sábado, 18 de setembro de 2010

Capítulo 12 - Leva-me coração!

 

Apesar do frio típico do final de Janeiro, o dia estava bonito. O sol batia-me na cara e iluminava-me o caminho. Eu sentia-me leve que nem uma pena. Conduzia devagar. Queria tirar o máximo de proveito daquela viagem. Fui para Sul. Recebi uma mensagem no telemóvel. Era do David.

“Bom dia. Você tem de parar de andar na rua provocando acidente :) Boa folga. Beijo, David”

Eu sorri e respondi-lhe de imediato e no mesmo tom.

“Bom dia. Eu tenho é que te dar umas lições de condução :) Bom trabalho. Beijo, Ana”

Aumentei o volume do rádio e cantei que nem uma louca. Não sabia ainda para onde seguia, mas tinha uma pequena desconfiança. Conhecia tão bem o meu coração como ele me conhecia a mim. Ao contrário do que muitas vezes acontecia, naquele dia estávamos de acordo. Queríamos estar apenas onde nos sentíssemos felizes. E foi assim que, ele a comandar e eu a conduzir, chegámos de sorriso rasgado à Praia do Meco. O meu coração e eu, em perfeita sintonia!
Parei o carro, vesti o casaco, coloquei o meu gorro e saí. Caminhei pelo areal durante momentos. O vento que me batia na cara parecia lavar-me a alma e eu sorria. Era um sorriso de quem estava de bem com a vida. O som das ondas a rebentarem embalava os meus pensamentos. Pensava sobretudo em mim e fazia-o em voz alta para que todos pudéssemos ouvir. E todos éramos eu, o meu coração, o mar, as gaivotas, o vento.
Lembrava o quão difíceis tinham sido aqueles primeiros dias longe da minha família e dos meus amigos. E ao recordar, juro que podia sentir o cheiro e ouvir o riso de cada um deles separadamente. Pensei na quantidade interminável de lágrimas que tinha derramado, nas vezes sem conta que os meus soluços a meio da noite acordavam a Si que, com a maior paciência do mundo, se vinha deitar ao meu lado, me fazia um cafuné e me dizia baixinho “calma, minha Kika, eu estou aqui”. Pensava na Si e na sorte que tinha em tê-la como minha amiga. Oh como ela me conhecia tão bem, como ela estava sempre presente. “Nunca vou conseguir viver sem a minha Si”. Pensava no quanto me tinha custado habituar àquele novo trabalho e ao feitio do Dr. Gonçalves, e no medo que sentia todos os dias pensando que seria despedida. Mas pensava também na luta que tive e na forma como rapidamente me tornei profissionalmente agressiva mas também bem sucedida. Pensava nos novos amigos que tinha feito, em especial no Paulo… no seu sorriso, no seu jeito de falar, nas nossas discussões, nos raspanetes que ele me dava, no quanto ele me tinha feito crescer e no como me tinha ensinado a gostar tanto de mim. Pensava no David, no acidente, na forma rude como o tinha tratado, na minha arrogância… e no meu encantamento. Aquela cara, aquele sorriso, aqueles lábios, aquela voz, aquele corpo… aquele olhar. Sorri terna e prolongadamente.

Dei meia volta de braços abertos e caminhei em direcção ao meu carro. Foi uma caminhada lenta, saboreada. Não houve, naquele regresso ao passado, uma única recordação má, uma lembrança sequer do Tiago, um único rasto da droga e do álcool consumidos exageradamente naquele passado mês de Junho. Nada naquele dia me fazia relembrar o lado negro da minha vida. Sobretudo, porque olhava para o mais íntimo de mim e, com uma profunda clareza, conseguia ver o que de mais puro eu tinha, eu era e eu sentia.

Cheguei ao carro e encostei-me por uns segundos para tentar acalmar a respiração acelerada que a caminhada tinha provocado. Fechei os olhos por momentos. Aquele momento era perfeito. Mas tinha acabado de ser interrompido pelo sinal de chamada do meu telemóvel. Olhei e fiquei ainda mais feliz do que estava.

- Olá minha mãezinha.
- “Olá minha Kika. Então, filha, como estás?”
- Estou bem, aliás, óptima. Estou de folga.
- “Ai que bom. Já comprei todos os jornais hoje e vi logo quais os textos que eram teus”.
- Oh, conheces-me tão bem.
- “Então, e que andas a fazer?”
- Olha vim à praia e soube-me tão bem, mãezita.
- “Então e o almoço?”
- Que horas são? – Perguntei enquanto me apercebia que de facto o meu estômago começava a reclamar.
- “Quase meio-dia.”
- Hum, então tenho de ir, sim. Não sei bem onde, mas já penso nisso. Olha como estão o pai e a mana?
- “Estão bem, ia mesmo falar deles. Não te esqueças que a mana faz anos deste sábado a oito.”
- Não, não esqueço. Já comprei o presente e vou dar-lho pessoalmente.
- “Vens a Coimbra filha?” – percebia nas palavras da minha mãe uma felicidade imensa.
- Sim, vou. Mas não digas nada à mana, quero fazer-lhe uma surpresa.
- “Ok, fica descansada. Vá, vai lá almoçar que eu vou fazer o mesmo.”
- Sim, minha flor. Vou já.
- “Olha, e a Si, como está?”
- Está fina e fresca. Sempre de um lado para o outro a trabalhar que nem uma louca.

Sorrimos as duas. Despedimo-nos, eu desliguei e entrei no carro. O meu estômago dava mais um sinal de fome. “Onde raio vou almoçar?”, perguntei a mim mesma antes de dar às chaves. “Hum, já sei”. Sorri. Voltei para o Seixal.

********************

Estacionei o carro ainda um pouco longe da casa do Sr. José. A rua onde ele vive é demasiado estreita e, apesar de me considerar uma condutora hábil, tinha bastante receio de bater com o meu “cinzentinho”. Era bastante picuinha com o meu carro novo, com excepção para os cigarros que lá fumava dentro, situação que estava a começar a remediar. O táxi estava estacionado junto ao muro da casa. Entrei pela pequena cancela e bati. Pressenti alguém a abrir a porta e fiz um sorriso de orelha a orelha. Um sorriso que aumentou assim que vi a cara de surpresa da dona Madalena.

- Oh minha rica filha – disse-me quase com a lágrima no olho – Dá cá duas beijocas. Estou farta de perguntar ao meu Zé por ti – Deu-me um abraço tão forte que quase me fez estalar as costelas.
- Que saudades que eu tinha suas.
- E eu tuas, rica filha, e eu tuas. Entra, ia agora pôr o almoço na mesa.
- E há lugar para mais uma?
- Há sempre – respondeu-me, puxando-me até à cozinha – Ó Zé, olha quem vem almoçar connosco.

O Sr. José já estava sentado no seu lugar. Sorriu, levantou-se e deu-me um abraço.

- Menina Ana, há tempos que não a via!
- É verdade, Sr. José. Como está?
- Estou bem, menina. Tenho saúde, tenho trabalho. E por falar em trabalho, não se faz nada hoje menina?
- Folga, Sr. José, folguinha da boa.
- Ai que maravilha. O seu patrão anda simpático.
- Oh Zé, não é nada disso. Ela é que é merecedora com certeza, que vê-se que é uma menina aplicada.
- Obrigada, dona Madalena.
- Da nada, rica filha. Vamos mas é comer que já são horas.
- Oh Sr. José, deste domingo a oito preciso que me vá buscar à estação. Vou a Coimbra passar o fim-de-semana. A minha irmã faz anos e eu quero ir lá. Vou na sexta e volto domingo.
- Ok menina. Já sabe, é só ligar-me a dizer a que horas chega.
- Sim senhor – gracejei.

O almoço correu lindamente. O Sr. José saiu no seu táxi para ir trabalhar e eu fiquei a pôr a conversa em dia com a D. Madalena. Sentia-me tão bem quando ia a casa do Sr. José. Não podia nunca esquecer a preocupação dele comigo durante a primeira viagem, as palavras sábias, a disponibilidade apresentada. Não podia esquecer e nem sabia como agradecer-lhe. Dizia-lhe várias vezes “Oh amigo José tenho uma dívida de gratidão para consigo para toda a minha vida” e ele respondia-me docemente “oh, a menina agradece-me de cada vez que solta uma das suas gargalhadas. Não há melhor retribuição que é essa”.

Despedi-me da D. Madalena eram cinco horas. A tarde começava a transformar-se em noite. Pensei que o melhor seria ir para casa e aproveitar o resto do dia de folga estatelada no sofá.

Conduzia da mesma forma vagarosa. Não conseguia acelerar, queria desfrutar de todos os momentos possíveis. Mas agora, ao contrário do que tinha acontecido de manhã, apreciava ao máximo tudo aquilo pelo que ia passando. As casas, as pessoas, os carros, as ruas, as lojas, os letreiros, os jardins, as luzes, os holofotes, os holofotes, os HOLOFOTES…

“Oh não coraçãozinho, nem penses, vamos para casa” – dizia eu pondo a mão do lado esquerdo do peito sem no entanto conseguir tirar os olhos daqueles holofotes. Mas o meu coração não me obedecia. E parecia que o meu carro também não. Numa mistura de instinto com desejo consciente virei na primeira à direita e, quase que sem me dar conta da distância e do tempo percorrido, estava  estacionada no Centro de Treinos do Benfica, no Seixal. O parque estava cheio, ouvia-se barulho no interior. “Ora merda, podia ser à porta fechada. Assim era tudo muito mais fácil”.


2 comentários:

  1. A descrição é perfeita.
    Hum.. lá vai o David ficar todo feliz por encontrar uma cara nova no treino :P

    Marisa

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  2. estou a adorar, isto vicia *.*

    Sofia

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