sexta-feira, 20 de maio de 2011

Capítulo 34 - Tempestades


Acordei sobressaltada com o forte trovão que acabara de cair e que havia feito estremecer todo o prédio. Transpirada e de olhos esbugalhados perante o susto, sentei-me na cama, enquanto procurava o interruptor do candeeiro. Consegui encontrá-lo com a ajuda da luz de mais um raio mas depressa me apercebi que de nada me serviria. O forte temporal que assolava a margem sul tinha provocado um corte de electricidade. “Merda, parece que está a desabar o mundo”, pensei enquanto continuava nova busca, desta feita pelo meu telemóvel, que usei para ver as horas e para iluminar o caminho até ao quarto da Sílvia, onde cheguei momentos depois ao som de mais um estrondoso trovão.

- Si, estás acordada? – Perguntei à minha amiga, entreabrindo a porta do seu quarto.
- Estou, babe. Estava a tentar acender a luz mas esta porcaria não funciona. – Com o meu telemóvel, iluminei-lhe o corpo. A Sílvia estava também sentada na cama.
- Fogo, está um temporal medonho lá fora. Deixámos os carros na garagem, não deixámos?
- Sim, deixámos.
- Menos mal, então. Vou voltar para a cama e ver se consigo dormir. Até amanhã.
- Dorme bem, babe.

Regressei ao meu quarto e deitei-me. Estava a esforçar-me para adormecer novamente, mas era impedida por aquele som da chuva a bater sem tréguas na persiana do meu quarto. Foi então que fui acometida por uma vontade súbita. Voltei a pegar no telemóvel que tinha pousado sobre a mesinha de cabeceira e procurei o número do David. Estava preocupada e precisava de falar com ele para me acalmar. O polegar esteve quase a ceder à tentação, mas um rasgo de racionalidade não me deixou cometer tal loucura. “Kika, por favor, são quatro da manhã!”, censurei-me em pensamentos. Mas esta luta intensiva entre o coração comandado pela preocupação e a cabeça dominada pela razão despertou-me ainda mais. Dei voltas e voltas na cama, procurando uma posição que me serenasse o espírito e esperando ansiosamente que o som constante da chuva me embalasse num sono profundo. Mas não foi isso que aconteceu. A última vez que olhei para o telemóvel, o relógio marcava as sete e um quarto da manhã. Meia hora depois, uma música estridente despertou-me daquela noite desgastante e o ruído da tempestade continuava a ecoar na minha cabeça latejante, mais do que uma lembrança… assemelhava-se, sobretudo, a um presságio.


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O cansaço provocado pela noite mal dormida e a dor de cabeça que se tinha acentuado com as buzinadelas ouvidas no caótico trânsito durante o percurso até ao Seixal tinham levado o meu mau humor até ao limite máximo. Soltei um quase inaudível “bom dia” ao entrar na empresa e subi as escadas até ao meu gabinete sem os habituais sorrisos. Facto estranhado sobretudo pelo senhor António, a quem ainda ouvi perguntar-me se estava tudo bem.
Assim que entrei no gabinete, fechei a porta e sentei-me com a cabeça caída sobre a secretária. Lembrei-me da minha mãe dizer-me que devia ter dado um uso diferente aos dias de folga que tinha para gozar e arrependi-me por não ter guardado um desses dias para uma situação como a que estava a viver. Apetecia-me tanto voltar para casa! Mas não havendo nada a fazer senão trabalhar, deixei-me estar naquela posição mais uns minutos a aproveitar o silêncio e a tentar arranjar forças para enfrentar aquilo que supunha vir a ser um duro dia de trabalho. Mas alguém resolveu incomodar o meu descanso e não podia ser pior pessoa.

- Posso? – Perguntaram, enquanto davam três leves pancadas na porta.
- Sim, entre! – Respondi, levantando de imediato a cabeça e aproveitando para ligar o computador.
- Doutora, sente-se bem?
- Sim Salomé, está tudo óptimo. Diga, por favor! – Pedi-lhe, cheia de vontade que ela se pusesse a andar dali para fora.
- Parece que não escolheu muito bem os dias para estar de folga. Com este tempo não deve ter conseguido aproveitar o seu passeio. – A Salomé tentava mostrar-me um ar de preocupação, mas eu conseguia descortinar-lhe um traço de cinismo no rosto. O que me deixou ainda mais irritada.
- Ah, não precisa de preocupar-se comigo. E aposto que não veio aqui para me dizer o que eu devo ou não fazer com as minhas folgas, já que a minha vida pessoal, com toda a certeza, não lhe diz respeito.
- Não, claro que não. – Respondeu-me ela, meia atrapalhada.
- Então diga de uma vez por todas o que me quer, que eu tenho mais do que fazer. – Era quase incontrolável aquela sensação de que quanto mais tempo ela estava à minha frente maior era o meu grau de impaciência.
- Eu vim só trazer-lhe uns papéis que o Dr. Gonçalves pediu que lhe entregasse e também dizer-lhe que várias empresas de catering já ligaram a pedir marcação de reuniões por causa do aniversário da empresa.
- Ok, muito obrigada. Envie-me só os nomes das empresas e das pessoas que ligaram que eu vou já entrar em contacto com eles.
- Já enviei Doutora, hadem estar aí no seu e-mail… – Retorquia aquela figurinha tentando a todo o custo mostrar serviço.
- HÃO-DE. – Soltei, quase num grito.
- Desculpe?
- Diz-se “hão-de”, Salomé. – Continuei de uma forma quase desesperada. – Eles hão-de estar aí. “Hadem” não existe sequer. Percebeu?
- Percebi – No mesmo momento em que vincava a palavra, a Salomé quase me “matava” com o seu olhar humilhado e enraivecido. – Estou a ver que hoje está para implicar comigo. – Continuou, enquanto me virava costas e se dirigia para a porta.
- Não, estava só a corrigi-la. Parece-me muito benéfico tanto para si como para a empresa evitar que dê essas facadas na língua portuguesa de cada vez que atende a porcaria do telefone. – A última parte da frase foi quase gritada e interrompida pelo bater da porta, que a Salomé tinha fechado com toda a força. – Idiota, pá! A chatear-me logo de manhã. Mas que raio queria ela dizer com “passeio”? Mas o que é que ela sabe da minha vida? Coscuvilheira esta gaja, pá! – Continuei a resmungar para com os meus botões, enquanto abria na internet as edições on-line dos jornais para me actualizar sobre as notícias do dia.

A má disposição foi-se esfumando com o passar das horas, por entre carradas de e-mail, telefonemas e papéis. E se é verdade que os intervalos para o café com a Matilde e o João, as mensagens trocadas com a Sílvia e a surpresa que preparei para a minha mãe – cantando-lhe os parabéns pelo telefone enquanto todos os seus alunos faziam coro e lhe ofereciam um ramo de flores que a minha irmã lhe tinha ido levar em nosso nome – me ajudaram a recuperar o sorriso, certo é que foi o jeito meigo do David que me devolveu o brilho aos olhos naquele dia tão cinzento. Combinamos aproveitar que a Sílvia ia ter com o Gu a Odivelas para fazer um jantarzinho lá em casa. E foi a pensar no que iria ser a ementa, no que iria vestir, nas compras que ainda teria de fazer que eu recuperei toda a minha habitual adrenalina. A minha saída da empresa foi, por isso, uma verdadeira antítese da entrada. Despedi-me do senhor António com um sorriso rasgado e, a fervilhar de paixão, rumei a casa para preparar o encontro com o David.


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Andava atarefada de um lado para o outro a preparar a sala para o nosso jantar. Antes, tinha já tomado um duche e colocado um pouco de base e blush na cara para tentar disfarçar as consequências de uma noite mal dormida. Tentava pôr-me bonita não só para o David mas também para mim, já que olhar-me ao espelho naquela noite baixara em muito o meu índice de auto estima.

O David tinha acabado de chegar ao prédio e ligou-me a pedir para colocar o carro no lugar vago que tínhamos na garagem. Minutos depois subiu, calmamente, pelas escadas. Vinha com um ar sereno, mas também ele exausto.

- Boa noite, meu amor! – Cumprimentou-me de sorriso rasgado.
- Boa noite gostosão! – Brinquei, puxando-o para o interior da casa para o beijar, depois de ter fechado a porta. – Como correu o teu dia?
- Bem e o seu? – O David ia tirando o casaco que pendurou no cabide do corredor, enquanto me fitava seriamente. – Aconteceu alguma coisa? Nossa, cê tá com uma cara!
- Aconteceu… – Entrei na cozinha e abri a porta do forno, perante o olhar preocupado do David – … aconteceu uma noite de insónia por causa da maldita tempestade.
- Verdade, cê acredita que acordei assustado e não conseguia mais dormir?
- Acredito! Eram sete da manhã e eu acordada. – Enquanto conversávamos, o David ajudava-me a colocar a comida numa travessa pronta a ir para a mesa. – Ainda por cima sem luz… fiquei três horas a contar carneirinhos.
- Ué, porquê não ligou para mim?
- Olha, ainda pensei nisso, mas não sabia se estavas acordado.
- Claro que estava. Não dava para dormir com aquele barulho. Parecia até que o prédio ia cair.
- Que parvos! Estivemos os dois a contar carneirinhos, quando podíamos ter estado a contar, sei lá, histórias de embalar um ao outro.

Partilhámos, naquele momento, uma gargalhada, enquanto seguíamos para a sala.

- Coloquei os dois pratos deste lado da mesa para vermos televisão. – Apontei para o lado direito, ao mesmo tempo que tentava colocar os utensílios de cozinha em cima da mesa sem os deixar cair.
- Não sei se foi boa ideia, não!
- Porquê, amor?
- Porque eu vou ficar olhando o tempo todo para aquela foto lá no fundo e não vou conseguir me concentrar no jantar. – O David falava num tom provocador, enquanto ocupava o seu lugar na mesa.
- Vais te concentrar, vais. Sabes porquê? – Perguntei-lhe com um sorriso maroto. Ele acenava negativamente com a cabeça. – Porque aquilo é só uma foto e isto – frisei, apontando para o meu corpo – é tudo muito real.
- Pô, agora é que eu não vou jantar de jeito nenhum. – O David apressou-se a puxar-me contra si, beijando-me o pescoço, e eu contorci-me por entre arrepios e gargalhadas.


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Aproveitámos o jantar para conversar sobre o nosso dia e o nosso trabalho. O David mostrava confiança em mim ao falar-me abertamente sobre assuntos relativos ao plantel benfiquista e eu, por momento algum, permiti a mim própria envolver-me naquela conversa como adepta de um clube de futebol. Naquele momento eu era tão e somente a namorada do David e era apenas isso que queria ser de cada vez que falássemos francamente sobre as nossas vidas profissionais.
Depois de arrumarmos a cozinha, abrimos o sofá para o transformarmos em cama e preparámo-nos para ver um filme, aconchegados no corpo um do outro. A noite estava fria e a chuva tinha regressado com força, ameaçando uma nova noite de temporal. Para prevenir, guardei algumas velas junto ao sofá e fui buscar uma chávena de café, antes de me sentar junto ao David que estava já deitado.

- Kika, vai fumar aqui dentro? – A pergunta mostrava o quanto aquele homem já conhecia os meus hábitos. Nos nossos já frequentes jantares de amigos, o simples gesto de pegar numa chávena de café implicava automaticamente ir à varanda ou ao terraço fumar um cigarro.
- Claro que não. A Sílvia matava-me. – O David olhava para mim com ar confuso e eu bebia a primeira golada de café. – Eu já não fumo.
- ‘Tá falando sério? – A alegria era por demais evidente na voz e na expressão facial de David. – Nossa, cê não falou nada para mim.
- Desculpa, esqueci-me. Fumei o último cigarro antes de viajar para Paris.
- Mas porquê, ‘tá com problemas de saúde?
- Nada disso, amor. Simplesmente achei que ter um namorado saudável era um bom mote para me tornar também um bocadinho mais saudável. – Tranquilizei-o com um beijinho na testa. – Portanto, a culpa é tua! – Sorri-lhe docemente, bebi o resto do café e pousei a chávena em cima do móvel ao lado do sofá.
- Sua boba! Vem cá, vem. – O David puxava-me para baixo dos cobertores, juntando os nossos corpos. – Cê é maior valentona, viu?! – O seu beijo doce fez-me sentir orgulho na minha decisão. - E pode contar sempre com o meu apoio.

Envolvemo-nos num beijo tão apaixonado que os movimentos dos nossos corpos de intensos passaram, num ápice, para descontrolados. A respiração ofegante era um dos sinais mais evidentes do desejo que envolvia aquele entrelaçar de corpos, abafado pelo calor vindo do cobertor. Em menos de nada, estávamos seminus e consumidos por uma vontade louca de nos amarmos ali mesmo, na sala da casa que eu dividia com a minha melhor amiga.
- E se a Silvinha chega? – A pergunta sussurrada ao meu ouvido aumentou ainda mais o meu estado de êxtase.
- Ela não vem dormir a casa. – As minhas palavras sortiram o mesmo efeito no David, que de imediato tirou as últimas peças que cobriam os nossos corpos e procurou na sua carteira, espalhada pelo chão, um preservativo. E sem mais preocupações, entregámo-nos ao prazer.


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O duche quente que partilhámos depois daquele maravilhoso acto de amor relaxou-nos o corpo e a mente. De novo deitados no sofá da sala, então recomposto, abraçámo-nos e, quase instintivamente, preparámo-nos para mais uma noite de tempestade de chuva, relâmpagos e trovões… mas não só.

7 comentários:

  1. Olá Ana

    Valeu apena a espera,adorei como sempre mas soube a pouco apesar do mega capítulo...
    A Kika quando não dorme tem cá um feitio, já parece eu. Espero por um novo capitulo ansiosamente.
    Beijos

    Fernanda

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  2. Olá ... valeu a pena esperar por um capítulo como este. Claro que soube a pouquinho, mas aos poucos e sempre que possas deixa-nos um miminho, sim? (:
    Adoro mesmo.
    Beijinhos

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  3. Olá :)
    Ainda bem que gostas da minha fic e sim, acho qe a Kika e a Carolina iam-se dar bem :p
    continua porque é uma das fics qe mais gosto!
    beijinhos

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  4. Ai Aninhas nunca mas nunca nos devias deixar tanto tempo sem ler um capitulo teu... muito bom, mesmo muito bom.
    Já estou em pulgas para o próximo ;)

    Beijinhos.

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  5. Olha lá... mas isto é assim terminas o capítulo desta forma? Agora vou ficar mais uma vez super curiosa com o que virá daí, né???

    Falando sério, adorei como sempre e concordo com a Elsa, não devias estar tanto tempo sem publicares!!

    Compreendo que nem sempre é fácil, mas tenta lá postar o próximo rápido, sim???

    Beijinhos

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  6. Parece que a segunda noite de chuva, será foi bem mais animada do que a primeira :P

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