quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Capítulo 10 - A discussão, a verdade e a dúvida

 

Fiquei ali com o telemóvel colado ao ouvido enquanto escutava o que o Tiago me ia dizendo, ora de forma agressiva ora de forma carinhosa. Não o interrompi. Ele não parava de falar e de me insultar. Por entre alguns “amo-te” ía deixando escapar alguns insultos. Queria apenas que ele parasse. Limpei as lágrimas e não deixei por momento algum que ele percebesse que tinha chorado. O David continuava encostado ao meu carro a olhar para mim. E eu… não sei bem o que me chateava mais, se estar a ouvir o Tiago se estar a passar por aquilo em frente ao David, depois de um jantar maravilhoso. O Tiago terminou o monólogo dele com uma pergunta.

- Não foi o que me pediste? Que lutasse por ti e pelo teu amor?
- Já acabaste, Tiago? – Perguntei-lhe de uma forma bastante serena, o que estava a irritá-lo ainda mais, porque ele me conhecia o suficiente para saber que não era bom sinal.
- Já, já acabei, mas tu não me respondeste. – Disse enfurecido.
- Sim, foi isso mesmo que te pedi – continuava calma – há dois anos atrás, quando tu o fizeste pela primeira vez. Mas isso foi no tempo em que eu te amava mais a ti do que a mim própria. Agora, Tiago, eu gosto muito mais de mim do que alguma vez gostei de ti. E sou bem mais feliz assim. Entendes?
- Não, não entendo.
- Temos pena, então. Agora por favor não me voltes a ligar, muito menos para o meu número do trabalho.
- Arranjaste alguém? É isso? É isso, Kika?
- Oh, por favor… Nem te vou responder, porque isso não te interessa. O que eu faço da minha vida é da minha conta.
- Sim, claro, foste para Lisboa e viraste uma grande pêga igual às outras. NÃO É SENHORA SANTINHA? AFINAL NÃO PASSAS DE UMA PÊGA!

Pronto, agora o Tiago tinha-me tirado do sério. Completamente. O David deve tê-lo percebido pela minha cara porque se desencostou do carro de imediato e, claro, também deve ter ouvido o que o Tiago disse, já que aquele sacana estava aos berros, descontrolado. Eu claro, não consegui evitar levantar a voz a cada palavra que me saia boca fora.

- Tiago, tu és um sacana da pior espécie, tu não vales nada, tu metes-me nojo… tu….ai que ódio, Tiago, ódio, sabes o que isso é? É o que eu sinto por ti e vou sentir para o resto da minha vida, percebes? Ódio… não é rancor, não é mágoa, não é tristeza… é ódio, Tiago. Agora vai-te f**** e deixa-me ser feliz.

Assim que acabei de falar, desliguei a chamada e o telefone. Estava exausta e sentia a cabeça completamente à roda. Sentei-me numa espécie de muro junto ao passeio. Tirei um cigarro da carteira e acendi-o. Por momentos, nem me lembrei do David. Fumei o cigarro sem tirar os olhos do chão. Apaguei o cigarro, levantei a cabeça, dei um gole na garrafa de água que tinha na carteira, pus uma pastilha elástica na boca, fiz um balão, rebentei-o e soltei um sorriso. O David olhou para mim com uma cara de tremenda admiração.

- Desculpa, David, a sério, mil desculpas. Não era suposto isto ter acontecido. Mas sabes o que tem piada? É pensar: como é que das duas vezes, ok três, mas a do convívio com os meninos não conta, era trabalho… então, como é que das duas vezes que eu me encontro contigo tem de haver lágrimas? – Sorri. – Espero que isto não seja um mau presságio.
- Não é. Se calhar é o oposto. Pode significar que entre nós só vai ter sorrisos. – Respondeu-me o David que entretanto já se tinha sentado ao meu lado.
- Poça, espero que sim.

Olhei para o David. A luz do candeeiro batia-lhe na cara e as sombras tornavam-no ainda mais encantador. O David olhava em frente… era um olhar pensativo, quase distante. De repente, como se tivesse estado a ganhar coragem, olha para mim.

- Vocês terminaram faz tempo?

Não me apetecia nada ter aquela conversa, mas depois daquela cena achei que lhe devia pelo menos uma explicação.

- Sim. Quase oito meses.
- E ele liga sempre?
- Não. Ao início ligava, mas eu expliquei-lhe que era irreversível e ele parecia-me conformado. Mas… o Natal mudou tudo. Eu fui a Coimbra, encontramo-nos num bar. Não nos falamos, mas se calhar era melhor tê-lo feito. Porque depois disso ele voltou às mensagens e às chamadas. Até ao dia do acidente.
- Quando você jogou o telemóvel fora?
- Isso mesmo. – Fiz uma pausa – não sabes como eu odeio ter de mudar seja o que for na minha vida por causa dos outros…
- Eu sabia que aquela resposta não estava completa.
- Hã?
- Quando você disse que veio para Lisboa sobretudo por motivos profissionais…
- Hum…
- Foi também para fugir do amor?
- Não… sim… sei lá. Digamos que a oportunidade de trabalho surgiu na hora certa. Mas sim, se calhar se não fosse Lisboa teria sido um outro local qualquer… com ou sem oportunidade de trabalho. Por isso, sim, acho que fugi. Mas não foi do amor. Foi do sofrimento.
- Traição?
- Duas vezes….
- Sacanagem…
- Na minha terra chama-se “filhadaputisse”
- Como? – soltou uma gargalhada.
- Vem de filho da pu…
- Já entendi, já entendi. - Sorrimos.
- Mas já passou, já lá vai…
- Não parece.
- Porquê?
- Porque tem algo no seu olhar…
- Só se for um ódio interminável…
- Pode ser… só você e Deus é que sabem!
- Sim, acredita!

Deixei por momentos que o meu pensamento voasse de novo àquele fim-de-semana quente de Junho de 2010. E senti uma dor forte…

- Vamos embora David? Já deve ser tardíssimo.
- Quase uma da manhã – disse-me enquanto olhava para o relógio.
- Pois, vamos então, que tu tens treino de manhã.
- É, e você fica dormindo até bem tarde, não é? – Sorriu
- Sim, espero que sim.
- Então, xau, a gente se vê.

Voltámos a dar dois beijinhos e sorrimos ternamente um para o outro. Começamos a afastarmo-nos

- Com certeza. – Voltei a levar a rosa vermelha ao nariz e cheirei-a. A rosa nunca tinha saído da minha mão, nem durante a conversa acesa com o Tiago. – Obrigada, pela rosa, pelo jantar, pela companhia. E desculpa.

Viramos costas. Eu abri a porta do meu carro e estava prestes a entrar, quando…

- Ana?
- Sim – O David caminhava em direcção a mim.
- O seu número? Você me dá?
- Sim, claro, já me esquecia. – Comecei a tentar pensar no número e não me lembrava. – Desculpa, diz-me lá o teu que eu mando-te um toque. Quando comprei o telemóvel novo, mudei de número e juro que não me lembro… – Sorri
- Então, vai apontando.

Digitei o número, pus a chamar e o telemóvel dele tocou. Tinha a música “Wonderful World” do James Morrison.

- Adoro a música. – Disse-lhe, enternecida.
- Também eu – Sorriu-me.
- Xau. Boa noite.
- Xau. Boa noite também para você.

Olhámo-nos olhos nos olhos durante uns bons segundos antes de cada um seguir o seu caminho e eu juro que senti borboletas no estômago naquele momento. Já tínhamos cruzado o olhar durante o jantar por várias vezes mas nenhuma ocasião tinha sido tão intensa como aquela. Foi um olhar profundo, intenso… quase invasivo. Breve… mas forte o suficiente para fazer suspirar.
Entrei no carro e arranquei. O David ia à minha frente. Percorríamos, os dois, o mesmo caminho. Passámos pelo local onde tínhamos batido há duas quase duas semanas. “Oh que saudades do meu bolinhas”, pensei. O David fez-me sinal de luzes e eu quase lhe esticava o dedo do meio. Sim, ele estava a meter-se comigo mas eu tinha saudades do meu “bolinhas”. Sorri. Afinal, se não tivesse sido o acidente aquele jantar não teria existido. Seguimos em frente, chegámos a um cruzamento e eu segui para a direita e ele virou para a esquerda. Acendi um cigarro e olhei pelo retrovisor. “Espera lá, eu já vi este filme”, soltei uma gargalhada. Estávamos a fazer exactamente o mesmo trajecto que no dia do acidente. “Hum… cheira-me que somos quase vizinhos, Caracolinhos”.
Entrei no meu quarto e já estava preparada para me despir quando reparei que tinha a persiana aberta. Aproximei-me e não resisti a olhar para o prédio que estava em frente ao meu, lá ao fundo, no topo oposto da rua. Havia apenas uma única persiana aberta e uma única luz acesa. Havia um vulto, mas assim tão longe não passava disso mesmo… de um vulto, encostado à janela.
O meu telemóvel tocou. Tinha recebido uma mensagem do David Luiz.

“Adorei o jantar… e a companhia. Dorme bem. Beijo, David”

Respondi-lhe também encostada à janela e quase sem tirar os olhos daquela luz e daquele vulto.

“Também adorei… Obrigada. Boa noite. Beijo, Ana”

O vulto desapareceu da janela, a persiana foi corrida e a luz apagou-se. Eu fiz o mesmo. Afastei-me da janela, baixei a persiana, deitei-me e apaguei a luz. “Será possível?”, perguntei baixinho como se alguém estivesse ao meu lado, “Oh não, deves estar a fazer filmes. Dorme, Kika, dorme”. Virei-me, pensei naquela troca de olhares profunda e adormeci.

4 comentários:

  1. Muito bom este capítulo ;)
    Adoro a troca de olhares.... acho q pelo olhar dizemos mta coisa ;)
    beijinhos
    SP

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  2. aiiii eu adoro adoro adoro esta fic,posta mais um pouquinho por favor!

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  3. Aquela trocas de olhares... é uma coisa do outro mundo. Aposto que tanto um como o outro desejavam mais do que isso.

    Marisa

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