segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Capítulo 14 - Não volto a ficar de folga

 

Demorei mais do que normal a chegar a chegar a casa, pois além de ter aproveitado o caminho para reflectir e me arrepender profundamente da estupidez que tinha acabado de cometer, ainda parei na pastelaria para beber um café e comprar cigarros.

Entrei em casa um pouco a medo. Já tinha avisado a Si de que o Paulo lá ia jantar. Também já a tinha preparado para uma eventual conversa que ela pudesse não perceber inicialmente mas que prometi explicar-lhe. A Si estava na cozinha.

- Hum, cheira aqui tão bem – disse-lhe enquanto me dirigia à sala para pousar as minhas coisas.

Entrei na cozinha e deparei-me com o Paulo sentado a sorrir cinicamente para mim.

- Que foi? – Perguntei-lhe seca e envergonhadamente.
- Ia jurar que estava a delirar quando te vi lá.
- Também eu pensava que estava a ter um pesadelo quando ouvi a tua voz.
- Mas depois raciocinei e pareceu-me lógica a tua presença.
- Sim? Pois a mim a tua presença pareceu-me desnecessária.
- Porquê?
- Porque me teria evitado passar pela vergonha de ter mentido.
- Ah… Mas sabes que só é apanhado a roubar quem rouba.
- Andaste a roubar Kika? – Perguntava a Si de olhos esbugalhados.
- Claro que não, é uma metáfora – respondi continuando aquela conversa com o Paulo – mas se tu fosses suficientemente inteligente, Paulinho, eu não tinha sido apanhada. Ah, mas tu gostas de me irritar.
- E tu se fosses suficientemente inteligente tinhas dito a verdade.
- Qual verdade? Que estava ali mas nem sabia muito bem porquê?
- Não. Que estavas ali por um motivo.
- Mas eu não sei porque raio de motivo lá fui. Percebes?
- Não, não percebo. Ninguém vai a lado nenhum sem saber porquê. A não ser que seja obrigada, o que não me parece o caso.
- Foi um instinto.
- Consciente?
- Oh vai à merda.

A Si ia olhando para cada um de nós à medida que falávamos. O facto de não estar a perceber patavina da conversa começava a irritá-la e isso podia ver-se na sua cara.

- Ok, já chega. Importam-se de me explicar o que se passou? – Perguntou a Si irritada – Kika? Paulo?
- Eu explico… – disse-lhe calmamente.
- A Kika foi ver o treino do Benfica – disparou o Paulo.
- O QUÊ? – Perguntou a Si a rir.
- Cala-te – disse abruptamente – eu explico. Eu estava a passar pelo Seixal, vi os holofotes ligados e não sei bem porquê resolvi ir lá ver o treino.

Fomos contando à Sílvia o que se tinha passado. A Si olhava para mim com um ar de gozo tremendo, o que me estava a irritar ainda mais.

- E porque é que mentiste? – Perguntava-me ela.
- Porque é parva – respondeu o Paulo apressadamente.
- O que é vocês queriam que eu dissesse??? – Gritei.

Abri a portada da varanda da cozinha e acendi um cigarro. Olhei para eles e respirei fundo. Percebi que me tinha exaltado.

- Desculpem. Opá, sinto-me tão mentirosa, tão envergonhada. Ainda por cima fui apanhada.
- HÃ??? – Perguntaram em uníssono.
- O David disse-me que me tinha visto no treino… (pausa) … todo.

Soltaram, os dois, uma gargalhada monumental. Eu ali a sentir-me pessimamente e eles a rirem que nem uns malucos. O pior é que eu não consegui evitar rir-me também.

- Opá. Vocês são lixados.

Apaguei o cigarro e entrei. Sentei-me na mesa junto a eles e respirei fundo. Tinha mesmo de lhes dizer que a culpa tinha sido do meu coração que não tinha conseguido resistir ao encanto da noite anterior. Tinha também de lhes explicar que não disse a verdade porque tinha medo… medo das sensações que o David provocava em mim e da reacção que a minha cabeça e o meu corpo estavam a ter às mesmas; daquele sorriso parvo com que tinha acordado e que ainda não tinha conseguido tirar da cara; de não estar a conseguir controlar os meus impulsos. Tinha medo que aquilo não passasse de uma patetice minha e que aquele jantar tivesse sido apenas mais um, e talvez o único, nas nossas vidas. Tinha medo do que pudéssemos, eu e o David, vir a sentir, mas também receava que não viéssemos a sentir nada. Pior, tinha medo de começar a sentir e não ser correspondida. E mais ainda, tinha medo do que ele pudesse começar a sentir e que eu não fosse capaz de retribuir.

Eu falava, falava, falava e os meus amigos permaneciam impávidos e serenos a escutar tudo o que dizia.

- Sabem uma coisa? – Perguntei.
- Diz – responderam em uníssono, fazendo cara de quem esperava uma declaração bombástica.
- Não volto a ficar de folga. Só me faz mal.
- Oh Kika, tu não existes. – Dizia-me a Si desapontada – Olha, sabes qual é o teu problema? Pensar. Pensas de mais. Não penses tanto que ainda esturricas o cérebro.
- Por falar em esturricar, não vos cheira a nada? – Perguntava o Paulo enquanto cheirava o ar.
- Merda. O forno… o frango… – gritava a Si, levantando-se num ápice da cadeira e voando em direcção ao fogão. – Opah, está tudo queimado. E agora?
- Telepizza, boa noite… – disse o Paulo, imitando um atendimento telefónico.

Eu comecei a rir á gargalhada e nem com a Si a implorar-me eu conseguia parar. Ri até me doerem os abdominais, as bochechas, tudo. Peguei no telefone e liguei para a pizzaria perto do bairro para fazer a encomenda, que chegou meia hora depois. Levámos a pizza para a sala e comemos enquanto jogávamos uma partidinha de bowling na Wii. Em pista eu era uma grande aselha, mas na consola ninguém me batia.

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Ao entrar no quarto, acendi a luz e não resisti a procurar qualquer sinal de presença naquela janela distante. Queria dizer qualquer coisa ao David, mas receava dizer-lhe algo que denegrisse ainda mais a minha imagem. Por outro lado, achava que pedir desculpa seria meio caminho andado para evitar qualquer atitude negativa que ele pudesse vir a ter comigo. “O que é que eu faço?”. Não obtive resposta, mas apercebi-me de que a luz da tal janela estava acesa. Conseguia perceber um vulto encostado ao peitoril. Peguei no telemóvel e preparei-me para escrever uma mensagem para o David. Mas a minha indecisão fez-me permanecer alguns minutos sem conseguir carregar numa única tecla. Estava perdida em dúvidas quando o meu telemóvel tocou. Era uma mensagem do David. Respirei fundo antes de a ler.

“Você é corajosa. Nunca vi uma lagarta aguentar tanto tempo num treino do Glorioso:) foi lá para terminar sua folga em beleza?:) Beijo”

Não sabia se havia de rir ou chorar. Aquela situação era tão constrangedora que só me apetecia fingir que nem tinha visto a mensagem. Mas não podia fazê-lo. Resolvi arriscar uma resposta que me ajudasse a esquivar do assunto.

“As lagartas são corajosas por natureza. Não. Fui à procura de dicas para dar ao meu treinador. Mas não vi nada de interessante :) Beijo”

Ele respondeu-me segundos depois e eu voltei a temer ler a mensagem.

“Sério? Então foi tempo perdido?”

“Porra, eu sabia. Esta já não traz smile. E agora o que respondo?”, perguntava, enquanto dava mais uma espreitadela à janela que acreditava ser a dele. “Agora, Kika, dizes-lhe pelo menos uma verdade hoje”.

“A nível desportivo foi. Mas encontrar no mesmo sítio os dois homens mais bonitos de Lisboa, não foi perda de tempo, acredita :) ”

Tinha noção de quão provocadora era a minha mensagem, mas enviei-a na mesma. A resposta não demorou.

“O Paulo e o Ruben? Você tem mau gosto mesmo ;)”

Sorri. Percebi também que a conversa ia continuar. Ele não mandava beijo nem assinava a mensagem, o que para mim era um sinal claro de que aquela não era a última.

“Não estava a falar do Ruben. Estava a falar de ti. Então, tenho assim tão mau gosto? :)”

Desta vez a resposta dele demorou um pouquinho mais. Instintivamente, olhei para a janela. A luz continuava acesa e alguém continuava encostado. O meu telemóvel deu sinal.

“Agora fiquei sem jeito. Sou suspeito para comentar esse seu gosto”

Talvez fosse essa a minha intenção. A melhor defesa é o ataque, e não queria ser eu a ficar sem jeito.

“Pois és. Mas eu garanto-te que sou uma pessoa com bom gosto :) E trabalhadora, por isso vou dormir. Boa noite. Beijo”

A resposta dele chegou logo depois.

“Acredito. Então boa noite e bom regresso ao trabalho. Beijo.”

Atirei o telemóvel para cima da cama enquanto via aquele vulto afastar-se da janela, a persiana baixar e a luz apagar-se. Fechei também a minha, vesti o pijama e enfiei-me debaixo dos cobertores. Coloquei o telemóvel na mesinha de cabeceira e desliguei a luz. Estava quase a adormecer quando o meu telemóvel tocou de novo. Intrigada peguei-o para ler a mensagem. Era do David.

“Desculpa, nem retribui o elogio. Você estava linda hoje… como está sempre que te vejo :) Beijo”

Senti o meu corpo todo estremecer. “Agora eu é que fiquei sem jeito” murmurei enquanto me sentia a corar. Respondi-lhe com um simples “obrigada. boa noite. beijo” e voltei a pousar o telemóvel. Agarrei-me com força à almofada e encolhi os meus joelhos até ao peito. Resolvi seguir o conselho da Si e não pensei no assunto. Deixei apenas que o sorriso dele me iluminasse o caminho em direcção aos sonhos.

6 comentários:

  1. Que troca de msgs tão linda :)
    Li todo o capitulo com um sorriso, está fantastico. Ai aquela janela:)
    ADOROOOOOO
    Obrigada pelos comentários sempre simpáticos deixados no meu blog. bjinho

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  2. adorei! cada vez gosto mais da tua fic. está fantastica!
    sandra

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  3. Muitos Parabéns! Continua fantástica a tua história. E concordo com a Ana Mar... aquela janela é simplesmente deliciosa...
    BS

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  4. Aquela janela ainda vai dar muito que falar.
    A troca de mensagens é apaixonante :)

    Marisa

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  5. Obrigada meninas por toda a simpatia nos comentários que me deixam.

    beijinhos

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