Encostada ao parapeito da janela, contemplava Paris. Apesar da noite escura, um sem fim de luzes pintavam a cidade de tons amarelados e tornavam-na ainda mais esplêndida. Mas o brilho daquele clarão não conseguia amenizar o sufoco que eu sentia, enquanto esperava pelo David. Estava numa pequena sala que o Paulo tinha providenciado para que o nosso encontro fosse o mais discreto possível. Sentados no sofá, a Raquel e o Ruben, matavam as saudades com beijos e palavras de amor. Indiferente à presença do casal, eu continuava de olhos postos no horizonte, profundamente compenetrada naquele cenário. De tal forma que não ouvi o barulho da porta a abrir quando o David entrou na sala. Apercebi-me da sua presença apenas pelo reflexo da sua imagem no vidro da janela. Deixei-me estar encostada por mais alguns segundos só pelo prazer de o poder admirar. Mas quando o meu olhar se fixou na sua boca, perfeitamente delineada por um sorriso, um impulso tomou conta de mim e eu não ofereci qualquer resistência. Virei-me de frente para o David e num gesto decidido e silencioso os nossos corpos colaram-se e os nossos lábios uniram-se lentamente. O David segurava a minha cara com as duas mãos e eu envolvia os meus braços à volta do seu tronco. Apertei-o contra mim e fechei os olhos. Aquele primeiro beijo suave foi-se intensificando até se transformar numa explosão de sensações. Quanto mais as nossas línguas brincavam, mais os nossos corpos se comprimiam. Beijávamo-nos com paixão e eu tinha a certeza de que queria prolongar aquele beijo até à eternidade. Selámos o momento com pequenos beijos doces e permanecemos em silêncio, simplesmente a olharmo-nos. O brilho dos olhos do David iluminava o meu sorriso. Ele beijou-me a testa levemente, entrelaçou os seus dedos nos meus cabelos e puxou-me a cabeça suavemente.
- Te adoro – Disse-me, num sussurro. A sua voz meiga e a sua respiração fizeram-me estremecer.
- Beija-me – Pedi-lhe, sem conseguir responder-lhe com as mesmas palavras.
O David beijou-me de forma carinhosa. Um beijo apenas interrompido pelo Ruben, que tossia de forma artificial. Eu e o David soltámos uma gargalhada. Estávamos tão focados um no outro que nos tínhamos esquecido dos nossos amigos.
- Já acabaram, pombinhos? – Perguntava o Ruben com ar de gozo.
- Não… mas você não deixa a gente continuar, fazer o quê?
- Manz, continuam com as lamechices ao jantar, pode ser? É que eu estou a morrer de fome.
- Ué, e elas podem vir jantar connosco? – Perguntava o David, admirado.
- Não, mano, nós é que vamos jantar com elas.
- Sério? – A admiração do David aumentava.
- Sim, caracolinhos – Olhei-o e contei-lhe as novidades que o Paulo nos tinha deixado antes de ele chegar – O Paulo já falou com o treinador e vocês estão dispensados de jantar com a equipa. Vamos jantar ao hotel onde eu e a Raquel estamos instaladas.
- Que legal. – O David sorria como uma criança que acaba de receber um presente.
- Mas há mais mano – interrompeu o Ruben, levantando-se do sofá, e caminhando para a porta com a Raquel – A dispensa prolonga-se até às onze e meia da manhã de amanhã. – O Ruben piscou-lhe o olho e saiu.
- Ele ‘tá falando sério? – O David olhava para mim à espera de uma confirmação.
Acenei-lhe com a cabeça, toquei com os meus lábios suavemente nos dele e saí. Ele seguiu-me. Percebendo o meu embaraço perante alguns olhares mais curiosos com os quais nos cruzávamos nos corredores até à garagem do estádio, a Raquel largou a mão ao Ruben e veio colocar-se ao meu lado. O Ruben sorriu e esperou pelo David para lhe fazer companhia. Depressa chegámos ao carro, emprestado pelo Paulo, e seguimos viagem até ao hotel.
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O recepcionista do hotel era o mesmo da tarde e já estava à nossa espera. Encaminhou-nos até ao restaurante que tinha, àquela hora, fraco movimento. Apontou para a mesa do canto e sorriu.
Já acomodados na mesa reservada pelo Paulo, fomos atendidos por um empregado que falava connosco em inglês. Fizemos o pedido e ele retirou-se, de forma elegante.
- Ainda bem o Paulo pensou em tudo. – Dizia a Raquel enquanto arredava a cortina e espreitava para a rua – Se o empregado só falasse francês, estávamos tramados.
Todos sorrimos. O jantar decorreu sempre num tom animado. Enquanto eu contava ao David tudo o que tinha acontecido naquele dia, ela ia acusando o Ruben, na brincadeira, de ser mau amigo por não o ter avisado da nossa presença em Paris. Por entre piadas e gargalhadas sonoras, o tempo passou a voar. Estávamos sozinhos no restaurante, a música ambiente tinha sido desligada e o empregado olhava para nós, entediado.
- Se calhar é melhor irmos andando. O homem precisa de descansar. – O Ruben levantou a mão e chamou o empregado – E nós também.
O funcionário veio até à mesa e informou-nos de que o jantar estava incluído na conta do hotel que, como era normal, só pagaríamos quando fizéssemos o check-out. Agradecemos-lhe, os rapazes deixaram-lhe uma gorjeta e saímos para o hall de entrada, onde estava já um recepcionista diferente. O Ruben colocou os braços por cima dos ombros da Raquel e beijou-lhe a nuca.
- Vamos subir, amor? – Perguntou-lhe carinhosamente.
- Sim, vamos. – Ela olhava então para nós – Boa noite meus queridos, até amanhã.
Ainda não tínhamos acabado de responder e já eles estavam de costas, caminhando em direcção às escadas. Eu e o David tínhamos ficado sozinhos, sob o olhar discreto do empregado do hotel. Apesar de cansada, eu não tinha ainda vontade de ir para o quarto. Sabia que estava uma noite fria em Paris, mas apetecia-me desfrutar da beleza nocturna da cidade e, sobretudo, fazê-lo na companhia do David. Ele leu-me os pensamentos.
- Vamo? – Questionou-me, esticando-me a mão.
Saímos do hotel de mãos dadas e caminhámos sob o olhar atento da lua e das estrelas. Dávamos passadas lentas. Sem precisar de o dizermos um ao outro, sabíamos que queríamos saborear aquele momento. Era como se os nossos movimentos vagarosos fizessem o tempo passar mais lentamente.
Alguns minutos depois estávamos junto ao Sena. Aproximamo-nos do muro de pedra e apreciámos o incrível reflexo dos austeros edifícios nas águas tranquilas do rio. O David debruçou-se ligeiramente, rodou a cabeça e o seu olhar acompanhou o curso das águas. Eu deliciei-me com a sua beleza. Tinha a certeza de que guardaria aquela imagem para sempre na minha memória, mas ainda assim senti necessidade de registar o momento. Tirei a máquina fotográfica da carteira sem ele perceber e disparei. O flash fê-lo voltar-se para mim.
- Não sei se esse é o meu melhor lado – Gracejou.
- Tu não tens um lado melhor. – Respondi-lhe enquanto revia a foto.
- Não? – Perguntou-me cabisbaixo.
- Não… – Fiz uma pausa, preparando a máquina para disparar – Todos os teus lados são perfeitos.
O David sorriu de forma encantador e eu voltei a disparar. Voltámos a unir as nossas mãos e seguimos pela margem do Rio Sena. Atravessámos uma ponte e parámos num parque. Escolhemos um local bastante iluminado, por precaução, e sentámo-nos no banco mais recatado com vista para o Grande Palácio. Apesar do avançar da hora e das baixas temperaturas, ainda havia meia dúzia de pessoas que, ligeiramente afastadas, passeavam e conversavam naquele jardim. O David sentou-se primeiro numa ponta do banco, colocando uma perna para cada lado.
- Senta aqui. – Ordenou-me carinhosamente, apontando para o meio das suas pernas abertas.
Eu sentei-me de costas para ele e deixei descair o corpo, descontraído, encostando a minha cabeça no seu ombro. Com os braços à volta da minha cintura, o David apertou-me suavemente e beijou-me delicadamente a bochecha. Mantivemo-nos assim, abraçados e em silêncio, durante um bom tempo. O abraço do David transmitia-me segurança e conforto. Sentia-me intocável. Naquele momento nada no mundo me faria sofrer, ou chorar… não enquanto permanecesse assim, com os braços do David à minha volta.
Com a máquina fotográfica ainda na mão, fui registando cada carícia, cada beijo, cada sorriso e algumas caretas que o David fazia.
Lá do alto, a lua sorria-nos e iluminava-nos os corpos e os corações. Nós contemplávamo-la e, em silêncio, agradecíamos-lhe a generosidade. Inundados pela beleza do luar, beijávamo-nos com carinho e ternura.
- Posso te confessar uma coisa? – Perguntava-me ele ao ouvido, enquanto revíamos as fotografias já tiradas.
- Podes.
- Nesse momento sou o homem mais sortudo do planeta. E o mais feliz também.
Eu sorri baixinho. Afastei o meu corpo do dele e num movimento quase acrobático, virei-me de frente. Afastei as pernas e, aos poucos, fui-me aproximando um pouco mais. Coloquei as minhas pernas por cima das do David que, percebendo a minha intenção, me agarrou pela cintura e me apertou contra ele. Com os corpos bem juntinhos, entrelacei-lhe as mãos nos seus caracóis e beijei-o apaixonadamente.
- És também o homem mais bonito do planeta… o que faz de mim uma mulher com sorte. – Sorri e roubei-lhe um doce beijo. Ele corou e fez-me uma festinha na cara. - David… (pausa) … que momento solitário foi aquele no final do jogo?
Ele desviou o olhar e fixou-o no céu, sorrindo.
- Foi ali que tudo começou. O sonho, a luta, o sacrifício, as vitórias…
- … Ah, o primeiro jogo com a camisola do Benfica. – Não o deixei terminar a frase. – O início de uma brilhante carreira…
- … E Ele – o David apontava para o céu – esteve comigo naquela noite, e voltou a estar essa noite…
- … e vai continuar a estar todos os dias, tenho a certeza. Estejas tu onde estiveres, faças o que fizeres.
Ele sorriu para mim e beijou-me suavemente.
- Pensei que você não acreditava em Deus?
- David… alguém deve ter mexido os cordelinhos para que os nossos caminhos se cruzassem. E esse alguém só pode ter sido Ele! – Agora era eu quem olhava e apontava para o céu. O David seguia o meu dedo com o olhar.
- Kika – chamava-me com entusiasmo – pede um desejo!
Uma estrela cadente passava naquele momentos. Ficámos os dois calados por instantes, de olhos fechados.
- Já pedi. E tu?
- Também.
A nossa cumplicidade deixava transparecer que tínhamos desejos semelhantes.
- Sabe que eu adoro você? – Perguntava-me por entre um beijo.
- Sei – Respondi-lhe por entre um arrepio – Vamos andando?
Ele não me respondeu. Simplesmente acenou com a cabeça. Levantámo-nos e iniciamos, de mãos dadas, o trajecto de regresso. Estávamos na margem do rio, a uns metros do início da ponte e, num ímpeto, o David parou.
- Que foi? – Questionei-o, tentando perceber o significado daquela paragem.
- Posso te perguntar uma coisa?
- Claro.
- Porquê você tá sempre evitando falar o que sente? – Ele olhava-me fixamente
- Não estou nada – Eu desviada o olhar numa tentativa de desviar também a conversa.
- ‘Tá sim. Eu te digo que te adoro, que ‘tou apaixonado, que ‘tou feliz e você nem responde.
- David…
- … Você não tem certeza do que tá sentindo, é isso? – Ele interrompeu-me, com uma voz entristecida.
- Se eu não tivesse certezas não estava aqui – Disse-lhe convicta.
- Então porquê você nunca fala? ‘Tá com medo do quê?
- De nada. – Respondi-lhe bruscamente – Outra vez essa conversa do medo?
- Desculpa, mas é que eu não consigo entender.
- Então eu explico-te – o meu desconforto com aquela conversa fazia elevar o meu tom de voz – Eu não tenho que te dizer seja o que for só porque tu também dizes. E eu não preciso de dizer o que sinto. Basta senti-lo. E eu sei perfeitamente o que sinto.
- Mas eu não. – O David começava também a elevar a voz.
- Não? – Perguntei-lhe irritada.
- Não. – Respondeu-me de forma agressiva.
- Não? – Voltei a perguntar ainda mais irritada.
- Já disse que não.
- Ok.
Larguei-lhe a mão abruptamente e comecei a andar em direcção à ponte. A intensidade dos meus passos aumentava à medida que me afastava.
- Onde você vai Kika? – Perguntava-me o David sem sair do sítio. – Volta para cá. Vamo esquecer essa conversa.
Eu continuava determinada, sem lhe responder ou sequer olhar para trás. Ele começou a seguir-me, sem no entanto chegar ao início da ponte.
- Kika. Kika, espera por mim.
Quanto mais eu me afastava, mais alto o David gritava. Eu estava já a meio da ponte, quando parei. Dei meia volta e encarei-o. Ele parou ainda na margem do rio e fixou os olhos em mim. Eu desviei o olhar e avancei em direcção às grades da ponte. Coloquei um pé de cada vez no terceiro ferro horizontal a contar do chão e segurei-me na barra superior.
- KIKA – Gritou-me o David, desesperado.
Eu podia ver o pânico na sua cara. Larguei as mãos lentamente e tentei e, com o olhar fixo no David, encontrar um ponto de equilíbrio. Apesar de estar a tremer de medo, afastei os braços num movimento lento e inspirei profundamente.
- ADORO-TE – Gritei com toda a força que tinha – ADORO-TE, OUVISTE?
- Desce daí sua maluca. – Apesar de furioso, ele não conseguia evitar o sorriso. Começou a caminhar na minha direcção.
- PARIS… EU ESTOU APAIXONADA PELO DAVID LUIZ MOREIRA MARINHO. – Num acto tresloucado eu continuava a gritar bem alto.
As poucas pessoas que ainda permaneciam no parque olhavam para mim estupefactas. Envergonhada, desci cuidadosamente do gradeamento. O David estava já no início da ponte. Assim que os nossos olhares se cruzaram, os nossos corpos iniciaram uma corrida frenética. Mal cheguei perto do David, dei um pulo e atirei-me para o seu colo. Enrolei as pernas à volta da sua cintura, com os braços segurei-me no seu pescoço e beijei-o intensamente. Ele apertava o meu corpo com força contra o seu. Eu afastei os meus lábios e comecei a percorrer-lhe a cara com beijos até chegar à orelha. Passei-lhe com a língua delicadamente no lóbulo e senti o David arrepiar-se de prazer.
- Assim você me deixa louco. – Sussurrou-me ao ouvindo, provocando em mim o mesmo arrepio.
- Eu adoro-te David. Nunca duvides disso.
Ele não me respondeu. Beijou-me simplesmente. Eu voltei a arrepiar-me, mas ambos percebemos que aquele pequeno tremor tinha sido provocado pelo frio que se fazia sentir. Eu deslizei lentamente pelo corpo do David, até ficar de pé. Voltámos a dar as mãos e seguimos até ao hotel.
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Entrámos o mais silenciosamente possível no hall de entrada e dirigimo-nos ao elevador, depois de acenarmos ao recepcionista. Caminhávamos frente-a-frente, sem nos conseguirmos parar de beijar. Como eu estava de costas para o elevador, foi o David quem carregou no botão. Uns segundo depois, o elevador parou por trás de mim e a porta abriu-se. Num movimento veloz, soltei-me do David e, com a minha mão no seu peito, fiz força para não o deixar aproximar.
- Boa noite David, até amanhã. – Disse-lhe com uma cara séria.
- Você não vai me deixar subir? – Ele olhava para mim surpreso e as palavras demoravam a sair da sua boca.
- Não. Eu sou uma senhora. – Tentei manter um ar austero, mas com a sua característica perspicácia o David percebeu que as minhas palavras não espelhavam a minha vontade.
- Tem razão, você é uma senhora – O David aproximou-se serenamente, o que fez com que desarmasse. Deu-me um terno beijo nos lábios e continuou – Uma senhora que ainda há pouco pulou no meu colo e fazendo assim… – aproximou a sua língua da minha orelha e com uma pequena lambidela fez-me estremecer – … me deixou louco. Por isso, cala a boca e entra aí – Com um gesto rápido o David empurrou-me para dentro do elevador.
- Aaahhh – A sorrir, soltei um pequeno guincho que, não fosse o silêncio carregado da madrugada, mal se teria ouvido.
- Shiu – O David segurava-me contra a parede do elevador, à espera que este se fechasse. Eu tentava oferecer resistência.
Assim que a porta se fechou por trás dele, o David pressionou o seu corpo contra o meu. Com uma das mãos segurava-me a cabeça e com a outra puxava uma das minhas pernas, colocando-a à volta do seu corpo. Eu não resisti mais. Abracei-o com força e beijei-o com desejo. Perdemos o controlo das nossas mãos, deixando-as percorrer livremente os nossos corpos. Acometidos pela excitação, esquecemo-nos do quão rápida era aquela viagem até ao terceiro andar. Fomos acordados daquele entusiasmo pelo barulho da porta do elevador a deslizar. Num movimento rápido, recompusemo-nos e preparamo-nos para sair. Mais próximo da porta, o David deu-me a mão e puxou-me. Eu estava já a atravessar a pequena fenda que separava a caixa do elevador do chão do corredor, quando um qualquer instinto me fez parar e olhar para cima. Soltei uma gargalhada sonora, que não consegui evitar. O David olhou para mim estupefacto e tapou-me agilmente a boca com a sua mão quente, evitando o prolongar daquele som que poderia acordar os restantes hóspedes.
- Que foi sua boba?
Sem lhe responder, puxei-o novamente para dentro do elevador e apontei para o canto superior esquerdo.
- Merda! – Sussurrou o David tentando controlar o riso – Como é que a gente esqueceu esse pormenor?
Ríamos os dois perdidamente, mas em surdina, sem conseguir desviar o olhar da câmara de vigilância.
Já com o riso controlado e depois de uma troca de olhares cúmplice, saímos do elevador e abrimos a porta do quarto 23 do hotel. Apesar do desejo que nos consumia, não sabíamos o que aquela noite nos reservava, mas tínhamos a certeza de que queríamos desfrutá-la juntos.