sexta-feira, 22 de julho de 2011

Capítulo 38 – “Virar a página”


Aos primeiros raios de sol, os meus olhos começaram a preparar-se lentamente para se abrirem a um novo dia. Apesar de ter passado a noite no sofá, o que habitualmente me provocava uma valente dor de costas, acordei relaxada. Tinha finalmente conseguido descansar o corpo mas sobretudo a cabeça daquele turbilhão de emoções a que tinha sido sujeita nos últimos dias. Com a mesma lentidão com que tentava a custo encarar aquela luz que invadia a sala, espreguiçava-me proveitosamente.
Ao fim de alguns minutos gastos com a já rotineira preguiça matinal, levantei-me e segui para a casa de banho, onde um duche escaldado e revigorante me despertou. Passei ainda pelo quarto da Sílvia para confirmar se ela estava na cama. Não me tinha apercebido da sua chegada e, de cada vez que isso acontecia, tinha de me certificar de que estava tudo bem. Ela dormia profundamente, com aquele jeito angelical que tão bem a definia.
Caminhei então para a cozinha, onde tomei o pequeno-almoço e bebi o mais que obrigatório café. Tinha vivido os últimos anos com a certeza de que o tabaco era o meu maior vício, mas bastaram três dias sem fumar para perceber que, afinal, a minha maior dependência estava naquele travo amargo de um café forte e bem tirado. Ainda assim, confesso que a ausência do cigarro a acompanhar lhe roubava parte do prazer que me oferecera outrora.
De chávena na mão, regressei então à sala para me inteirar das notícias que marcavam o país, naquele gélido dia de Fevereiro. Um outro gesto que era para mim tão rotineiro como escovar os dentes. Era impensável sair de casa sem fazê-lo.
Pouco passava das nove da manhã quando me fiz à estrada, entusiasmada por regressar, mesmo que por pouco tempo, ao aconchego da família.

Conduzia de forma tranquila. Queria aproveitar aquelas duas horas de caminho que tinha pela frente para gozar da minha própria companhia. Precisava de ter uma conversa séria e tranquila com o meu coração, como há muito não acontecia, e para isso tinha de transformar aquela viagem solitária num descontraído passeio pelos trilhos da minha consciência. Das colunas do carro soltava-se a música chill out que marcava o ritmo de cada passada interior e, vindos do céu, uns intensos raios de sol iluminavam-me o caminho.
Muita coisa tinha acontecido desde a minha última visita a Coimbra: aquela em que eu negara, com alguma teimosia, a paixão que começava a consumir-me; aquela em que eu jurara a mim mesma afastar-me do David; aquela em que eu prometera deixar de fumar. “Tão bem que me ia saber um cigarrinho agora!”, pensei, deixando-me levar pela saudade daquele companheiro de tantas viagens. Deixar de fumar era sem dúvida um dos maiores testes à minha capacidade de resistência. Estive tentada a abrir a carteira, pousada no banco do pendura, para retirar do maço ainda guardado um dos últimos cigarros que haviam sobrado, antes da viagem a Paris. Mas a minha consciência não me permitiu fraquejar. “Tu prometeste kika, tu prometeste”, lembrei-me do motivo que me tinha levado à tomada de decisão. Não queria voltar a sentir-me culpada, mesmo que fosse por não conseguir resistir a um vício do qual estava tão dependente. Continuei, então, a viagem sem cigarro mas com um sorriso na cara. Pensei na minha Sílvia e na prova de amizade que me havia dado na noite anterior, com a sua capacidade de perdoar um erro que eu própria não me imaginaria capaz de perdoar. Mas essa era a essência da minha amiga. Esse humanismo e altruísmo que a tornavam verdadeiramente especial e que me faziam adorá-la com todas as minhas forças. Era também o que nos distinguia. Ao contrário da minha amiga eu não sabia perdoar. Nem aos outros, nem a mim própria. E era precisamente por isso que, apesar de na noite anterior me ter libertado de um piores sentimentos de culpa que alguma vez havia sentido – o de ter mentido à pessoa que me devolveu à vida – a maior das minha culpas iria permanecer comigo para o resto dos meus dias. Porque eu jamais conseguiria arrancá-lo de dentro de mim. Mas eu tinha prometido à minha melhor amiga que ia seguir a minha vida com um sorriso e essa era, naquele momento, a minha única convicção. Tranquilamente, procurei o cantinho mais ínfimo e recatado do meu coração e guardei lá todo o sofrimento que havia acumulado nos últimos oito meses.

Estava já a meio do caminho entre a cidade que me acolhera e a cidade que me vira nascer. A viagem fluía calmamente, sem percalços. Já não me lembrava da última vez que tinha feito aquele trajecto ao volante, ultimamente eram o alfa-pendular e o táxi do senhor José que me levavam para junto do calor família e me faziam voltar para o aconchego do colo da minha melhor amiga. Mas aquela experiência estava, definitivamente, a fazer-me bem!

Olhei o horizonte, descontraidamente. E enquanto me perdia naquela paisagem verdejante que ladeava a auto-estrada, recordava o esverdeado dos olhos do David. Os cantos da minha boca afastaram-se, delineando no meu rosto um sorriso apaixonado. Havia descoberto nos últimos dias que o David era muito mais do que um bom amigo, um bom companheiro, um bom amante. Ele era, indubitavelmente, um bom ser humano. Que compreendia a dimensão dos erros dos outros sem os condenar, porque humildemente se aceitava a si próprio como um ser errante. Que descobria o lado mais sombrio dos outros sem nunca desistir de procurar o brilho e a luz, por mais ocultos que estivessem. Que tinha a bondade de apontar trilhos de esperança nos outros, mesmo que estes apenas vislumbrassem o caminho das trevas. E os outros rendiam-se aos seus encantos e viam nele uma essência quase rara. Entre esses outros, estava eu… entregue a uma louca paixão.

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Cheguei a Coimbra pouco passava das onze da manhã. Entrei em casa dos meus pais de sorriso rasgado. A primeira pessoa que encontrei foi a minha mãe, na cozinha, já entretida com os preparativos para o almoço.

- Bom dia, flor mais linda do meu jardim! – Cumprimentei-a, com o coração aos pulos por estar a matar todas as saudades que sentia após tantos dias sem ver a minha mãe.
- Bom dia filhota! – Deu-me um forte abraço que me assegurou de imediato que aquela conversa hostil que havíamos tido uns dias antes por telefone fazia já parte do passado. – Então a viagem, correu bem?
- Óptima. – Respondi-lhe, pegando numa maçã que comecei imediatamente a trincar. – O resto da malta está em casa?
- O teu pai foi tomar um cafezinho, a pequena ainda dorme.
- Hum, então vou só acabar de comer e já a acordo.
- Sim, faz isso que já não são horas de ela estar na cama.

Dei uma última trinca na maçã, passei pela casa de banho para lavar as mãos e segui até ao meu antigo quarto. Assim que entrei, liguei a luz do grande candeeiro cor-de-rosa suspenso no tecto e atirei-me para cima da minha mana caçula.

- Oh mana, fogo! – Resmungou ela, tapando a cara com as duas mãos.
- Fogo o quê? Toca a levantar essa bunda da cama que já é tarde! – Afirmei, em tom de reclamação, tentando destapá-la.
- Vens muito abrasileirada, para o meu gosto. – Afirmou, num tom abafado pelos cobertores, que havia puxado para cima do rosto.
- Estamos cá com uma piadinhas, menina Cris. Vá, abre lá os olhos e dá um beijo à tua irmã, se faz favor! – Ordenei-lhe, em jeito de brincadeira. Ela respeitou a minha ordem, levantou-se e beijou-me a face ao mesmo tempo que me abraçava.
- Vieste sozinha?
- Sim, a Sílvia tem trabalhos este fim-de-semana.
- Hum, podias ter trazido o namorado novo para apresentar à mãe!
- Olha que tu não me irrites. É que nem sequer quero tocar nesse assunto.
- ‘Tava a brincar. Mas conta lá, como foi a viagem a Paris? – Perguntou-me, com um sorriso maroto.
- Foi maravilhosa. – Deixei cair o corpo sobre a cama, ficando lado a lado com a minha irmã naquela que seria sempre a nossa cama – Ele adorou a surpresa. Havias de ter visto a cara dele quando me viu no estádio.
- Imagino. – Desabafou, sorridente. – Tu és um bocadinho maluquinha, Kika.
- Tu também vais ser, quando te apaixonares verdadeiramente.
- Sim, sim. – Retorquiu, com desdém. – E mais?
- Então, jantámos, passeámos nas margens do Sena, dormimos juntos e foi tão bom!
- Wow – interrompeu-me – mas poupa-me os pormenores.
- Claro, parvinha, não te ia contar mais nada. Ah – levantei o dedo – falta dizer ainda que recebi uma camisola do Benfica. – Afirmei, divertida.
A minha irmã soltou, então, uma descomunal gargalhada, audível por toda a casa. – É bom que isso não chegue aos ouvidos, muito menos à vista, da dona Maria, se não cheira-me que vais ser deserdada.
- Que pena, estava a pensar oferecer-lha como prenda de anos. – Respondi por entre risos descontrolados. Mas a conversa teve de ser interrompida, com a entrada da minha mãe no quarto.
- É que vocês não podem estar juntas! Como é que é possível eu estar na cozinha e ouvir-vos rir?! – Praguejou a minha mãe, não conseguindo esconder, no entanto, o brilho de felicidade por nos ter às duas deitadas na mesma cama, como tinha sido habitual durante quase 17 anos.
- Estávamos a falar sobre a tua prenda de anos – disparou a minha irmã, obrigando-me a fuzilá-la com o olhar. – Gostavas de fazer um salto de pára-quedas? – O meu coração tranquilizou-se com aquela pergunta da miúda.
- Gostava, gostava. – Respondeu a minha mãe, irritada. – Eu gostava era que tu te levantasses e arrumasses este quarto que parece a feira da ladra. – Repreendeu a minha irmã e atirou umas peças de roupa que estavam no chão para cima da cama, antes de sair do quarto. Para a minha mãe, aquela gracinha era um motivo suficientemente forte para estarmos a gozar com ela, que tinha um pavor enorme de alturas e uma aversão ainda maior a actividades radicais.
- Tão ingénua a dona Maria. – Desabafou a minha irmã, sorridente.
- Tão parvinha a menina Cris. Queres matar-me de ataque cardíaco ou quê? Acabaram-se as gracinhas que eu não quero sequer ouvir falar no nome do David nesta casa, pelo menos enquanto eu aqui estiver. Não quero mais discussões e palavras azedas.
- Oh mana, também não precisas ser assim. E para tua informação, tem-se falado mais do David nesta casa do que tu imaginas. – Afirmou, com uma certa autoridade na voz.
- Tem? – De facto não imaginava.
- Sim, a mãe e o pai não sabem, mas eu já os ouvi falar bué vezes em vocês.
- E então? – Perguntei, tão curiosa quanto assustada.
- A mãe no fundo está feliz por ti, embora diga que a assusta uma possível exposição pública sobre a vossa relação e que sobretudo tem medo que tu sofras, caso o David tenha de ir embora no final da época. E claro, irrita-a bastante que te tenhas apaixonado logo por um gajo que joga no Benfica. – Soltou uma gargalhada, que eu acompanhei, e continuou. – O pai não está nem aí para as preocupações da mãe. Diz que tu mereces ser feliz e que tem a certeza que tu sabes o que fazes. Mas já prometeu que, se o David te fizer sofrer, dá cabo dele. – A minha irmã voltou a sorrir e eu também. No fundo, aquelas confidências da minha irmã tranquilizavam-me o espírito e permitiam-me voltar a Lisboa com muito mais forças para lutar contra o que quer que fosse que se intrometesse entre mim e o David.
Voltámos a ser interrompidas, na conversa, desta feita pelo meu pai, que entrou no quarto com uma felicidade imensa – Bom dia para as filhas mais lindas do mundo. – Declarou de braços abertos, para nos cumprimentar. Agarrou primeiro a minha irmã, beijando-a, e envolveu-me depois num abraço forte que demonstrava que ele estava feliz não só por me ver, mas sobretudo por me saber feliz.

O dia de sábado passou numa correria. Depois de um almoço tranquilo em família, fui distribuir beijinhos e abraços por todos os que me eram realmente chegados. Passei primeiro por casa da minha madrinha, onde me demorei um bom par de horas, e combinei para depois um cafezinho com um grupo de amigas de infância. Foi um encontro animado que se prolongou até ao final da tarde. Regressei a casa para jantar com os meus pais e aproveitei para lhes prometer um passeio na manhã seguinte para os tentar compensar da minha ausência ao longo da tarde. Fui, depois, arranjar-me para uma saída nocturna que tinha combinado com a Nokas, uma das grandes amigas que eu e a Sílvia tínhamos feito nos tempos de faculdade.


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Percorri os jardins da Associação de Estudantes da mesma forma relaxada com que estava a aproveitar aquela “visita relâmpago” a Coimbra. Sabia que a Nokas estava do lado oposto àquele por onde eu tinha entrado e era para lá que teria seguido, não fosse a paragem imposta por uma voz agradavelmente familiar.

- Então menina, já não se cumprimenta os amigos?! – Assim que virei a cara para o lado direito vi o Rafa e o mesmo sorriso simpático de sempre. O Rafa era um grande amigo do Tiago que, por inerência, se tinha tornado também um grande amigo meu. Era a primeira vez que o via, desde que a minha relação com o outro tinha terminado.
- Desculpa, Rafa, nem te tinha visto! – Afirmei, sorridente, enquanto o cumprimentava com dois beijos. – Está tudo bem contigo?
- Sempre em grande. E a vida pela margem sul, corre bem?
- Muito bem, felizmente. A Filipa está por aqui? Tenho saudades dela, pah.
- Está, foi só ali ao bar com o Tia… – O Rafa calou-se antes de terminar o nome do amigo. Percebi-o constrangido e sorri-lhe.
- Com o Tiago. Podes dizer, não me incomoda.
- Desculpa Kika. Isto é o que dá estarmos tanto tempo sem falar. Não sei como é que estás em relação a tudo o que aconteceu.
- Estou bem, Rafa, acredita. É passado, só isso.

Fomos interrompidos naquele momento por uma outra voz familiar, mas não tão agradável. Tiago e Filipa apareceram por trás do Rafa e nem me viram.
- Porco, estivemos a ver a repetição dos golos do glorioso, pah. Joga-se muito à bola naquele estádio, fodasse. – A inconfundível maneira de falar do Tiago e a sua paixão pelo Benfica. Nunca se cansava de ver as repetições dos golos, dos lances, dos jogos completos, se tivesse oportunidade para isso. O Rafa deu então um passo para o lado, deixando a descoberto o espaço entre mim, o Tiago e a Filipa.
- Miúda, há quanto tempo… – A minha amiga abraçou-me com força. – Oh pá, ainda no outro dia disse a este gajo – apontando para o namorado – que tínhamos de te fazer uma visita.´Tava cheia de saudades.
- Quando quiserem. – Depois de lhe responder, fechei o sorriso que me iluminava o rosto e disse um “olá” meio tosco ao Tiago, que ele mal retribui. Talvez a nossa última conversa não lhe tivesse caído muito bem.
- A ver se combinamos, então. Olha e pode ser num fim-de-semana que o nosso Sporting jogue em casa, para irmos ao estádio. – Continuava a Filipa, entusiasmada com a ideia. Ela era também uma lagarta que namorava com um lampião. E esse tinha sido sempre um dos pontos que nos unia aos quatro, enquanto casais.
- Oh minha menina, tu não deves ‘tar boa da cabeça, de certeza. – Afirmava o Rafa num tom trocista. – Vamos a Lisboa mas há-de ser para ver o glorioso.
- Pois, amigo, então temos pena mas acho que nesse dia não vou estar por lá. – Gozei-o descaradamente. – Não pago para ver esses gajos jogarem.
- Tens lá melhor, queres ver? – Pela primeira vez o Tiago metia-se na conversa. E eu não me opus. Afinal, conhecia-o demasiadamente bem para saber que defender os seus jogadores estava-lhe no sangue, fosse em que situação fosse, contra quem fosse.
- Não. Tens razão, os que são mesmo bons estão no Benfica. – Disparei, levando aquela afirmação para o plano físico, algo que só a Filipa percebeu.
- Bons e de que maneira. Nisso estamos de acordo, há lá dois ou três que batem o plantel todo do Sporting aos pontos. – Proferiu soltando uma gargalhada e dando-me uma cotovelada para confirmar que tinha percebido a minha indirecta.
- Estás-te a esticar, oh menina. – Repreendeu-a o Rafa, como qualquer homem ferido no seu orgulho.
- É só nisso que vocês percebem de futebol, coitadas. Como se eles fossem uns deuses. – Voltava a interferir na conversa o Tiago, reivindicando também ele um orgulho ferido, que no entanto já não lhe era reconhecido.
Ao ouvir aquelas palavras, lembrei-me da primeira noite com o David em Paris e de como ele, iluminado apenas pela luz das pequenas velas, me tinha parecido de facto um deus. E apeteceu-me provocar o Tiago, ferindo ainda mais o seu orgulho. Desejando quiçá que ele sentisse na pele a humilhação pela qual me havia feito passar. – Alguns são mesmos uns deuses, Tiago, e olha que faziam de mim uma verdadeira deusa. – Disse-lhe com alguma maldade, embrulhada num sorriso. E foi então que as feições do Tiago se alteraram. Voltou a demonstrar-me aquela raiva, que eu não tinha visto mas tinha sentido na nossa última conversa ao telefone. O Rafa e a Filipa aperceberam-se do constrangimento do Tiago perante a minha provocação e tentaram amenizar os efeitos.
- Então e não queres beber nada Kika?
- Não, obrigada. Eu tenho de ir andando.
- Mas já vais embora?
- Acabei de chegar, amiga, mas tenho ali uma pessoa à minha espera. – Afirmei sorridente, sabendo que isso iria irritar ainda mais o Tiago. – Bem pessoal, até à próxima. – Falei, enquanto me despedia do Rafa e da Filipa com dois beijos. – E quando quiserem aparecer lá por baixo, estejam à vontade.
- Conta com isso. – Respondeu-me a minha amiga, convictamente. Não voltei a responder-lhe, limitei-me a sorrir e virei costas, disposta a seguir o caminho que me levava até à Nokas.
Mas depressa fui surpreendida pelo Tiago que, com alguma agressividade, me puxou por um braço contra si, fazendo embater as minhas costas no seu peito. Respirei fundo, tentando controlar qualquer impulso. Mas ele fez o favor de me descontrair, com mais uma afirmação pateta de ex namorado ciumento. – Afinal eu tinha razão. Já arranjaste outra pessoa!
Foi nesse momento que me afastei ligeiramente e virei o meu rosto, de forma a encará-lo. – Porquê? Tu ainda não?
- Não, porque ainda te amo, Kika! – O Tiago fazia um ar aparentemente meigo e eu soube naquele momento que, assim que lhe dissesse algo que ele não quisesse ouvir, ele iria partir para a ignorância. Mas isso não me demoveu. Ele tinha de aprender de uma vez por todas que nunca mais faria parte da minha vida.
- Lamento, mas quanto a isso não posso fazer nada. É melhor seguires a tua vida… eu já segui a minha.
Tal como eu esperava, os olhos do Tiago encheram-se de ódio. – Afinal de contas, choraste tanto, gritaste, esperneaste, partiste-me a casa toda para quê? Para meio ano depois já estares a abrir as pernas para outro gajo qualquer. És uma pêga! – Gritou o Tiago a plenos pulmões, fazendo-me sentir uma enorme vontade de lhe pregar um estaladão. O Rafa ainda interveio, tentando chamá-lo à razão, enquanto a Filipa o puxava por um braço para o demover de continuar com aquela parvoíce. Mas o Tiago estava demasiado enraivecido para parar. – Fazes-te de santinha e não passas de uma puta, que anda para aí com uns e com outros!
Apesar de tom elevado da música, já toda a gente olhava para nós. E eu aproveitei aquela plateia, para concentrar todas as forças com que me apetecia partir a cara ao Tiago e me vingar de uma forma menos física mas que lhe ferisse até ao limite o seu orgulho. Sorri-lhe cinicamente e elevei bastante o meu tom de voz.
Com uns e com outros não, meu querido, só um chega-me. Sabes porquê, idiota? Porque ele é bem melhor ser humano que tu, porque ele é bem mais giro e atraente que tu… – Respirei fundo e preparei-me mentalmente para levar o maior chapadão da minha vida – … e porque ele fode mil vezes melhor que tu! – Gritei a plenos pulmões.
Senti, instantaneamente, os risos de todos os que assistiam àquela cena triste e vi a mão do Tiago a vir de encontro à minha cara.
Valeu-me o Rafa, que conhecendo tão bem o Tiago quanto eu, pôde prever a sua atitude e agarrar-lhe o braço pouco antes de eu ser atingida.
– Tu não passas de um grande otário! – Provoquei-o antes de virar costas e retomar o meu caminho.
- E tu és uma grande puta! – Gritou, com a voz trémula
- Pára com isso Tiago, por favor. Deixa-a em paz. – Ouvi a voz da Filipa, enquanto continuava o meu caminho, sentindo o ódio a fervilhar-me no sangue.

Não precisei de andar muito até encontrar a Nokas que, ouvindo o barulho, se tinha levantado como todos os outros. Fez-me sinal com a mão e esperou por mim junto à mesa que estava mais perto. Olhava-me incrédula.
- Aquele ali é o Tiago? – Olhei para trás uma última vez e vi o seu rosto, mais envergonhado que nunca, por descobrir que afinal a pessoa com quem eu me ia encontrar era tão e somente a minha amiga da faculdade, com quem ele tantas vezes convivera.
- É – respondi-lhe, com um sorriso nervoso.
- Estás bem? – Perguntava-me com uma ar preocupado.
- Nunca estive tão bem, bi. – Retorqui com um ar totalmente descontraído, depois de alguns exercícios de respiração que a minha psiquiatra me havia aconselhado a praticar em caso de acessos de raiva.
Ela continuava a olhar para mim, confusa. – Mas o que é que lhe passou pela cabeça para estar para ali a chamar-te puta à frente desta gente toda?
- Ataque de ciúmes de ex namorado que trai e ainda tenta fazer-se de vítima. – Respondi-lhe com ironia. – É sempre mais fácil atirar as culpas para cima dos outros.
- Passou-se o gajo! Os homens são todos uns idiotas. É por isso que dessa espécie eu quero é distância. – Brincou a Nokas, enquanto tirava o maço de tabaco da carteira e o pousava em cima da mesa. Mas olha lá – fitou-me com os seus olhos pretos rasgados, enquanto acendia o cigarro – é impressão minha ou tu estás demasiado calma? Não me digas que afinal aquele homem espectacular, giro e bom de cama de que falavas existe mesmo!
Soltei uma gargalhada, que tentei abafar colocando a mão rapidamente na boca. Depois daquele espectáculo ridículo com o Tiago, tudo o que eu mais queria era passar despercebida naquele lugar. – Eh lá, viraste “profiler” agora ou quê?
- Ah, tu a mim não me enganas. Parece que tens alguma coisa para me contar, menina Ana.
- Continuas a mesma chatinha, tu. – Sorri e abanei a mão direita com toda a força, para tentar afastar o fumo que a minha amiga ía soltando por entre os seus finos lábios. Não que me incomodasse, mas que era uma tentação, isso não posso negar – Sim, tenho algumas coisas para te contar, mas não aqui.
- Isso é um convite para irmos ao Penedo? – Questionou-me, por entre mais uma passa no cigarro – Convite aceite. – Concluiu. E sem mais conversas, arrumou o maço de tabaco na carteira, afastou a cadeira e levantou-se. Eu segui-lhe o exemplo. Contornei a mesa e fui juntar-me à minha amiga para iniciar a saída daquele espaço onde eu não pretendia regressar tão depressa.
Caminhávamos em silêncio. A Inês continuava a lançar o fumo do cigarro para o ar e eu abanava a mão tentando afastar aquele maldito cheiro de perto do meu nariz. Um comportamento ao qual a minha amiga não ficou indiferente.
- Oh Kika, mas o que é que se passa contigo hoje? Sempre a afastar o fumo do meu cigarro. É que isso vindo de alguém que fuma desalmadamente até parece brincadeira.
- Ai minha querida Nokas, já te conheci mais perspicaz. – Coloquei-lhe o braço por cima dos ombros e sorri-lhe. – Deixei de fumar amiga.
Ela parou abruptamente, no primeiro dos cerca de quinze degraus que nos levariam ao exterior dos jardins da associação de estudantes.
 Tu o quê? Estás a gozar comigo certo?
- Tu por acaso viste-me acender algum cigarro depois daquela escandaleira toda lá dentro? – Ela abanou negativamente a cabeça, pensativa – E tu achas isso normal em mim?
- Bolas, estás mesmo a falar a sério! Nunca pensei que fosses capaz de deixar esse maldito vício. Eh pa, tens de me dar a tua receita porque eu preciso de fazer o mesmo! Conta lá… como é que conseguiste?
- No Penedo! – Sussurrei-lhe, antes de seguir em direcção ao meu carro, deixando-a roxa de curiosidade.

Percorremos as duas em silêncio o caminho que nos levaria até ao Penedo da Saudade. Um dos mais bonitos miradouros da cidade de Coimbra, situado numa das colinas com vista mais privilegiada. Daquele local místico e verdejante, pode vislumbrar-se toda a parte oriental da cidade até ao Rio Mondego e ainda, em dias de boa visibilidade, a não muito longínqua Serra da Lousã. Mas era de noite que aquele parque no alto da cidade de Coimbra se tornava verdadeiramente poético. Uma conversa de amigas no Penedo da Saudade transformava-se num recital. Foi lá que confidenciei à Nokas o meu romance com o David e foi lá que ela me prometeu, depois de me escutar atentamente, que aquelas declarações permaneceriam em si como se dentro de um túmulo se fechassem.
Saímos do Penedo já a madrugada ía alta, não sem antes eu jurar a mim mesma que um dia levaria David àquele “jardim dos poetas” onde estão guardados alguns dos mais belos poemas escritos por autores portuguesas, durante a sua vida académica em Coimbra.


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A manhã de domingo, gélida mas solarenga, foi passada com os meus pais e a minha irmã na Figueira da Foz, uma cidade marítima situada a cerca de 50 kms de Coimbra. Percorremos alguns trilhos da Serra da Boa Viagem, passeámos à beira-mar na praia da claridade e acabámos sentados num dos mais conhecidos restaurantes da marginal. Uma refeição tão tranquila e divertida quanto o ambiente que se vivia no seio daquela família.
A meio da tarde regressámos a Coimbra, onde eu me preparei para mais duas horas de viagem relaxada, desta vez em direcção à margem sul, onde sabia ter à minha espera o carinho da Sílvia e o amor do David, a quem enviei mensagens a informar da hora prevista para a minha chegada. Despedi-me da família com os olhos rasos de lágrimas, como de resto acontecia em todas as outras despedidas, e fiz-me à estrada já o céu começava a escurecer.
A serenidade que me havia conduzido a norte, acompanhava-me agora no sentido inverso, mas desta vez constantemente interrompida por um irritante sinal sonoro que me alertava para a fraca bateria do meu telemóvel. Tive vontade, por várias vezes, de o desligar mas ainda bem que não o fiz já que, caso contrário, nunca poderia atender a chamada do David.

- Olá meu querido! – Atendi, docemente.
- Oi meu anjo, tudo bom? – Respondeu-me o David no mesmo tom meigo – E aí, já tá chegando?
- Não, ainda falta um bocadinho. – Aquele sinal do telemóvel era cada vez mais intensivo e eu temia a qualquer momento ficar a falar sozinha. Resolvi, portanto, advertir o David para essa situação – Olha, a conversa tem de ser rápida que eu ‘tou a ficar sem bateria no telemóvel.
- Ah tá bom. Só queria falar para você que ‘tou morrendo de saudade e te convidar a vir jantar cá a casa.
- Oh querido, eu também vou aqui doidinha para matar estas saudades. Convite aceite. Assim que chegar vou aí ter. O resto da malta está aí?
- Sim, ‘tá aqui todo o mundo. Mas kika, eu queria te dizer que estão cá também…. (pi pi pi pi pi)
- Está aí quem? – Apesar de saber que aquele som consecutivo significava a chamada interrompida, estava na esperança de ouvir a voz do David mais um pouquinho. – David, estás a ouvir? David? – Perguntei já com os olhos postos no ecrã do telemóvel. – Merda de telemóvel, pá! – Irritada, atirei o aparelho para cima do banco do pendura e segui viagem, ansiosa por rever o David.


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Cheguei à entrada do prédio do David completamente estoirada. Na verdade, não fosse aquele convite tentador e teria ido direitinha para casa, estatelar-me no sofá e dividir uma pizza com a Sílvia. Mas as saudades que tinha dos beijos do David eram bem mais fortes que o cansaço que o meu corpo sentia. Além disso, uma noite entre amigos era sempre uma óptima forma de recarregar forças para enfrentar uma dura semana de trabalho.
Aproveitei a saída de um casal para entrar no prédio sem precisar de tocar à campainha e aproveitei também o facto de o elevador estar no rés-do-chão para subir sem mais demoras.
Assim que saí, no sétimo andar, ouvi o barulho vindo de casa do David, como de resto era já habitual nos nossos jantares. Levei o dedo indicador à campainha e esperei que alguém me viesse abrir a porta. Foram segundos de ansiedade, no fundo pensei que o David tivesse a certeza de que era eu e fosse ele a vir receber-me. E só de imaginar os seus lábios perfeitinhos ali na minha frente, prontos a beijar, sentia umas cócegas na barriga e um sorriso estupidamente feliz na cara, típicos de quem está loucamente apaixonada.
Mas tudo se alterou, assim que a porta se abriu.
As cócegas na barriga e o sorriso continuavam lá, mas eram, então, resultado do nervosismo provocado pela cara simpática e voz meiga, de uma mulher bonita, na sua simplicidade. - Oi, tudo bom? Você deve ser a Kika! Entre minha filha.


18 comentários:

  1. Oie Oie ...... ameiiii o capitulo , está fantastico , como sempre nos habituas-te :) !
    O David ia dizer que os pais também estavam em casa dele não é isso ?


    Bem quero mais *_*

    http://luta-por-um-sonho.blogspot.com


    Beijinhos*

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  2. Eheh, os pais do David xD
    O capitulo está fantastico como sempre.
    Continua linda, boas ferias.
    Beijinho

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  3. Oh Oh, parece que a Kika acaba de tomar contacto com a sogrinha! ahahaha

    O capítulo está lindo como sempre e depois de ver aquele nome "Penedo da Saudade", não resisti em procurar imagens e confesso que fiquei maravilhada! :o
    É lindoooooo! *-*

    A maneira como escreves é sem dúvida fascinante e agora estou curiosa para ver como será este serão em casa do David!

    Beijinhos ^^

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  4. Mas acabas assim???? Eu quero a continuação...
    Bem este capitulo é brutal, nem sei descrever.
    A "conversa" com o Tiago e atitude da Kika é fantástica.
    Ah e o Penedo da Saudade muito bem lembrado, o coração da nossa cidade ;)
    Acho que vou gostar muito do capitulo em que o David vier a Coimbra :D :D :D
    Este capitulo é mesmo fabuloso não gosto nada é do fim...
    Beijinhos
    P.S: Boas férias ;)

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  5. Ana desculpa mas vou responder à Dri.
    Só depois de publicar o meu comentário vi o da Dri. Sim Dri o Penedo da Saudade é lindo, quando vieres um dia a Coimbra tens de visitar e ler aquele poemas escritos pelos estudantes há anos, muitos anos atrás.
    É o coração da cidade, pois são essencialmente poemas escritos às amadas.
    Lindo!
    Beijinhos

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  6. Está fantástico! Continua :D
    Se quiseres passar no meu blog, serás bem-vinda ;)
    http://romanceinesperado.blogspot.com/
    Beijinhos
    Ritááá xD

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  7. fantastico...

    quero mais... agora tou super curiosa...

    continua...

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  8. Olha lá mas isto é forma de terminar o capítulo??

    Logo na melhor parte??

    No que respeita ao capítulo está fantástico, adorei a forma como a Kika colocou o Tiago no lugar LOOL

    Continua´

    Bjs

    Caty

    P.S. desculpa n consegui comentar c a mha conta

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  9. Bem este Tiago deve achar-se o máximo não? Mas a Kika foi uma grande mulher não desceu ao nível dele e deu-lhe uma resposta que o deixou ko,adorei.O capítulo tá lindo,adorei.Então a menina Kika não sabe que tem que carregar o telemóvel? Agora teve uma surpresa, e não se pode queixar de não saber porque o David tentou avisar,mas a bateria foi-se,aposto que nunca mais se vais esquecer de o carregar.O que é que isto irá dar?
    Continua
    Bjs

    Fernanda

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  10. Então quando temos maais ?
    Fico anciosamente a espera de mais . Beijos !

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  11. Bem, adorei imenso! Está cinco estrelas, mesmo. Coimbra, que cidade. Ainda hoje vim de lá e já estou com saudades.
    A discussão com o Tiago foi wow!...Adorei a ultima resposta da Ana, ahahah, mereceu! Não podia ter dito melhor.
    E agora ela vai conhecer os papais do Davi, uiui, como é qe vai ser?
    Beijinhos e quero o próximo!

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  12. Comecei a escrever uma fanfic. Espero que sigas (:

    nemsemprevivercusta.blogspot.com

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  13. Começamos a escrever uam fic. Gostavams muito que seguissem :)

    http://magazineoflove.blogspot.com/

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  14. Quando postas de novo? (:

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  15. Ai o que eu andei a perder estes últimos meses!
    Está tão, mas tão fixe!
    Amei!
    Já agora, se não quiseres responder não faz mal, mas só por curiosidade... És de Coimbra? É que eu também sou...
    Beijinhos!

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  16. Adorei!
    Capitulo maravilhoso!
    Quero mais!
    Beijinhos

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  17. vou ser sincera descobri a tua fic hoje e como tinha tempinho :P li tudo de uma vez.
    Gostei imenso,mas ter chegado ao fim deste capitulo e não ter mais para ler não gostei muito ;D
    quero mais um rapidinho :)
    beijinhos




    passa no meu e diz o que achas sff
    http://umanovadefinicaodeamor.blogspot.com/

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  18. Olá Ana! :)
    Desculpaaaaaa andar ausente por aqui! Mas já vim e adorei estes ccapitulos que tinha por ler, amei amei amei :D
    Quero o próximo, minha linda.
    Beijinho
    Ana Sousa
    http://respirarde23.blogspot.com

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