me de forma agressiva.
- Não? – Voltei a perguntar ainda mais irritada.
- Já disse que não.
- Ok.

Larguei-lhe a mão abruptamente e comecei a andar em direcção à ponte. A intensidade dos meus passos aumentava à medida que me afastava.

- Onde você vai Kika? – Perguntava-me o David sem sair do sítio. – Volta para cá. Vamo esquecer essa conversa.

Eu continuava determinada, sem lhe responder ou sequer olhar para trás. Ele começou a seguir-me, sem no entanto chegar ao início da ponte.

- Kika. Kika, espera por mim.

Quanto mais eu me afastava, mais alto o David gritava. Eu estava já a meio da ponte, quando parei. Dei meia volta e encarei-o. Ele parou ainda na margem do rio e fixou os olhos em mim. Eu desviei o olhar e avancei em direcção às grades da ponte. Coloquei um pé de cada vez no terceiro ferro horizontal a contar do chão e segurei-me na barra superior.

- KIKA – Gritou-me o David, desesperado.

Eu podia ver o pânico na sua cara. Larguei as mãos lentamente e tentei e, com o olhar fixo no David, encontrar um ponto de equilíbrio. Apesar de estar a tremer de medo, afastei os braços num movimento lento e inspirei profundamente.

- ADORO-TE – Gritei com toda a força que tinha – ADORO-TE, OUVISTE?
- Desce daí sua maluca. – Apesar de furioso, ele não conseguia evitar o sorriso. Começou a caminhar na minha direcção.
- PARIS… EU ESTOU APAIXONADA PELO DAVID LUIZ MOREIRA MARINHO. – Num acto tresloucado eu continuava a gritar bem alto.

As poucas pessoas que ainda permaneciam no parque olhavam para mim estupefactas. Envergonhada, desci cuidadosamente do gradeamento. O David estava já no início da ponte. Assim que os nossos olhares se cruzaram, os nossos corpos iniciaram uma corrida frenética. Mal cheguei perto do David, dei um pulo e atirei-me para o seu colo. Enrolei as pernas à volta da sua cintura, com os braços segurei-me no seu pescoço e beijei-o intensamente. Ele apertava o meu corpo com força contra o seu. Eu afastei os meus lábios e comecei a percorrer-lhe a cara com beijos até chegar à orelha. Passei-lhe com a língua delicadamente no lóbulo e senti o David arrepiar-se de prazer.
- Assim você me deixa louco. – Sussurrou-me ao ouvindo, provocando em mim o mesmo arrepio.
- Eu adoro-te David. Nunca duvides disso.

Ele não me respondeu. Beijou-me simplesmente. Eu voltei a arrepiar-me, mas ambos percebemos que aquele pequeno tremor tinha sido provocado pelo frio que se fazia sentir. Eu deslizei lentamente pelo corpo do David, até ficar de pé. Voltámos a dar as mãos e seguimos até ao hotel.

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Entrámos o mais silenciosamente possível no hall de entrada e dirigimo-nos ao elevador, depois de acenarmos ao recepcionista. Caminhávamos frente-a-frente, sem nos conseguirmos parar de beijar. Como eu estava de costas para o elevador, foi o David quem carregou no botão. Uns segundo depois, o elevador parou por trás de mim e a porta abriu-se. Num movimento veloz, soltei-me do David e, com a minha mão no seu peito, fiz força para não o deixar aproximar.

- Boa noite David, até amanhã. – Disse-lhe com uma cara séria.
- Você não vai me deixar subir? – Ele olhava para mim surpreso e as palavras demoravam a sair da sua boca.
- Não. Eu sou uma senhora. – Tentei manter um ar austero, mas com a sua característica perspicácia o David percebeu que as minhas palavras não espelhavam a minha vontade.
- Tem razão, você é uma senhora – O David aproximou-se serenamente, o que fez com que desarmasse. Deu-me um terno beijo nos lábios e continuou – Uma senhora que ainda há pouco pulou no meu colo e fazendo assim… – aproximou a sua língua da minha orelha e com uma pequena lambidela fez-me estremecer – … me deixou louco. Por isso, cala a boca e entra aí – Com um gesto rápido o David empurrou-me para dentro do elevador.
- Aaahhh – A sorrir, soltei um pequeno guincho que, não fosse o silêncio carregado da madrugada, mal se teria ouvido.
- Shiu – O David segurava-me contra a parede do elevador, à espera que este se fechasse. Eu tentava oferecer resistência.

Assim que a porta se fechou por trás dele, o David pressionou o seu corpo contra o meu. Com uma das mãos segurava-me a cabeça e com a outra puxava uma das minhas pernas, colocando-a à volta do seu corpo. Eu não resisti mais. Abracei-o com força e beijei-o com desejo. Perdemos o controlo das nossas mãos, deixando-as percorrer livremente os nossos corpos. Acometidos pela excitação, esquecemo-nos do quão rápida era aquela viagem até ao terceiro andar. Fomos acordados daquele entusiasmo pelo barulho da porta do elevador a deslizar. Num movimento rápido, recompusemo-nos e preparamo-nos para sair. Mais próximo da porta, o David deu-me a mão e puxou-me. Eu estava já a atravessar a pequena fenda que separava a caixa do elevador do chão do corredor, quando um qualquer instinto me fez parar e olhar para cima. Soltei uma gargalhada sonora, que não consegui evitar. O David olhou para mim estupefacto e tapou-me agilmente a boca com a sua mão quente, evitando o prolongar daquele som que poderia acordar os restantes hóspedes.

- Que foi sua boba?

Sem lhe responder, puxei-o novamente para dentro do elevador e apontei para o canto superior esquerdo.

- Merda! – Sussurrou o David tentando controlar o riso – Como é que a gente esqueceu esse pormenor?

Ríamos os dois perdidamente, mas em surdina, sem conseguir desviar o olhar da câmara de vigilância.

Já com o riso controlado e depois de uma troca de olhares cúmplice, saímos do elevador e abrimos a porta do quarto 23 do hotel. Apesar do desejo que nos consumia, não sabíamos o que aquela noite nos reservava, mas tínhamos a certeza de que queríamos desfrutá-la juntos.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Capítulo 28 - Apaixonada em Paris


O dia em Paris estava iluminado pelo brilho do sol morno típico de Fevereiro. Nós seguíamos no carro conduzido pelo Paulo que, num gesto simpático, nos tinha ido buscar ao aeroporto. A Raquel, sentada no banco traseiro, falava ao telefone com o Ruben, pedindo-lhe pela milésima vez que não estragasse a surpresa. Eu seguia na frente, junto ao Paulo que, sorridente, me ia dizendo que, embora tivesse tentado, não tinha conseguido quartos no mesmo hotel da equipa, que também já tinha os bilhetes para o jogo e que já sabia onde nos ia levar durante as três horas que ainda faltavam para o início da partida.

Algum tempo depois estávamos em frente ao hotel onde ficaríamos alojadas. Um pequeno edifício de tons claros, com uma entrada discreta que quase não deixava perceber a atribuição de quatro estrelas, situado no centro de Paris, perto do Grande Palácio e também do Rio Sena. O Paulo, num acto de cavalheirismo, tirou as malas das bagageiras e levou-as até à recepção. Nós seguimo-lo atentamente. Num francês perfeito, o nosso amigo fez o check-in e depois de nos traduzir as indicações para os quartos, encostou-se no balcão à nossa espera. Eu e a Raquel entramos no elevador e subimos ao terceiro piso. Entrámos cada uma no respectivo quarto e combinámos encontrar-nos quinze minutos depois, junto à porta do elevador.

A escolha que o Paulo tinha feito para mim revelava o seu cuidado com os pormenores, a começar pelo número da porta: o 23. No interior, a primeira imagem que os meus olhos alcançaram foi a de uma secretária, de madeira clara como os restantes móveis, decorada com um enorme candeeiro branco e uma jarra transparente com duas rosas também elas brancas. Percorri o pequeno corredor e encontrei um quarto pintado em tons pérola, iluminado pelos raios de sol que trespassavam os cortinados, pendurados no varão da enorme janela, e reflectiam na cama, de grande dimensões. Fiquei durante alguns minutos só a contemplar a decoração. As cores daquele quarto estavam em sintonia com o meu estado de espírito. Depois de um profundo suspiro de tranquilidade, pousei a mala a um canto, tirei de lá o meu casaco de pêlo preto, já a pensar no frio da noite, e enviei uma mensagem à Si. Dei uns passos até à janela e deixei-me encantar com a vista sobre aquela fantástica cidade. Podia ver os sumptuosos edifícios repletos de pormenores arquitectónicos, os barcos de passeio no Rio Sena e, do lado esquerdo ao fundo, a imponente Torre Eiffel. “O cenário ideal para vislumbrarmos amanhã de manhã, caracolinhos”. Sorri com o meu próprio pensamento, abri a janela e respirei o ar parisiense, antes de sair para, juntamente com a Raquel, ir ter com o Paulo, que nos esperava pacientemente.

- Estão prontas, minhas senhoras? – Perguntava-nos sorridente.
- Com certeza – Respondi-lhe. – Então e para onde vamos?
- Passear – Respondeu-me o Paulo, saindo do hotel – Têm tudo o que precisam até logo à noite?
- Sim – respondemos em uníssono.
- Ok, então depois seguimos directos para o estádio.
- Mas ainda não disseste onde vamos agora? – Perguntei-lhe já impaciente.
- É surpresa.
- Olha, eu cá agradecia que me levasses a comer qualquer coisa. Estou a morrer de fome. – Dizia a Raquel num tom reivindicativo.
- Oui, oui, mademoiselle.

Entrámos no carro sorridentes e seguimos naquela viagem, ainda em direcção ao desconhecido. Eu e a Raquel olhávamos encantadas pelos vidros do carro. Embora não fosse a primeira vez de ambas em Paris, a magnificência daquela cidade não nos era indiferente. Depressa chegámos ao destino: a Torre Eiffel.

- Bem, meninas, tal como prometido, os bilhetes para subirem à Torre. – Dizia-nos o Paulo ainda no interior do carro, esticando-nos a mão onde segurava dois bilhetes.

Não evitámos soltar uma gargalhada conjunta.

- Tu compraste mesmo os bilhetes, Paulinho? Pensei que estivesses a gozar.
- Também eu pensei que estavas a gozar e olha… – fez uma pausa para nos sorrir e apontar para a Torre – … aqui estão vocês prontinhas para subir ao ex-libris de Paris.
- E porque é que eu só vejo dois bilhetes? – Perguntava a Raquel que entretanto se tinha pendurado entre os dois bancos dianteiros.
- Eu não vou. Tenho vertigens. – Informava o Paulo, envergonhado.
- Oh, anda lá. Fechas os olhos e nós guiamos-te até lá cima. – Disse-lhe a sorrir.
- Não, a sério, não consigo. Já tentei e não consegui. Vão vocês.
- E tu ficas aqui sozinho a fazer o quê?
- A tratar de uns assuntos. E aproveito e vou comprar qualquer coisa para comermos.
- Mas assim não tem piada Paulo.
- Tem sim dona Amorim – respondia-lhe ele em tom de brincadeira – Agora vão lá que daqui parece que está lá muita gente e o tempo passa a correr.
- Ok, Paulinho.

Saímos do carro e caminhámos juntas em direcção àquele amontoado de ferro do século XIX (19) com 324 metros de altura. A cada passo que dávamos, a estrutura parecia aumentar em tamanho e em sumptuosidade. Após uma longa desesperante espera de meia hora na fila, iniciámos a subida. Optámos por fazer o primeiro nível de elevador, o segundo de escadas e daí até ao topo de novo de elevador. Parámos em cada um dos níveis para apreciar a paisagem, mas foi no cimo da torre que permanecemos mais tempo. Estávamos entorpecidas com tamanha beleza. “Sinto que podemos ver daqui o mundo inteiro”, desabafei de olhar perdido no horizonte que parecia infindável. O céu azulado e a terra pintada pelos tons brancos dos edifícios tocavam-se numa simbiose quase perfeita. O vento frio fazia esvoaçar algumas madeixas do meu cabelo, que eu ia desviando da frente dos olhos para não perder de vista aquela cenário deslumbrante. Para guardar todos os pormenores que pudessem escapar às nossas retinas, eu e a Raquel fotografávamos incessantemente. De cada vez que as máquinas disparavam eu lembrava-me da minha amiga Sílvia. Senti uma tristeza apoderar-se de mim.

- Gostava tanto que a Si aqui estivesse. Parece que falta um bocadinho de mim – Balbuciava, revendo as fotos já tiradas.
- Imagino que sim. A vossa amizade é tão linda! – A Raquel fitava-me com o seu olhar sincero – É tão estranho não vos ter às duas no mesmo sítio.
- Sim, é – voltei a preparar a máquina para disparar – Mas agora somos três – Puxei a Raquel para junto de mim e abracei-a – E se te convidei para vires comigo é porque gosto muito de ti, menina Amorim. Só que gostava que estivéssemos aqui as três.
- Oh… eu também gosto muito de ti. Aliás, de vocês. E também sinto a falta da Si. – A Raquel deu-me um beijo na bochecha.
- Somos mesmo seis magníficos, não somos?
- Se somos, Kika, se somos. Ligados pela amizade e pelo amor. – Ela falava num tom trocista e fazia-me uma careta.
- Não te estiques, Raquelinha. Calma, eu preciso de muita calma.
- Eu sei amiga. Estava só a brincar. Leva o tempo que precisares, só não deixes fugir o David. Ele é uma pessoa extraordinária.
- Eu sei, querida. Vamos?

Num instante demos a volta ao varandim, onde encontrámos várias garrafas de champagne vazias espalhadas pelo chão. “Consequência dos inúmeros pedidos de casamento que por aqui se fazem”, dizia-nos uma senhora brasileira, ao ouvir-nos questionar a presença de tais objectos. No mesmo momento e quase que comprovando as palavras daquela desconhecida, um jovem inglês ajoelhava-se à nossa frente, de anel na mão, e fazia a pergunta que a maioria das mulheres quer ouvir: “Do you marry me?”. A resposta positiva da namorada fez-se ouvir por entre lágrimas e soluços. De forma quase irreflectida, eu e a Raquel fotografámos o momento. Um acto que, ao contrário do que imaginámos assim que nos demos conta de que poderíamos ter invadido a vida íntima alheia, foi bem aceite pelo casal que nos deu o seu e-mail para que lhes enviássemos as fotos. Antes de descermos, voltou a olhar a cidade, respirei o ar romântico que inundava a atmosfera e sem grande esforço pensei no David. Fui invadida por uma ansiedade que me fez tremer. O nervosismo voltou a apoderar-se de mim e nem a Raquel lhe ficou indiferente.

- Calma, amiga, já falta pouquinho para estares com o David.

Fizemos o percurso de descida com os olhos humedecidos pela emoção contagiante do acto de amor que tínhamos presenciado.
O Paulo aguardava-nos, no interior do carro, com três baguettes de atum e três sumos. Comemos, sentados num banco próximo do carro, e seguimos para o estádio.

Voltava a sentir-me deslumbrada, desta vez com o majestoso estádio Parque dos Príncipes, a “casa” do Paris Saint-Germain. Uma enorme estrutura oval iluminada pelos reflectores brancos. O Paulo seguiu pela entrada VIP, mostrando a sua identificação e os nossos bilhetes ao segurança. Depois de estacionarmos o carro e acedermos ao interior do estádio pelo elevador, percorremos um longo corredor e parámos em frente a uma porta onde se podia ler a palavra “cabines”. Percebi, então, para onde eram os bilhetes que o Paulo nos tinha arranjado.

- Olha lá, isto são camarotes? – Perguntei-lhe com algum desdém.
- Claro. – Respondeu-me com firmeza – Achavas que te ia mandar para as bancadas?
- Óbvio. Até parece que não me conheces Paulo. Sabes como eu odeio estas paneleirices.
- Chiça, uma pessoa a tentar pôr-te confortável e tu reclamas, Ana.
- Vamos estar sozinhas, ao menos?
- Não. Esse é o local destinado aos familiares dos jogadores…
- … Nan, nan, nan, nan, nan – interrompi-o, abanando o dedo indicador – Eu não vou para aí. Nem pensar, Paulinho. Muito obrigada, mas não.
- Porquê? – Perguntava a Raquel admirada. – Eu já conheço algumas pessoas Kika e garanto-te que o ambiente costuma ser bom.
- Pois, mas eu não quero cá essas misturas. Eu não sou familiar de ninguém que jogue no Benfica. Eu prefiro ir para as bancadas, se não te importares.
- Por mim tudo bem, mas será que nos deixam?

Olhámos para o Paulo, pedindo com o olhar que ele encontrasse uma solução para aquele pequeno problema. Ainda que aborrecido, ele fez-nos sinal para o seguirmos e pediu ao segurança que nos deixasse passar.

- Ok, meninas esquisitas e mal agradecidas – usava um tom irritado, enquanto falava connosco – podem sentar-se numa dessas cadeirinhas geladas ao relento, mas se aparecer o dono do lugar, têm de sair.
- Sem problema, Paulinho – disse-lhe a sorrir – tu sabes que até sentada nas escadas ou no chão eu vejo a bola.
- Então vão lá. No final do jogo esperem aqui por mim.
- Certíssimo Doutor Paulo Leitão.

Sorri e dei um beijo repenicado ao Paulo, puxei a Raquel por um braço e entrei nas bancadas. Fui acometida por uma panóplia de emoções. O deslumbramento provocado pela beleza do estádio e pelos cânticos ensurdecedores das claques já instaladas misturava-se com a ansiedade e o nervosismo de estar a ver o David. As equipas faziam o aquecimento no relvado e num ápice os meus olhos encontraram os caracóis esvoaçantes do camisola 23 do Benfica. Um sorriso rasgado invadia-me o rosto e o coração batia demasiadamente acelerado. Fui acordada daquele extâse, pelo flash da máquina da Raquel, que olhava para mim com o seu jeito encantador e sorriso magnífico nos lábios. A minha amiga pousou a máquina e tirou de dentro da sua carteira, um cachecol e uma camisola do Benfica, obviamente com o número cinco e o nome do namorado. Fitou com um olhar semi-cerrado e não resistiu a provocar-me.

- Olha a camisola é muito pessoal, mas se quiseres posso emprestar-te o cachecol.
- Ah, ah, ah menina Amorim, estamos com umas piadinhas. Nunca na minha vida vou pôr isso ao pescoço, ouviste? Nunca – Dizia-lhe com um ar convincente.
- Não me digas que vieste apoiar o PSG?
- Não, claro que não. Vim apoiar o David e, ok, vou apoiar o teu Benfica, hoje e só hoje, mas nada de cachecóis.
- Ok, não se fala mais no assunto. Olha, vão entrar as equipas.

Sentei-me ao lado da Raquel e fomos absorvidas pelo som estonteante dos aplausos e assobios. O Estádio estava quase lotado, na sua maioria por adeptos do Paris Saint-germain, mas também por muitos apoiantes benfiquistas. Nós estávamos na bancada central e, por isso, em nosso redor praticamente só havia franceses. O que nunca nos inibiu de aplaudirmos as jogadas do Benfica e de vaiarmos as entradas faltosas da equipa da casa. Apesar do meu amor ao Sporting ser intocável, naqueles noventa minutos deixei-me contagiar pela Raquel e senti os nervos a apoderarem-se de mim. Insultei o árbitro e os jogadores do PSG, roí as unhas, puxava pelos jogadores do Benfica cada vez que eles esmoreciam e batia palmas entusiasticamente de cada vez que eles criavam situações de golo. O maldito golo que, aos oitenta e cinco minutos, teimava em não aparecer. A Raquel estava cada vez mais desesperada e eu podia confirmar isso só de olhar para ela. O golo chegou finalmente, dois minutos depois, dos pés de Pablo Aimar que num remate magistral de fora da área levou a Raquel e os cerca de cinco mil benfiquistas presentes no estádio ao delírio. A minha amiga abraçava-me com força e eu, deliciada com a felicidade do David, retribuía-lhe com um sorriso rasgado. Até ao apito final foram minutos de sofrimento para a Raquel, que já não conseguia estar sentada, e para os adeptos do PSG, que protestavam contra a euforia dela. Aquela discussão que depressa passou à troca de palavrões, em português e francês, só terminou com a festa do SLB, que marcava o fim do jogo. A Raquel voltou a envolver-me num abraço forte e a junção dos nossos corpos permitiu-lhe perceber o estado incontrolável de nervos em que eu me encontrava.

- Estás a tremer, Kika.
- Estou tão nervosa Raquel.

Conversávamos sem desviarmos o olhar do relvado. Os jogadores estavam a agradecer ao público. Por trás de nós, o silêncio já imperava. Com uma rapidez incrível, a bancada tinha ficado vazia.

- Acredito amiga – Dizia-me a Raquel enquanto me segurava na mão – Mas agora é melhor sairmos antes que eles nos vejam.
- O Ruben já te viu – respondi-lhe a sorrir, fazendo sinal com a cabeça para que ela voltasse a olhar para o relvado, onde o Ruben quase nos estragava a surpresa.

Ela virou-se num ápice e eu consegui descobrir o amor que os une só por aquela troca de olhares intensa. O Ruben caminhava para o túnel de acesso aos balneários. O David continuava no centro do relvado, agachado, a olhar em seu redor. Tentei decifrar, sem sucesso, aquele seu comportamento enigmático. Ficámos alguns minutos ainda a presenciá-lo, em silêncio. Todos os outros jogadores já tinham abandonado o campo, os poucos adeptos que restavam iam saindo apressadamente por entre cânticos de alegria e, na entrada do túnel, a equipa de arbitragem esperava o David.

- Vamos Kika? O Paulo deve estar à nossa espera.
- Vamos – respondi-lhe sem a mínima convicção.

Por momentos senti uma vontade louca de correr até ao centro do relvado e beijar o David. Sabia que o Paulo tinha providenciado tudo para que nos encontrássemos ainda no interior do estádio, mas aquela espera estava a tornar-se sufocante. Subíamos os degraus lentamente. A cada passo em frente que dava movida pelo meu cérebro, o meu coração pedia-me que recuasse. Estava já nos últimos degraus antes de atingir a porta de saída das bancadas, quando um instinto se apoderou de mim. Não resisti a olhar para trás. O David caminhava lentamente, com os olhos fixos na equipa de arbitragem. As luzes do estádio realçavam-lhe os traços do rosto e aumentavam o brilho do seu sorriso. Apesar de se mover cabisbaixo, podia encontrar nos seus olhos a felicidade provocada pela conquista.
Comecei a descer as escadas lentamente, sem pensar minimamente nas consequências. Naquele momento, a voz do meu coração abafada as ordens da razão, e o desejo de estar com o David olhos nos olhos era incontrolável. Vendo-o aproximar-se cada vez mais do túnel, acelerei a passada.

- David – gritei com a voz carregada de entusiasmo.

Num gesto veloz, os olhos dele encontraram os meus. Sentia o coração a bater descompassadamente e o corpo a tremer de forma descontrolada. Os olhos começaram a humedecer-se. O David olhava para mim atónito e caminhava na minha direcção. Quanto mais ele se aproximava, maior era a vontade que eu tinha de o beijar. Caminhei lentamente até ao varão que separava a bancada do relvado.

- Meu Deus – A sua voz tinha um som trémulo – O que é que você tá fazendo aqui? – Perguntava-me de olhos esbugalhados.
- Vim pedir-te a camisola – Sorri, envergonhada.

Aquele desejo ardente que já tínhamos sentido antes voltava agora a tomar conta de nós. Tudo à nossa volta tinha desaparecido. Naquele momento éramos só nós e a nossa paixão.

- Você é louca garota! – O David trincava o lábio, abanava a cabeça suavemente e olhava em seu redor, de sorriso rasgado.

Segurei-lhe a cabeça com a mão direita, olhei-o profundamente e sorri-lhe.

- Sou louca por ti – Estremeci ao proferir aquelas palavras que me tinham saído do fundo do coração – Agora, despe lá a camisola e despacha-te que eu estou à tua espera lá dentro.

Com um movimento rápido, o David despiu a camisola, entregou-ma e piscou-me o olho, com um sorriso malandro.

- Tou louco p’ra te beijar.
- Também eu. Por isso não me faças esperar muito.

Ele saiu a correr em direcção ao túnel. Eu respirei fundo, encostei a camisola do David contra o peito e subi as escadas a correr, voltando para junto da Raquel. Senti de novo o bailado de borboletas dentro de mim e tive a certeza de que queria levar aquela paixão até aos limites.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Capítulo 27 - Vem para cá


Estava apaixonada e feliz. Ter assumido o que sentia pelo David, dizer-lho olhos nos olhos, permitia-me virar uma página do livro da minha vida. Queria esquecer definitivamente as agruras do passado, lembrar tão e somente o que era bom de lembrar. Mas desejava, acima de tudo, descobrir novos trilhos, conhecer outras sensações, encontrar diferentes formas de exteriorizar sentimentos, embarcar nas mais diversas viagens da paixão.
A leveza provocada pelo estado de êxtase em que me encontrava permitiu-me saborear, de forma nunca antes feita, aquela viagem até à empresa. Pela primeira vez desde que tinha deixado Coimbra, uma segunda-feira era um dia afável. O trânsito não me enervou naquela manhã, as pessoas pareciam-me mais simpáticas, o frio arrepiante de Fevereiro não me aborreceu, o sol brilhou com mais intensidade, a paisagem tornou-se muito mais agradável. Até a chegada à empresa se tornou num momento mais ternurento. Perante o meu sorriso, o Sr. António, encostado ao balcão, não se coibiu de tentar adivinhar a razão para tamanha felicidade.

- Que alegria a sua, menina, aposto que são as artimanhas do amor.
- Aposta ganha, Sr. António. – Pisquei-lhe o olho, sorri e subi as escadas a correr sem prolongar o assunto.

Entrei no meu gabinete, sentei-me e abri, como habitual, as páginas dos vários jornais. Todas tinham uma notícia em comum: a presença da equipa do Benfica em Paris para o jogo da Liga dos Campeões. Lembrar-me do David tornou-se inevitável. Recordei, de sorriso na cara, o momento da noite anterior. Respirei fundo. Deixei que aquele beijo e as palavras que tinha proferido enchessem de cor o meu local de trabalho. Estava em paz comigo mesma. Olhei para a foto do David que ilustrava uma das notícias e fui invadida por uma enorme saudade.
Estava perdida em pensamentos quando fui interrompida pelas leves pancadas na porta do meu gabinete. Dei ordem para que quem estava do outro lado entrasse.

- Bom dia Ana.
- Bom dia Doutor. Precisa de alguma coisa?
- Já tenho os números e o balanço da participação da empresa na feira, quero que faça uma notícia e envie para a imprensa e que actualize o site, claro. – Disse-me enquanto pousava um monte de papéis na minha secretária.
- Com certeza. Estava só à espera dos documentos. – Sorri-lhe.
- Muito bem, então se precisar de alguma coisa estou no meu gabinete.
- Obrigada.

O Doutor Gonçalves olhou para mim de uma forma misteriosa e dirigiu-se à porta. Antes de sair, ainda se voltou para mim.

- Está enamorada Ana?

Fiquei momentaneamente sem reacção àquela pergunta. Era demasiado estranho para mim estar a falar da minha vida pessoal com o meu patrão.

- Porque pergunta Doutor?
- Ora, minha cara, eu também já tive esse brilho nos olhos e esse sorriso na cara. E para além disso tenho filhos da sua idade.

Sorri envergonhadamente. Estava ainda mais constrangida com aquela afirmação do Dr. Gonçalves. Ele saiu sem mais conversa e eu deixei-me escorregar pela cadeira. Se por um lado me encantava aquele lado humano do meu patrão, por outro intimidava-me a sua perspicácia.

Peguei nos documentos que ele me tinha deixado e comecei a preparar o comunicado. As palavras saíam-me com mais fluência, as ideias surgiam de forma rápida na minha cabeça, a clareza dos meus pensamentos rentabilizava o trabalho. Apesar de a escrita me estar a correr bem, fiz, como habitualmente, uma pausa a meio da manhã para o café com o João e a Matilde.

Quando entrei na sala de convívio, já os meus colegas estavam à minha espera. Entrei sorridente e reparei na atenção que o João prestava à televisão. Virei a cabeça e vi o David. Estava elegante no seu fato preto e gravata vermelha. Percebi de imediato que se tratavam de imagens da comitiva benfiquista, no aeroporto de Lisboa, a embarcar rumo a Paris. Mantive-me em silêncio, quer para permitir que o João, benfiquista ferrenho, se inteirasse do que o jornalista dizia, quer para aproveitar deliciar-me com cada traço do David.
Assim que a reportagem acabou, a Matilde tirou os cafés e saímos os três para o exterior, de chávena numa mão e cigarro na outra.
De regresso ao gabinete, tentei concentrar-me de novo naquela papelada imensa. Mas a concentração parecia, então, mais difícil de alcançar. Não conseguia abstrair-me da imagem do David e sentia, a cada minuto que passava, aumentar a saudade que sentia dele. Ainda assim, e por entre muito esforço, consegui acabar as tarefas que me tinham sido incutidas.

*********************

A segunda-feira passou lentamente. Fui-me apercebendo ao longo do dia a falta que o David me estava a fazer. Senti mais profundamente as marcas dessa carência quando, já de noite e no meu quarto, me encostei ao parapeito da minha janela e voltei a não encontrar um brilho especial no prédio ao fundo. A persiana corrida da janela do quarto do David lembrava-me da sua ausência, mas não me entristecia… pelo contrário. Ao olhá-lo, aquele rectângulo recordava-me dos momentos maravilhosos que tinha já dividido com o David e dava-me confiança num futuro risonho. A lua e as estrelas iluminavam o céu, àquela hora vestido de negro, e um generoso reflexo invadia o meu quarto e trazia até mim toda a força do Universo. Eu olhei o horizonte e por instantes pude vislumbrar o sorriso do David desenhado por entre aquele sem fim de constelações.

Despertei daquela hipnose, com o toque do meu telemóvel.

So I won't hesitate no more, no more; It cannot wait I'm sure
There's no need to complicate, our time is short; This is our fate, I'm yours

- Olá, caracolinhos, tudo bem? – Nem com a maior vontade do mundo seria capaz de disfarçar aquela voz de felicidade.
- Oi, lagartixa, tudo óptimo. E você como está?
- Bem. – Tinha tanta coisa para dizer ao David e não conseguia proferir uma única palavra. Era como se a emoção de ouvir a sua voz me roubasse o som dos sentimentos, apenas expressos pelo olhar.

Do outro lado da linha, o David mantinha-se igualmente calado. Pelo compasso da sua respiração podia imaginá-lo de sorriso tímido mas rasgado. Durante uns bons segundos, permanecemos assim. Até que eu resolvi interromper o momento.

- Estava aqui a olhar para a tua janela.
- É bonita, não é? – Perguntava-me em jeito de brincadeira.
- Hum… hoje nem por isso.– Sorria docemente sem conseguir desviar o olhar daquele sítio que durante algum tempo foi tão misterioso.
- Talvez quarta-feira melhore.
- Vai melhorar com certeza… – fiz uma breve pausa – … quando o Gu a abrir para preparar a tua chegada – Soltei uma gargalhada.
- Você é ruim, hein Kika? E aí esteve com esse babaca hoje?
- Não. A Si convidou-me para ir com ela lá jantar mas eu não quis. Acho que eles estavam mesmo a precisar deste momento a dois. Como tu não estás, eles têm a casa só para eles.
- Fez bem. Sabe que eu ‘tava pensando? – O entusiasmo na voz do David nem o deixou esperar pela minha resposta. – Convidar você para jantar lá em casa na quarta-feira… (pausa) … e expulsar o Gustavo. Sei lá, mandar ele para sua casa.
- Bolas! E eu é que sou ruim? – Riamo-nos descontroladamente. – Coitado do Gu.
- Isso é um não?
- Não. – Continuava a sorrir – Eu aceito o convite para jantar e até me parece fácil convencer o Gustavo a vir cá para casa.
- Concordo – O David suspirou profundamente. – E assim podemos ficar só nós dois.
- Sim, parece-me uma óptima ideia. Ficar só contigo. Sabes… – O meu coração palpitava a um ritmo cada vez mais intenso – estou cheia…
- De saudades minhas? – O David interrompeu-me – Eu também ‘tou morrendo de saudades tuas.

Sorrimos e o silêncio voltou a intrometer-se na nossa conversa. Enquanto escutava a respiração do David, baixei o olhar lentamente e contraí-me, com a plena sensação de que tinha o meu corpo envolto pelo seu abraço.

- Bolas! Tenho cá uma pontaria. – Soltei, quase em surdina.
- Por quê tá dizendo isso?
- Oh… com todas as oportunidades que tive para te dizer que te adoro tinha logo de escolher a véspera de uma viagem. Ia saber-me tão bem ter ficado a conversar contigo.
- Sabe o que ia me saber bem agora? – Eu já conhecia aquele tom de provocação.
- O quê David?
- Um beijo teu.
- Oh caracolinhos… – Sorri e recordei o toque quente dos seus lábios– E eu? O que eu faria por um beijo teu!
- O que é que você faria? – A provocação voltava a caracterizar as palavras do David.
- Tudo o que possas imaginar – Respondi-lhe no mesmo tom tentador.
- Vem para cá!

Aquele apelo do David deixou-me sem resposta durante uns bons segundos. Encostei a cabeça ao vidro gelado e deixei-me contagiar por uma interminável vontade de correr para os seus braços. Mas, ao olhar para a janela fechada do quarto do David, despertei novamente para a dura realidade dos cerca de dois mil quilómetros que nos separavam.

- David…tem juízo! Sabes perfeitamente que isso é impossível!
- Porquê?
- Como porquê? Olha, porque sim.
- Ah, assim fico mais esclarecido! – Respondeu-me com desdém.
- Oh, não me irrites.

Após um breve momento de silêncio, o David soltou uma gargalhada.

- Pôxa, Kika, tava brincando né?
- Ai estavas “brincando”? – Carreguei no sotaque brasileiro – E não sabes que não se brinca com assuntos sérios?

O David ria ainda com mais satisfação.

- Pô, tava só com saudade de ouvir você irritada.
- Ai estavas? – Não contive o sorriso – Parvinho!
- Tou até imaginando a sua cara – O David tentava controlar o sorriso – Agora falando sério, vou ter de desligar. ‘Tá ficando na minha hora.
- Ok. Vai lá de descansar que amanhã tens de estar em grande forma.
- Tenho mesmo. Você fica bem?
- Fico, claro. E tu?
- Vou ficar pensando em você!

A doçura com que o David proferiu aquelas palavras acalmou-me o coração, atordoado já pela eminente despedida.

- Eu também vou ficar a pensar em ti. Dorme bem. – As palavras saiam agora a custo, mais lentas e prolongadas.
- A gente se vê quarta-feira. – Notava na voz do David um leve toque de tristeza.
- Quarta não. Amanhã!
- Amanhã? Como assim? – O entusiasmo voltava a moldar o timbre do David.
- Na televisão. Não perco esse jogo por nada. – Respondi-lhe a sorrir.
- Claro. – A expressão do David estava de novo entristecida – Dorme bem, lagartixa. Beijo grande.
- Beijinho David. Até amanhã!

Desliguei a chamada e fui pousar o telemóvel em cima da mesinha de cabeceira. Vesti o pijama e deitei-me com a sensação de que tinha feito ou dito algo de errado. Um sentimento estranho que eu não conseguia explicar a mim própria. Fechei os olhos e tentei adormecer. Inevitavelmente, toda a conversa com o David inundava os meus pensamentos. De repente, percebi o que me inquietava. “Até amanhã? Eu disse até amanhã?”. Sorri. Ainda que a roçar o irrealizável, aquela ideia de “até amanhã” agradava-me.


****************************


Um novo dia, a mesma rotina, um semelhante estado de espírito. Naquela terça-feira, as saudades do David consumiam-me com uma intensidade estonteante. As suas palavras não me saíam da cabeça. Fiz o caminho de casa até à empresa guiada por aquele apelo: “vem para cá”.

Já no meu gabinete, permanecia pasmada em frente ao computador. No ecrã, uma imagem do David, e no pensamento, as suas palavras, de novo. Fui atacada por um tremendo estado de ansiedade. Quanto mais me tentava convencer de quão mirabolante era a ideia de me meter num avião e viajar para Paris, mais essa loucura ganhava forma no meu pensamento. Fui encontrando, de forma intuitiva e quase insensata, várias maneiras de contornar todas as barreiras que me separavam do David, ao longo daqueles dois mil quilómetros. A cada minuto que passava ia delineando uma nova estratégia que viabilizasse aquela viagem. Os dentes roçavam de forma audível, os dedos não paravam de tiritar na secretária, os pés batiam descompassadamente. E de cada vez que fechava os olhos tentando fazer valer, na balança da indecisão, o peso da racionalidade, era brindada com o sorriso encantador do David e de novo aquela loucura ganhava forma.  

Levantei-me, movida por uma coragem irracional, e dirigi-me ao gabinete do Dr. Gonçalves. Dei três leves pancadas na porta e aguardei pela ordem para entrar. O meu coração batia descontroladamente e os nervos faziam tremer cada milímetro do meu corpo. Entrei, com a voz embargada, mas confiante na sensibilidade do meu patrão.

- Bom dia Doutor. Podemos conversar? – Perguntei um pouco receosa.
- Claro. Sente-se – respondia o Dr. Gonçalves, apontando para a cadeira em frente a si. – Então?
- Bem Doutor – Tentava controlar a secura na voz provocada por aquele estado de ânsia – Eu queria pedir-lhe um favor.

O Dr. Gonçalves levantou-se, abriu a janela por trás de si e acendeu um cigarro. Eu olhava, com cobiça, para aquele acto que me apetecia repetir. O meu patrão fazia sinal com a cabeça para continuar.

- Então, eu precisava de tirar dois dias de férias… (pausa) … se possível, claro.
- Ora, cara Ana, mas para isso não precisava de vir até aqui. Bastava comunicar os dias à Salomé e enviar-me um e-mail. Se tem dias de férias, acho bem que usufrua deles.
- Pois, mas é que… – inevitavelmente, as minhas mãos começaram a tremer e os meus dentes davam pequenas trincas no interior dos lábios. O Dr. Gonçalves olhava-me, aguardando que eu continuasse – … Sabe, Doutor, eu precisava de gozar estes dois dias de férias… – voltei a fazer nova pausa para controlar a voz trémula – hoje e amanhã.

O meu patrão olhava-me com surpresa. Uma nuvem de fumo voou da sua boca e o cigarro foi apagado. Eu sentia cada vez mais dificuldade em controlar o estado de nervos em que me encontrava.

- Pois bem, Ana, se precisa… – Ele estava de novo sentado na sua poltrona – Mas passa-se alguma que eu deva saber? Posso ajudar em alguma coisa?

A indecisão voltou a tomar conta de mim. O motivo a apresentar para faltar ao trabalho podia não parecia plausível aos olhos do meu patrão, mas a mentira era uma alternativa que estava fora dos meus planos.

- Eu preciso de me ausentar do país, Doutor. Tenho mesmo de fazer uma “viagem-relâmpago” a Paris. – Assim que terminei de falar, respirei fundo e deixei que uma sensação de alívio me percorresse o corpo.
- Paris? Não me diga que vai ver o Benfica? – Perguntava o Dr. Gonçalves divertido.
- Bem, na verdade…

O meu patrão nem me deixou terminar a frase. Soltou de imediato uma gargalhada audível em todo o edifício.

- A sério? – Uma expressão de surpresa inundava-lhe o rosto – Pensei que a Ana fosse sportinguista e que essa sua característica fosse irreversível.
- E é, doutor, mas…
- Ah, compreendo. Vai ver o jogo do Benfica, mas esse não é o objectivo principal da sua viagem, estou certo?

Aquela sinceridade e perspicácia do meu patrão assustavam-me.

- Está certíssimo, doutor. E eu peço desculpa pela ousadia, mas de facto esta viagem é muito importante.
- Quem é o felizardo? – O Dr. Gonçalves sorria e elevava o olhar numa expressão de adivinha. Depois fitou-me com os seus olhos arregalados – Não me diga que é você a namorada do pequeno Ruben?
- Não, claro que não – Respondi-lhe, num tom firme.
- Muito bem, Ana. Então, estamos conversados. Faça boa viagem e desfrute da beleza de Paris. A que horas tem voo?
- Ainda não marquei a viagem. Tinha de falar consigo primeiro, obviamente.
- Muito bem, então não se preocupe que eu faço a reserva. Afinal, se temos uma parceria com a TAP é bom que a usemos. Não quero esses fulanos a encherem os bolsos às minhas custas. Envie-me um e-mail com os seus dados pessoais.
- Eu agradeço, Doutor, mas eu não vou sozinha, vou com a minha amiga Raquel – fiz uma breve pausa e sorri – a namorada do Ruben.
- Não há problema, minha cara, eu depois acerto contas com o velho Amorim.

O Dr. Gonçalves sorria, divertido, enquanto me mandava tratar das informações com urgência. Eu, ainda atónica com a compreensão e generosidade do meu patrão, corri para o meu gabinete. Estava com um sorriso de orelha a orelha e transbordava felicidade por todos os poros quando peguei no telemóvel e liguei à Raquel.

- “Olá Kika, tudo bem?”
- Bonjour mademoiselle. Ça vá?
- “Bom dia também para ti. Tens a certeza que estás bem?” – A Raquel sorria enquanto falava.
- Estou óptima, mas preciso de ter uma conversa muito séria contigo. Estás em casa?
- “Sim, estou. Porquê?”
- Tens o computador ligado?
- “Sim Kika. Mas importas-te de me dizer o que se passa?”
- Então tens dois minutos para me mandar um e-mail com os teus dados pessoais e mais meia hora para fazer as malas. Vamos viajar.
- “Vamos?” – A Raquel mostrava um tom confuso na voz.
- Sim, vamos, Sra. Amorim. E leva agasalhos que parece que a noite em Paris é muito fria.
- “Paris? Tu não estás bem da cabeça, pois não Kika?”
- Já te disse que estou óptima. Agora manda-me lá isso que o meu patrão está à espera.
- “O teu patrão?” – A Raquel gritava de forma estridente – “O que é que o teu patrão tem a ver com o assunto?”
- Pensa Raquel, pensa. Eu não podia ir para Paris sem avisar o Dr. Gonçalves. E ele como é um querido ofereceu-se para nos reservar as viagens. A empresa tem um protocolo qualquer com a TAP que eu não percebi, mas também não quero. Já estás a mandar o e-mail?
- “Estás a falar a sério, Kika?” – A voz da Raquel era agora definida por um misto de entusiasmo e surpresa.
- Nunca falei tão a sério. Daqui a meia hora estou em tua casa.
- E como é que vamos para o aeroporto? E onde é que vamos dormir esta noite? E bilhetes para o jogo?
- Calma. Não te preocupes que eu trato de tudo. Até já. Beijinho.

Sem esperar para ouvir a resposta da Raquel, desliguei e sentei-me em frente ao computador à espera do seu e-mail.

******************************

O aeroporto estava num reboliço naquele início de tarde. Lá dentro, um amontoado de pessoas e de malas provocavam o caos na zona das partidas, com as filas para o chek-in a formarem um labirinto disforme e desordenado e as conversas multi-linguísticas a comporem uma harmonia tão estridente quanto admirável. Cá fora, o pára e arranca dos carros, táxis e autocarros e a correria louca de quem deles saía eram toldados por uma carga de tensão descomunal. E no meio daquela confusão, eu e a Raquel bebíamos, sentadas numa esplanada, um café enquanto fumávamos o último cigarro antes da chamada para o embarque. Dividíamos sorrisos e expressões de ansiedade, enquanto o nosso entusiasmo ia crescendo com o aproximar da hora do voo. Caminhámos, excitadas e confiantes, para a porta de embarque. Atravessávamos o último corredor, quando um pensamento veloz me assaltou. Olhei para a Raquel, em pânico.

- Bolas, ainda não liguei ao Paulo. – Desacelerei o passo, enquanto procurava freneticamente o telemóvel na carteira.
- Ai Kika, e se ele não atender? – A Raquel estava ainda mais apavorada que eu.
- Mato-o. – Respondi-lhe convicta.

A palavra saiu-me num tom ligeiramente acima do pretendido e todos os passageiros que estavam na fila olhavam para mim. Eu sorri, primeiro timidamente, pelo desconforto que aquela observação colectiva me provocada, depois abertamente, ao ouvir a voz do Paulo.

- Doutora Ana, estava mesmo à espera do seu telefonema. Já sei que tem novidades para me contar e escusa de tentar desmentir.
- Paulinho, falamos sobre isso depois. Agora tenho outro assunto urgente a tratar contigo.
- Hum, cheira-me a problema.
- Isso já depende de ti.
- De mim? Oh Aninhas…
- Shiu – ordenei-lhe enquanto dava mais um passo em direcção à porta de embarque, auxiliada pela Raquel que me segurava no telefone para que eu pudesse procurar a carteira dos documentos. – Preciso que me encontres um hotel em Paris barato, mas não brega, e reserves um quarto duplo.
- Dois – Ordenava a Raquel colocando o telemóvel junto ao seu ouvido. – É melhor prevenir – Continuou, olhando para mim e devolvendo o telemóvel à minha orelha.
- Estás com a Raquel? – Interrompia o Paulo, com uma pergunta incrédula.
- Sim. Pronto, dois quartos duplos num hotel porreirinho mas baratinho. E preciso também de dois bilhetes para o jogo de logo.
- Do Benfica? – As palavras do Paulo continuavam inundadas de surpresa e desconfiança.
- Não, do Cascalheiro de Baixo. Claro que é do Benfica, Paulo. Percebeste tudo? – Perguntava-lhe, enquanto dava mais um passo e ficava com apenas mais três pessoas à minha frente na fila.
- Hum, hum. E a seguir vais pedir-me o quê? Dois bilhetes para visitar a Torre Eiffel? – A voz do Paulo confirmava as minhas suspeitas de que ele não estava a acreditar numa única palavra que eu dizia.
- Olha por acaso era boa ideia, mas não sei se teremos tempo para isso. – Respondi-lhe a sorrir e cheguei finalmente junto da funcionária.
- Mais alguma coisa doutora? – O Paulo dava continuação ao seu desdém.

Entreguei o bilhete à funcionária e ela fixava o olhar na minha mão que segurava o cartão de cidadão. Eu segui-lhe o olhar e atrapalhada, tentei desculpar-me.

- Desculpe… o meu cartão de cidadão, certo?
- Hã? – Gritava o Paulo do outro lado da linha. – Para que é que eu quero isso?
- Obrigada por preferir viajar com a TAP. Boa tarde e boa viagem. – Dizia-me a funcionária com um sorriso simpático. Eu agradeci-lhe, dei um passo em frente e fiquei à espera da Raquel, antes de terminar a chamada.

- Ana, estás a ouvir-me? – Os gritos do Paulo ao telefone voltavam a chamar a atenção dos outros passageiros sobre mim. Sorri envergonhada e virei costas.
- Sim, estou aqui. Vais arranjar-me o que te pedi ou não?
- Tu e a Raquel… vocês estão… vocês vão… apanhar um avião para Paris?
- Sim, claro. Pensavas que eu estava a brincar?
- Chiça, Ana Moreira, tu és completamente passada dessa cabeça. – O Paulo falava com firmeza, como era seu apanágio.
- Pois sou, Paulinho, mas tu já devias saber disso. – Sorri-lhe e fiquei a ouvir as suas gargalhadas parisienses. – E então, posso fazer uma viagem tranquila com a certeza de que tenho uma camita para dormir e uma cadeira no Parque dos Príncipes para ver o meu caracolinhos?
- Oh Kika…
- Obrigada. Eu sabia que não me ias falhar. Agora vou ter de desligar, está bem?
- Com certeza. Façam boa viagem.
- Obrigada. Assim que chegar ligo-te. Olha… – não consegui acabar a frase.
- Já sei. – Interrompeu-me o Paulo – Não posso dizer nada aos rapazes.
- O Ruben já sabe. Portanto, não digas ao David.
- Fica descansada. Beijinhos.
- Obrigada. Beijinhos. Adoro-te.

Desliguei o telemóvel, coloquei-o na carteira e fiquei, com a Raquel, à espera da nossa vez de entrar na manga de acesso ao avião que nos levasse até Paris.

Já sentadas nos nossos lugares, e enquanto nos preparávamos para a descolagem, não evitámos um sorriso e uma troca de olhares cúmplices. Encontrámos, no rosto uma da outra, a certeza de que aquela loucura iria resultar na perfeição. Porque afinal, ela era movida por duas das coisas mais importantes na vida de alguém: a amizade e a paixão.