sábado, 9 de outubro de 2010

Capítulo 24 - Tu és louco?


Acordei estranha naquela manhã de segunda-feira. Sentia um aperto no peito e um sufoco que me cortava a respiração. Tinha passado mal a noite, por entre pesadelos e suores frios. Foi com uma má disposição terrível que fui trabalhar. O dia foi passado por entre reuniões, discussões e papeladas. No final dessa semana a empresa iria participar num feira industrial no Porto. O Dr. Gonçalves pediu-me que preparasse toda a estratégia de comunicação e marketing, que fizesse um comunicado para a imprensa e ainda redigisse o discurso para ele utilizar no colóquio integrado no certame. Embora gostasse de trabalhar sob pressão, a verdade é que estava a deixar que a vida pessoal afectasse o meu desempenho profissional. Decidi, por isso, recusar o convite da Si para ir jantar com o grupo a casa do David. Apresentei-lhe o cansaço e a sobrecarga de trabalho como justificações e ela aceitou, ainda que ligeiramente amuada. Deitei-me na cama, depois de um banho, e liguei ao Paulo. Precisava mesmo de falar com ele. Em duas horas, coloquei-o a par do que tinha acontecido nos últimos dias, da conversa com a minha mãe, dos meus sentimentos e das minhas dúvidas. Eu falava e ele ouvia.

A terça-feira foi inteiramente dedicada a escrever textos, pensar na disposição dos panfletos informativos, placards, revistas e dossiês de imprensa no stand da feira, actualizar a newsletter e o site e enviar o comunicado para as redacções. No final do dia estava ainda mais estafada, sobretudo mentalmente. Por entre as difíceis tentativas de concentração mental tinha de me debater com a fuga dos meus pensamentos para lugares como a cozinha do David, o meu quarto ou o centro de treinos do Seixal. Voltei a recusar um convite estar com o grupo. Nessa noite o encontro seria em casa do Ruben, onde a Si iria realizar a tão esperada sessão fotográfica com a Raquel. As minhas justificações mantiveram-se iguais. A reacção da Si às mesmas piorou ligeiramente. Despediu-se, no telefonema que tivemos, com um “andas muito estranha mas logo falamos melhor”.
Assim que pressenti a Si entrar em casa, fingi que dormia profundamente. Durante esses dois dias não enviei uma única mensagem ao David e não me encostei nem por um segundo ao parapeito da janela do meu quarto.

Na quarta-feira, porém, a fuga perdeu eficácia. E a culpa tinha um nome: Paulo Leitão. Passei a manhã toda a preparar o discurso do Dr. Gonçalves sobre “Liderança de mercado em 25 anos de história” e saí para almoçar já eram quase duas e meia da tarde. Comi uma sopa à pressa num pequeno restaurante a cinco minutos da empresa e regressei meia hora depois. Entrei, apressada, mas abrandei o ritmo logo na recepção, assim que o Sr. António me disse que tinha uma visita no gabinete. Entrei e deparei-me com o Paulo sentado na minha cadeira. A Salomé apareceu logo atrás a perguntar se precisávamos de alguma coisa. Eu conhecia bem as intenções dela: coscuvilhar. Disse-lhe que não e fechei a porta.

- Esta gaja irrita-me de uma maneira. Um dia destes passo-me da cabeça. – Resmunguei num tom abespinhado.
- Calma Aninhas. Andas muito stressada para o meu gosto.
- Olha lá Paulo, o que estás aqui a fazer?
- Fui almoçar com o Gonçalves para tratarmos de uns assuntos. E decidi vir fazer-te um convite. Jantas lá em casa logo? Já falei com a Si. Ela está confirmadíssima. Noite de Karaoke, parece-te bem?
- Chiça, tu e o karaoke. Não te cansas de cantar tão mal?
- Cala-te. Jantas ou não?
- Sim, janto. Mas aviso já que não sei a que horas chego. Estou atulhada em trabalho. Por isso é melhor fazeres petiscos.
- Já tinha pensado nisso. Que tal uns salgadinhos e uns patés?
- Parece-me bem. Agora pira-te que tenho mais que fazer.
- Bolas Ana, tu hoje estás impossível. Estás mesmo a precisar de me ouvir cantar – Soltou uma gargalhada audível em todo o edifício.
- Shiu. Ri-te baixo. Sim, é mesmo disso que preciso. Agora, deixa-me trabalhar oh Zé Cabra. – Sorri levemente, enquanto me levantava para lhe abrir a porta. – Adeus Paulo, até à próxima.
- Cara Ana, tenha um resto de uma boa tarde.

Sorrimos os dois disfarçadamente. Adorávamos aqueles momentos de formalismo fingindo. A tarde demorou a passar. Ainda assim, por momentos, pareceu-me demasiado curta para a imensidão de trabalho que tinha por fazer.
Saí da empresa já passava das sete e meia da tarde e tinha começado a chover. Dez minutos depois, estava no estacionamento em frente ao prédio onde o Paulo mora. A chuva caía agora com mais intensidade. Dei uma corrida até à porta, toquei à campainha e subi os dois lanços de escada apressadamente. A porta já estava entreaberta. Assim que entrei, vi o Paulo na cozinha, que fica ao fundo do corredor, e fui até lá. Vi o casaco da Sílvia pousado. Dei um beijo no Paulo.

- Desculpa o atraso. Queres que leve alguma coisa?
- Só faltam as tostas para o paté.
- Ok. SI JÁ AFINASTE A VOZ? – Gritei de forma a ser ouvida na sala, onde pensei estar só a Sílvia.
- “JÁ” – Respondeu-me, soltando uma gargalhada.

Peguei na taça com as tostas e segui até à sala. Caminhava sorridente, mas assim que entrei naquela divisão, senti uma expressão de irritação invadir-me o rosto. A Si estava acompanhada do Gustavo, da Raquel, do Ruben e do David.
- Boa noite – Disse quase em surdina.
Fui apanhada completamente de surpresa. Tinha imaginado um serão a três, só com o Paulo e a Si, como era habitual.

- Kika, até que enfim que te ponho os olhos em cima. – A Raquel veio logo abraçar-me. O Ruben seguiu-a.
- Então lagartixa, ainda amuada?
- Oh Ruben, não comeces.
- Desculpa, amiga, já vi que não estás nos teus dias. Já ouvi dizer que o Gonçalves te anda a matar com trabalho – Dizia, enquanto roubava uma tosta da taça – Queres que meta uma cunha para te diminuírem o horário? – Fez aquele sorriso de troça que lhe era característico.
- Não obrigada. Eu gosto muito de trabalhar.
- Kika, isso aí tem um nome – Disparava o Gustavo, agarrado ao comando da Playstation – Penso que é… (pausa) … doença. – Soltou uma gargalhada. – Agora passa as tostas que o paté eu já tenho.

Fui até ao sofá, dei um beijo na testa da Si e passei as tostas ao Gustavo. Olhei para o David e sorri-lhe. Ele encostou-se a um canto da poltrona e fez-me sinal para me sentar junto dele. Eu aproximei-me, dei-lhe dois beijos e sentei-me.

- Tava difícil falar com você esta semana. – Disse-me quase em surdina.
- Tenho tido muito trabalho, desculpa.
- Ué, nem um minuto para enviar uma mensagem?

Fui interrompida pelo toque do telemóvel da empresa. Levantei-me e fui apressadamente buscar a carteira à cozinha. Procurei atrapalhadamente o aparelho, mas a chamada parou. Ouvi, entretanto, o toque característico que o telemóvel faz quando se desliga por falta de bateria. Voltei à sala com a carteira.

- Quem era? – Perguntou a Si.
- Não sei. A porcaria do telemóvel desligou-se e já não deu para ver.
- Paciência. Acabou-se o trabalho. Vamos mas é cantar que eu estou inspirado hoje. – Disse o Paulo enquanto preparava o programa de Karaoke da consola.

Aquele programa funcionava como uma espécie de concurso. O Paulo escolheu a função de cantar a pares, em que cada um teria de cantar uma parte da música, alternadamente. A identificação era feita através da cor das letras que correspondia à cor de uma fita colada no microfone. O Gustavo avisou que não alinhava na brincadeira porque “preferia ficar comendo tosta com paté” e com essa desistência tínhamos o número perfeito para formar três pares. A Raquel e o Ruben formaram um par, eu e a Si outro, o David e o Paulo outro. Começámos o concurso. O Ruben e a Raquel eram os mais divertidos. Escolhiam de forma alternada entre os estilos romântico e pimba. Eu e a Si não parávamos de discutir sobre a língua em que havíamos de cantar. O Paulo e o David discutiam sobre os autores das músicas: o Paulo só queria cantar músicas de grandes vultos portugueses; o David teimava em cantar músicas de grandes nomes da música brasileira. Estava a confusão instalada naquela sala. O único casal oficial em concurso, a Raquel e o Ruben, estava a vencer e eu e o David começávamos a passar-nos. Eu gritava com a Si, o David reclamava com o Paulo. Eles riam-se e nós ficávamos cada vez mais possessos com as nossas acusações de que estaríamos a perder pontos por culpa deles. Sem que nada o fizesse prever, o David exaltou-se com o Paulo.

- Cara, cê tem a certeza que cê conhece as regras desse negócio?
- Não David, ele nem sabe o que significa afinação – Intrometi-me. – Ele e esta que aqui está ao lado.
- Ei, eu não tenho nada a ver com isso.
- Tens sim, Sílvia. Não consegues sequer acompanhar o ritmo da música. Tu costumas ouvir música, por acaso?
- É, deve ouvir a mesma música que esse daí – Dizia o David apontando para o Paulo.

A Raquel e o Ruben tinham aproveitado para namorarem, ainda embalados pela última música romântica que tinham cantado, e o Gustavo tinha parado de comer tostas para se agarrar à barriga de tanto rir. A Si e o Paulo continuavam com sorrisos irritantemente cúmplices.

- Olha, estão para aí a criticar, porque é que não cantam os dois? Já que são assim tão perfeitos. – Dizia a Si num tom trocista.
- Porra, têm cá um mau perder. Realmente vocês foram feitos um para o outro. Ficam lindamente bem, juntinhos. – Acrescentou o Paulo num tom provocador.

O silêncio instalou-se repentinamente naquela sala.

- Vou buscar qualquer coisa para beber. – Disse o Paulo, com um sorriso envergonhado.

Ele saiu da sala e eu, num ápice, seguiu-o. Entrei na cozinha atrás dele, irritada.

- Que merda de boca foi aquela, Paulo Leitão?
- A verdade.
- Opa mas que verdade? Tu às vezes passas-te.
- Sim, às vezes. Sobretudo quando vejo uma amiga armada em parva.
- Desculpa?
- Oh Kika, tu andas assim irritada porque não paras de fugir.
- Fugir? Oh estúpido, fugir de quê? De quem?
- De mim.

A voz do David congelou-me o sangue. Estava de costas e não me tinha apercebido da sua presença na cozinha. Não conseguia encará-lo. O Paulo saiu, silenciosamente. Senti o David encostar a porta. Respirei fundo e virei-me de frente para ele.

- Eu não estou a fugir de nada. – Disse-lhe decidida.
- Como não? Desde domingo que você se esconde. Não liga, não manda mensagem, não aparece.
- Já te disse que ando cheia de trabalho.
- Ah. Todos nós trabalhamos Kika. E você chegou nem ligou pra mim. Sentou, pediu desculpa e se afastou.
- Fui atender o telemóvel David.
- Pôxa, mas nem um sorriso, nem uma piada, nem uma conversa.

Caminhei em direcção á janela da cozinha e encostei-me. Queria estar afastada o mais possível do David.

- Desculpa.
- Pára de pedir desculpa. Pára de fingir que nada tá acontecendo entre nós.
- Mas não está.
- Cê acha que não? – O David elevava o tom de voz – Então e os beijos, os carinhos, a cumplicidade? Será que eu tou ficando maluco?

Eu estava de novo de costas para o David. Tinha o olhar perdido na chuva que caía cada vez mais agressivamente.

- Olha para mim Kika. – Pediu-me num tom agressivo. Eu acedi. – Me responde.
- Que queres que te diga?
- Sou eu que tou entendendo tudo errado ou a gente está vivendo uma paixão, mas só um de nós está assumindo isso? Ou será que eu estou vivendo essa paixão sozinho? Fala alguma coisa por favor.

A cada palavra do David, eu tremia um pouquinho mais. Sentia um turbilhão de pensamentos a rodopiarem no meu cérebro, prontos a entrarem em erupção a qualquer momento. Mas de cada vez que eu tentava pronunciar uma palavra, um bloqueio automaticamente controlado pelo meu cérebro impedia-me de falar. O meu coração batia cada vez mais acelerado. O David avançou em direcção a mim, agarrou-me nos braços e suplicou-me.

- Fala comigo. Me diz que não tou maluco, me diz que você está sentindo o mesmo que eu sinto, que você tá querendo o mesmo que eu quero. Fala, Kika.
- Pára David – Gritei-lhe. – Pára, por favor.

O David afastou-se de mim. Conseguia perceber pelas suas veias salientes a raiva que o consumia.

- Eu pensava que você ia sempre atrás, mesmo que quebrasse a cara. – Ele falava agora calma e secamente, remetendo-me para o momento do primeiro beijo, na cozinha da sua casa – Afinal, você não passa de uma medricas.

Assim que terminou de falar, saiu da cozinha disparado. Entrou na sala, pegou nas suas coisas, despediu-se bruscamente e saiu. Eu fiquei imóvel por uns segundos. Mas, desperta pelo bater violento da chuva contra a janela, dei uma corrida até à sala, peguei na minha carteira, despedi-me perante o olhar estupefacto dos nossos amigos e saí. Desci as escadas a toda a velocidade atrás do David. Cheguei à porta do prédio e vi-o correr, debaixo de uma forte chuvada, em direcção ao seu carro.

- David, espera. – Gritei-lhe.

Ele parou, mesmo com a chuva a bater-lhe violentamente na cara.

- Diz.
- Eu não sou medricas… (pausa) … e sai da chuva por favor!
- Ai não? Então vem aqui e me fala que eu não tou maluco.
- David sai daí se faz favor. Vais ficar doente.
- Só saio daqui quando você falar.
- Sai daí.
- Tou esperando.
- Porra, sai da chuva David. Vais ficar doente. – Gritava cada vez mais alto.
- Afinal, você é medricas mesmo.

Eu pousei a carteira no chão da entrada do prédio e saí. Arrepiei-me assim que senti aquela água gelada no meu corpo.

- Sai debaixo da merda da chuva já. – Gritei-lhe com todas as minhas forças - Tu és louco?
- Sou louco sou, garota… – Gritou de braços aberto – Por você, sua medricas!

Virou-me costas e correu até ao seu carro. Eu fiquei ali, à espera que a chuva que caía e a raiva que sentia parassem. Fiquei ali alguns minutos. Não pararam. Voltei para a entrada do prédio, sentei-me no chão e, a tremer de frio, acendi um cigarro. Não conseguia perceber se aquelas gotas de água, que me escorriam pela cara abaixo, eram da chuva ou da tristeza que me invadia a alma.

Apaguei o cigarro e caminhei lentamente até ao meu carro. Vinte minutos depois estava em casa. Fui directa para a banheira. Tomei um banho e deitei-me. Ouvi o meu telemóvel pessoal dar sinal de que tinha uma chamada não atendida. Era do Dr. Gonçalves. “Merda, se calhar era ele”. Liguei-lhe de imediato.

- Sim, Doutor, peço desculpa mas fiquei sem bateria no telemóvel da empresa e só agora vi a sua chamada.
- Não há problema, Ana. Era só para a avisar que afinal, e devido a um imprevisto com a Salomé, amanhã tem nos acompanhar, a mim e ao João, ao Porto. Regressamos na sexta à noite. Algum problema?
- Não, claro que não.
- Óptimo. Então amanhã às nove na empresa.
- Ok. Até amanhã Doutor.
- Até amanhã, Ana. Boa noite.

Preparei, em minutos, uma mala com algumas roupas e as tralhas da higiene pessoal. Fui fazer um leite quente com mel para beber, tomei um comprimido para prevenir uma eventual gripe e deitei-me. Adormeci embalada pelos gritos do David. “Sou louco sou, garota. Por você, sua medricas!”

9 comentários:

  1. Adorei o Cap....
    SP
    Beijinhos

    ResponderEliminar
  2. Adorei

    Tou curiosa para ver o desenrolar do proximo capitulo.

    Continua, please...

    Quero mais...

    ResponderEliminar
  3. Adorei!
    Fico ansiosa pelo próximo :)

    ResponderEliminar
  4. *-* AMEI PA´! QUERO MAIS!

    ResponderEliminar
  5. Mas que fantastica chuva!!!
    Muito bom!!
    O que será que a Kika nos vai fazer???

    ResponderEliminar
  6. Oh que lindos *.*
    Ai amei ohh!
    Quero mais!

    ResponderEliminar
  7. Tambem que raio, a Ana nunca mais assume o que sente. Teimosa a rapariga.. acho que vem ai muito sofrimento de amor

    ResponderEliminar
  8. e depois?? qd postas mais??
    quero mais... bjs

    ResponderEliminar