quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Capítulo 26 (Parte I) - O amanhã vem depois


Acordei com uma forte claridade a bater-me no rosto. Sentia as minhas pernas entrelaçadas nas do David, que estava abraçado a mim. Estiquei a mão, tirei o telemóvel da carteira e vi as horas. Passavam poucos minutos das nove. Desprendi o meu corpo do do David e fui à casa de banho trocar de roupa, o mais silenciosamente possível. Peguei na carteira e nas botas e, já na sala, calcei-as. A Si e o Gustavo ainda dormiam. Bati a porta devagarinho e regressei a minha casa.

Entrei no quarto para pousar a mala e encontrei um caixote. Percebi pelo remetente que era o livro para dar de presente à Raquel. Encostei a caixa a um canto, vesti um fato de treino e fui deitar-me no sofá a ler o meu livro. Perdi-me, durante um bom par de horas, por entre as palavras de Pat Conroy. A minha leitura foi apenas interrompida pelo sinal de mensagem no meu telemóvel. Era o David.

“Não precisava sair escondida. Podia ter esperado eu acordar, podia ter ficado para almoçar com a gente, podia ter deixado eu conversar com você. Podia. Você pode tudo… pena não querer!”

Não consegui desprender o meu olhar daquela mensagem por alguns minutos. Encontrava naquelas palavras uma agressividade à qual não estava habituada. Sentia-me sem qualquer resposta para enviar ao David. Dei inúmeras voltas à cabeça e não encontrava uma só frase que pudesse escrever.

“Olá. Como estás, sentes-te melhor? Beijo” – Optei por não tocar, sequer, no assunto.

“Estou bem, obrigado” – A resposta do David foi rápida e seca, o que me irritou ainda mais.

Sentia-me magoada. Apesar de todas as minhas indecisões e fugas, dos meus medos e hesitações, tinha estado com ele a noite toda, a tentar remediar uma situação pela qual também assumia as minhas culpas, a tentar compensar em carinho o que lhe andava a negar em palavras. E nem uma sinal de agradecimento por parte dele.
Senti o chão fugir-me debaixo dos pés. Estava ainda mais consumida pela culpa. Penitenciava-me por ter dado o primeiro passo para o jantar, por ter beijado o David, por não ter conseguido resistir ao seu encanto, por me ter deixado seduzir e por estar perdidamente apaixonada sem coragem para o assumir. Condenava-me por não ter estabelecido, desde o primeiro minuto, os limites entre o que poderia ter sido apenas uma bonita amizade e o que me parecia agora uma intimidante paixão. Deixei de culpar o David por aquelas palavras ásperas e assumi sozinha a responsabilidade por aquele imbróglio de sentimentos e emoções no qual nos tinha colocado.

Meia desorientada, liguei o rádio da sala com o volume quase no máximo, abri as janelas da casa e comecei, desesperadamente, a limpar. Tirei cada peça do seu lugar, esfreguei cada móvel, centímetro por centímetro, aspirei, varri, lavei… embriagada pela raiva que me movia.
Algumas horas depois, fui colocando tudo no seu devido local. Preparava-me para repor os tapetes quando fui interrompida pelo silêncio imposto pela Sílvia que havia desligado o som e se encontrava encostada à porta da sala a olhar para mim, perplexa.

- O que é que se passa aqui? – Perguntou-me, enrugando as sobrancelhas num ar desconfiado.
- É a tua casa que está a levar a maior esfrega do século. – Respondi-lhe determinada, enquanto pegava num cigarro que fui fumar para a varanda.
- Eh lá, andas cheia de vontade, tu. Não me parece é que isto seja só mania das limpezas. – Pousou a carteira em cima da mesa da sala – Vou tirar um café. Queres?
- Sim, estava mesmo a apetecer-me.

Enquanto a Si foi à cozinha, eu sentei-me em cima de uns tapetes que estavam no chão da varanda. Aqueles dias no Porto e as limpezas domésticas tinham-me deixado de rastos. A Si voltou com o café, já com a dose certa de açúcar e mexido, pronto a beber.

- Estamos muito amáveis, dona Si. Vais pedir-me alguma coisa?
- Sim, por acaso vou. – Passou-me a chávena e sentou-se ao meu lado no chão.
- Então, pede lá, a ver se estás com sorte. – Sorri-lhe.
- Bem, eu queria pedir-te que… bem que… – A Si parecia atrapalhada com o que ia dizer.
- Mau, já não estou a gostar nada… Estás gaga? O que é que se passa? – O meu tom de voz era de quem adivinhava um pedido estranho.
- Kika… (pausa) tu tens de te entender com o David. Por favor!

Levantei-me num ápice e lancei o fumo do cigarro a toda a força.

- Olha lá, tu não estás boa da cabeça. Que raio de conversa é esta Si?
- Oh babe nós estivemos a falar lá em casa. Ele está tão apaixonado por ti Kika. O Gustavo também já me tinha dito que ele está mesmo a gostar de ti, que nunca o tinha visto assim apanhadinho. Como é que tu estás a deixar escapar esta oportunidade?
- Oportunidade? Para quê… para sofrer? Não muito obrigada. Já tive a minha dose.
- Mas sofrer porquê? – A Sílvia levantava o tom de voz e eu também.
- Tu vives em que mundo? Ele daqui a nada vai embora, entendes? E eu não quero mais relações à distância na minha vida, não quero meter-me num situação que eu sei, à partida, que me vai magoar.
- E como é que sabes o futuro? Ah, és bruxa agora.
- Não, sou atenta. E prefiro cortar o mal pela raiz agora, que é só uma paixão. Daqui a uns meses poderia ser amor e eu iria sofrer novamente. – Fiz uma pausa longa sem obter qualquer reacção da Sílvia – Eu sei que não o devia ter beijado, eu estava encantada demais. Mas eu pensei que não ia passar disso mesmo, de uns beijos, de uma atracção. Aconteceu. E, sim, já devia ter acabado com isto antes sequer de ter começado. Mas ainda vou a tempo de evitar uma tragédia.
- Não vais não. Acredita que não vais. Mas tu é que sabes, a vida é tua e o coração é teu. Mas olha, só para que saibas, ele pediu-me a minha opinião e eu dei-lha. Disse-lhe com todas as sílabas que tu estás a-pai-xo-na-da.

Mal terminou a frase, a Si saiu da varanda. Passados uns minutos, ouvi o esquentador disparar e percebi que ela estava no banho. Acendi outro cigarro e deixei-me ficar na varanda até ela terminar. Pouco depois entrei na casa de banho. Nem a água quente a escorrer-me pelo corpo conseguia retirar de cima de mim o azedume daquela conversa. A minha cabeça andava demasiado confusa com toda aquela situação. Mas eu mantinha-me convicta de que estava a tomar a decisão certa.
Pouco depois a Si saiu para trabalhar. Passou pelo sofá, onde eu estava deitada, a ver os episódios da última temporada da série “The O.C.”.

A Si regressou algumas horas depois e eu continuava no mesmo sítio, ainda a ver televisão.

- Como é que tu ainda consegues ver isso, Kika? Já é a milésima vez que o fazes.

Encolhi os ombros. Estava no quinto episódio e tinha já a cara inchada de tanto chorar.

- Tu sabes que eu gosto. – Controlava o tremelico dos lábios, mordendo-os.
- Vais ficar aí que nem uma madalena arrependida, estou a ver. – A Si beijou-me a testa e deixou-me um conselho antes de sair – Não te deites tarde. Amanhã temos a festa da Raquel.
- Eu sei. Mas ainda não tenho sono.
- Ok. Eu vou-me deitar que estou exausta. Boa noite, bichinha.

*************************

Ainda não eram dez e meia da manhã e já a Si se atirava para cima de mim para me acordar. Abri os olhos a custo, mas voltei a fechá-los de imediato perante a luminosidade que já invadia o meu quarto. A Si, ainda de pijama, enfiou-se debaixo dos cobertores e abraçou-me.

- Ei dorminhoca, vamos a levantar
- Shiu, fala baixo. Dói-me tanto a minha cabecinha.
- Deitaste-te tarde?
- Oito da manhã é tarde não é? – Perguntei-lhe tapando a cara com a almofada.
- O quê? Tu és mesmo parva – A Si tirou-me a almofada com força de cima da cara – Eu avisei-te Kika. Oh babe, tu precisas de descansar, senão qualquer dia cais para o lado.
- Sim mãezinha.
- Não é mãezinha, coisíssima nenhuma. E vá, levanta-te senão atrasamo-nos.
- Tenho mesmo de ir? Não me apetece nada.
- Tens sim, é o almoço de aniversário da Raquel. E a casa dos pais dela é em Sintra. Por isso toca a levantar, para comermos qualquer coisa, tomar banho e pormo-nos bonitas.
- Não sei se me apetece estar com o David.
- Apetece, claro que apetece. E apetece também falares com ele e assumires de uma vez por todas aquilo que sentes. Deixa-te de desculpas esfarrapadas e de medos parvos, e aproveita a vida. Hoje, não é ontem nem amanhã, é hoje, Kika. Esquece o passado, não penses no futuro, vive esta paixão agora.
- Já acabaste? – Perguntei-lhe tranquilamente.
- Não, ainda não. Sabes, tenho saudades daquela Kika completamente destravada que, quando estava apaixonada, só fazia loucuras sem pensar minimamente nas consequências. Quem é que me obrigou a fazer mais de quarenta quilómetros para ir a um bar de praia ver um concerto de Heavy Metal? – Eram perguntas retóricas, às quais a própria Si ia dando as respostas, sem me deixar abrir a boca sequer – Tu, e tu nem gostas desse tipo de música, mas estavas maluquinha pelo bonzão do vocalista. Quem subiu ao palco da Latada em Coimbra para cantar o “feitiço” com o André Sardet? Tu, e nem gostas da música, mas querias fazer uma declaração de amor. Quem veio de Roma de propósito dormir a Coimbra só porque o outro anormal fazia anos? Tu, porque o amavas…

A Si ía falando e as lágrimas começavam a querer descer pelas maçãs do meu rosto. Sorri, por vezes, ao recordar todas aquelas aventuras em que me tinha metido, sempre levada pelo coração.

- … Tu fizeste estas loucuras todas sem saber o que o futuro te iria trazer. E olha, não trouxe nada daquilo que tu imaginavas. Todos te fizeram sofrer. E tu pensaste nisso? Não. – A Si falava agora para mim num tom inquisitório, que se elevava lentamente sem se tornar agressivo – E o que é que tu me dizias, quando eu desempenhava um papel inverso? Aquele de te impedir de fazer aquelas maluqueiras todas? O que é que me respondias, kika, quando eu te dizia: “Pensa sempre no amanhã”?

A Si estava sentada na cama a olhar fixamente para mim.

- Vá lá, responde.

Respondi-lhe com um sorriso rasgado.

- Eu estou apaixonada hoje, por isso que se foda o amanhã… O amanhã vem depois e não no fim – cantei esta última frase, da música do André Sardet, que eu odiava. A Si soltou uma gargalhada.

- Então, minha babe… – A Si fez uma pausa, respirou fundo, sorriu-me e continuou – …que se lixe o amanhã. É hoje que estás apaixonada, não é? – A Si ficou à espera que lhe acenasse que sim com a cabeça, o que eu fiz – Então levanta-te, tapa-me essas olheiras com uns quilitos de base e vai viver essa paixão.

Levantei-me e vesti-me. Pus um body” e umas leggin’s pretas cardadas no interior, calcei os botins pretos rasos e vesti por cima do body uma túnica rosa-choque de lã. Escovei o cabelo e coloquei uma bandolete preta com um laço, logo atrás da franja. Peguei na carteira e no presente da Raquel e esperei pela Si junto à porta.

- Vamos? – Perguntou com uma voz doce e um sorriso.

Respondi-lhe apenas com a cabeça, mas sem retribuir o sorriso.

- Que foi, Kika?
- Não sei se hoje é um bom dia para ver o David. Ele ontem foi um bocado duro comigo.
- Claro que é. Ele estava triste, só isso. Anda, não penses mais no assunto. Quando lá chegarmos, logo se vê.

A Si puxou-me pela mão, eu coloquei-lhe o braço por cima dos ombros e descemos pelo elevador. Fomos abraçadas até ao carro. A minha amiga sorria, confiante. Eu também sorria, mas não transbordava a mesma confiança que ela, sobretudo por não conseguir esquecer as palavras azedas do David.

5 comentários:

  1. Parece que a Kika ouviu umas verdades que andava já há muito tempo a pedir!!

    A ver vamos é se dá ouvidos à Si...

    Estou mesme muito curiosa pelo próximo

    Continua a história está linda...

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  2. Muito boa.
    Porfavor poe a minha fanfic na tua lista
    Beijos
    Sofia

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  3. adorei as vdd q a si disse a kika, ela estava a precisar de as ouvir... parabens gosto mt da tua fic, continua que tens imenso jeito... agora por favor tenta postar com mais frequencia... e ja agora se nao for pedir demais podes por a parte 2??

    bjs

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  4. A Kika devia gostar da musica do André Sardet, :)
    Muito bom, mas estou em pulgas para a segunda parte do capitulo.
    Continua
    beijinhos

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  5. Ai ai Ana agr é que ela ouviu as verdades!

    Mas agr fiquei ansiosa pelo proximo :P
    Continuaaaaa^^

    Beijinhos**

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